quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Imagem, Televisão e Psicanálise

Ana Cecília Álvares Salis

Estava eu vendo televisão quando apareceu a propaganda de um carro. Pois bem, imaginem que ela se inicia com a mãe de uma criança oferecendo para o seu bebê no berço, duas mamadeiras. Ao oferecê-las, a criança alegremente pega as duas de sua mão. Logo após, aparece a mesma criança um pouco mais velha que, diante de duas escolhas, não se furta, mais uma vez, a ficar com as duas opções. Desta forma, o comercial vai mostrando o crescimento deste sujeito. Com ele já adulto, suas "dúvidas" vão sendo demonstradas nos movimentos de seus olhos. Entre uma coisa e outra, ele continua não precisando fazer ”escolhas” porque lhe estão garantidas as duas opções. Já no fim da propaganda ficamos sabendo o seu propósito: é que oferecendo um carro bi-combustível, o sujeito não precisa escolher entre álcool ou gasolina, pois o carro oferece as duas possibilidades. E mais, ao sair do posto de gasolina (e álcool), o sujeito a se ver diante de uma bifurcação na estrada, não toma nem à direita, nem à esquerda, segue em frente atravessando um matagal. Já isto acontece porque afinal de contas, sua nova aquisição lhe permite, enfim, escolher um caminho inteiramente novo, mesmo que alheio às regras de trânsito. Autorizado na e pela propaganda, o sujeito faz “o que lhe dá na telha”.

Pois bem, a que isto nos remete? A reconhecer que a “dúvida” é o ponto alto da propaganda, o que se observa é um sujeito que, sem utilizar uma única palavra, vai-se apossando dos objetos que “vê” sem ter que renunciar a nada e sem aparentar nenhum constrangimento ou qualquer manifestação de conflito. A "dúvida", que para a psicanálise pode ser um sintoma angustiante e por vezes até incapacitante da neurose obsessiva, pode antes, ser um orientador para a uma escolha que implica em uma renúncia. Esta, se inexoravelmente traz em si uma cota de desconforto é também condição para o bom andamento das relações sociais. Contudo, a dúvida nesta propaganda é explorada como um motivo para “vender” mais do que um carro, uma outra idéia: uma idéia de “consumo” desmedido onde é possível, desde o “berço” e incentivado pela mamãe, o sujeito não necessitar fazer escolhas. A renúncia implicada em qualquer escolha é tratada aqui como algo desnecessário. E mais, vá lá que você tenha que passar pelo constrangimento de ter que fazer uma escolha, (representada pelo atravessamento do matagal), mas ainda assim restará a você, desde que de posse de um determinado novo produto, fazer o que “lhe der na telha” renunciando apenas à “regra” simbólica e socialmente compartilhada, nos caminhos indicados pela bifurcação.

Como mãe e psicanalista, não pude silenciar diante do espanto que tem me causado a “naturalização” deste tipo de propaganda. Passamos por um momento de um “fecundo” investimento no consumo desmedido de produtos-idéias mediatizados pelo espetáculo da “Imagem” difundido pela televisão.

Enquanto psicanalista penso se não está na profusão destes excessos de ofertas e promessas ambíguas de que tudo é possível, a causa do aumento progressivo da demanda por atendimento a sujeitos deprimidos e fóbicos. Como mãe e cidadã preocupa-me a exposição de nossos filhos a esta violência televisiva que silencia a fala e instiga o ato, o atalho em direção a uma satisfação imediata que obstrui as vias de acesso à dignidade da escolha.

Mas não se trata aqui, apenas de responsabilizarmos os meios de comunicação que produzem, mas também reproduzem demandas sociais. A tarefa é árdua justamente por contemplar o conjunto da sociedade no chamamento à revisão dos parâmetros que norteiam os modos de vinculação social na contemporaneidade. A se ter na “Imagem” televisiva o mais poderoso orientador do comportamento do homem moderno, resta-nos, talvez, a tarefa urgente de resgatar na potência das palavras, sua capacidade plural de recriar sentidos, de restituir aos processos psíquicos e sociais a capacidade de simbolização. E desta forma, resgatar as condições necessárias para que o pensamento possa se efetuar na dúvida, na reflexão e no diálogo.
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Ana Cecília Álvares Salis, psicanalista. O artigo está reproduzido aqui por representar uma visão, mesmo que por um prisma do olhar, com a preocupação do Piauinauta com o entendimento do século XXI. Dinossauros são uns, etc, como diz o editorial da folha...


8 comentários:

Anônimo disse...

Ana Cecília
Parabéns pelo artigo e pelo ótimo trabalho que faz no Nise.

Anônimo disse...

Ana Cecília
Parabéns pelo artigo e pelo ótimo trabalho que faz no Nise.

Unknown disse...

Ana Cecília, excelente reflexão de uma excelente psicanalista. Poder ter tudo, sem a necessidade da escolha, gera o indivíduo incapaz de sofrer frustrações. A consequência é desastrosa. A Televisão, pelo enorme poder que tem, deveria ter mais controle de qualidade. Parabén. E parabéns ao blog pela publicação.
Maria Beatriz Salis Poglia.

Unknown disse...

Ana, indiquei o artigo e o blog para meus colegas psicanalistas aqui de Porto Alegre; a leitura é imperdível.
Maria Beatriz Salis Poglia
Advogada e Psicanalista
Porto Alegre, RS

Anônimo disse...

Ana,

Vai escrever bem assim lá em Piauí.
Excelente reflexão sobre um assunto do cotidiano, que nos agride sem percebermos, fruto dessa terrível associação:televisão-imagem-marketing agressivo.

Parabéns ao Blog por difundir essa brilhante opinião de uma não menos brilhante psicanalista.

Sergio Meirelles

Anônimo disse...

Que show de análise de contéudo. Além de uma incrível fluência verbal.
Além de uma excelente psicanalista , a Ana poderia ser
uma ótima jornalista.

Marta Tavares - Psicanalista, Porto Alegre, RS

Anônimo disse...

Bem colocado, Ana Cecilia.Espero que tenha divulgação. Estamos fartos da indução ao consumismo mas a midia, por razões óbivas, não.
Beijos, Carlos Eduardo.

Unknown disse...

Ana Célia
Você saberia como eu poderia conseguir o vídeo dessa propaganda? No mais te parabenizo pelo excelente artigo.