domingo, 22 de dezembro de 2013

Teresina quase no Peru


 
(Edmar Oliveira)
 
Andei por aí, e depois até conto por aqui. O meu destino era o “umbigo do mundo”. Volto a ele. Mas desembarquei em Lima sem conhecê-la. Surpresa. Adorei. Povo bom e muito igual a nós, com um problema: todos tem a mesma cara do Inca velho e aí nos confunde. Fui compreendendo. O trânsito é de uma incompreensão sem sinais. Mas gostei. Taxi não tem taxímetro: discutimos a distância e o preço na hora. Vez por outra me dei bem, outras não, mas é do jogo. Gosto dessa desorganização. Entretanto, a gentileza de todos com a mesma cara era sempre a mesma. Bem perto do hotel, em Miraflores, quase a Ipanema ou Leblon limenho, um sítio arqueológico: Huaca Pucllana! Simplesmente fenomenal: uma pirâmide de adobe, argila pura, de muitos metros quadrados e muito alta. Andamos conduzidos por um guia mostrando tumbas e sarcófagos pré-incaicos. Tudo de argila. Os “tijolos” de adobes são erguidos feitos livros de uma biblioteca. Incrível são os três centímetros de distância entre os “livros”: anti-sismos! A pirâmide balança e choaqualha nos terremotos, mas não cai. Genial. Mais interessante ainda: antes era um morro de argila frequentado por motoqueiros. Bem perto daqui, em 1987, foi tombado e conservado no centro da capital peruana. Mas porque está ali a nos desafiar com o passado pré-inca de antes de Cristo? Se todo o monumento é de argila e se dissolveria em água?

Mistério limenho: lá o sol não aparece. As nuvens o encapsulam. Vindo dos Andes e com o ar frio do Pacífico mantém a capital peruana, que fica na mesma latitude de Salvador, sempre fresca no verão e fria no inverno. Mais ainda: não chove nunca! Por isso a pirâmide de argila ainda hoje está de pé! As ruas de Lima não têm bueiros por falta de água para escoar. Se bebe a água dos Andes, que escorre em córregos até o mar. Miraflores e outros bairros limenhos ficam numa falésia de argila, muito acima do nível do mar, esperando um maremoto. A cidade estremece com tremores vez em quando. A periferia tem casas sem teto: não chove e não tem sol. Adorei essa faceta. Fresco, sem sol e sem chuva.

Uma amiga não gostou da minha argumentação e admiração. Dizia que bom era sem chuva, mas com sol! Como gostam os cariocas.

Aí não me contive: sem chuva e com sol, essa cidade já existe: Teresina!

Boas Festas e Próximo Ano Novo


Por Gervásio
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1 verso

POVOADOS AGÔNICOS

As casas adormecidas

E as ruas solitárias e vazias

É noite nas cidades esquecidas

É inútil o nascer de novos dias


A vida lentamente vai embora

Sua fuga é estampada nos semblantes

Nada é esperado, nada vem de fora

Há tristeza no olhar dos habitantes


(Climério Ferreira)



É TEMPO
 
É tempo de assinar a Revestrés; de ler a poesia de Graça Vilhena; é tempo de Anderson Braga Horta e de Nicolas Beher; de crônicas de Cineas Santos e de Severino Francisco; de reler o livro de poesia do José Carlos Vieira; tempo de músicas novas do Clodo; tempo do bar do Mineiro; tempo de ir com Helô pros festejos de São Gonçalo em Regeneração; tempo de ouvir o disco de Celso Adolfo sobre Sagarana; tempo de gravar Pássaros no coração no novo disco do Túlio Borges; é tempo de ler Terra do Fogo do Edmar de Oliveira; tempo da poesia de Salgado Maranhão; tempo de fazer parceria com FernandaTakai e Marina Lima; é tempo de curtir Matias, Luisa e Julia; tempo de abraçar Débora e Daniela; telefonar pro Bê; ouvir Bené Fonteles; encontrar Guido Heleno; planejar publicação de um novo livro com Ruy Godinho ; é tempo de viabilizar a publicação do infantil-juvenil O Destino Azul das Estrelas;  é tempo de bater um papo com Assaí Campelo no Clube dos Diários; é tempo de ser parceiro do mirabô; e, principalmente, é tempo de se ter tempo.
 

(Climério Ferreira)

O Mágico de klöZ por Gervásio


Sergio Samba Sampaio de Chico Sales




Sérgio Sampaio passou pela música brasileira preso ao rabo de um cometa. Foi como um raio. Talvez uns imaginassem tê-lo visto. Outros nem lembram. Parece que não era o seu tempo e Sérgio vive num futuro para aparecer vez ou outra na passagem do cometa. Entre os acordes da Tropicália e um rock maluco beleza ouviu-se o barulho do bloco na rua, que não ganhou, mas é essa marcha-rancho que lembra o Festival da Canção de 1972. E ficou martelando na cabeça de todo mundo. Só que ele tinha uma paixão antiga aos sambas-canções de Orlando Silva, Sílvio Caldas e Nelson Gonçalves que talvez reacendeu quando esse Sampaio Teimoso “andava da Lapa a Copacabana a pé”. E é essa faceta que este trabalho pretende mostrar. Sérgio Samba Sampaio tenta fazer ouvir apenas os sambas que não foram percebidos na passagem do cometa. Chico Salles, um cordelista forrozeiro com um pé no samba, canta também esse estrangeiro do samba reconhecidamente carioca. Aqui, outros dois estrangeiros, Raimundo do Ceará e Baleiro do Maranhão, também emprestam uma ajuda luxuosa para a construção dessa homenagem. Mas é o legítimo sambista Zeca Pagodinho quem assina o canto desse Sérgio Samba Sampaio. E com respeito ao samba de Sérgio perdido na passagem do cometa, Henrique Cazes dedica seu talento a essa homenagem, traduzido no trabalho primoroso dos arranjos. O extraordinário José Milton ainda ajuda a lustrar a produção desse trabalho coletivo. Então não é por acaso que Sérgio lembra Cartola, Cavaquinho, Adelino. E nas letras ele transgredia o conformismo dos anos de chumbo de então para falar aqui no futuro em sambas que só agora podem ser mais bem compreendidos.
Não de todo. Sérgio não desceu do cometa, só está passando por aqui outra vez...

(Edmar Oliveira)





 Com arranjos de Henrique Cazes, que também divide a produção com José Milton, “Sergio Samba Sampaio”, este CD do paraibano, mas carioca de coração, Chico Salles revela uma faceta da vasta obra de Sérgio Sampaio e mostra sua paixão antiga pelos sambas-canções e suas letras bem humoradas, inteligentes e ainda atuais.

Com participações de luxo, como a do Zeca Baleiro, que já lançou o projeto O Balaio de Sampaio em 1998, agora divide os vocais com Chico no samba História do Boêmio, de Raimundo Fagner em “Cada Lugar na Sua Coisa” e o legítimo sambista Zeca Pagodinho em “Polícia, bandido, cachorro, dentista”, todas de autoria de Sérgio Sampaio, o álbum tem distribuição do selo ZecaPagodiscos.

“A ideia deste CD surgiu depois ouvir novamente, tempos depois, os LPS do Sergio Sampaio, motivado pelo amigo Edmar Oliveira”, conta Chico Salles. “Ter a participação destes três expoentes da nossa canção, foi enormemente gratificante e qualificador para o projeto, pela generosidade e sensibilidade dos três. Reler Sergio Sampaio é se atualizar com a picardia e irreverência brasileira. Nada é mais contemporâneo na nossa música popular”.

Chico Salles já lançou cinco discos, todos na ceara do forró, mas com pitadas de sambas: “Confissões” (2000), “Nordestino Carioca” (2002), “Forrozando” (2005), pelo qual foi indicado como melhor disco e melhor cantor na categoria regional ao Prêmio TIM de Música, hoje Prêmio da Música Brasileira, “Tá no Sangue e no Suor” (2007) e "O Bicho Pega" (2010).

Paraibano de Souza, Chico Salles chegou ao Rio de Janeiro nos anos 70. Forrozeiro, cantador e cordelista, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel desde maio de 2007, onde ocupa a cadeira nº. 10, que originalmente pertencia a Catulo da Paixão Cearense, sempre circulou com desenvoltura pela cidade, incorporando a ginga do samba carioca à força da música da suas origens sertanejas. Nos anos 80, conheceu os redutos do samba carioca através de seu amigo trapalhão Mussum - com quem travou parcerias musicais e fundou o bloco Elas e Elas em 1985. Outras parcerias que surgiram naquela época - e perduram até hoje - foram com Noca da Portela, Roberto Serrão e Beto Moura.

Hoje, Chico Salles já tem uma carreira consolidada, circula entre as melhores rodas de samba e forró do Rio de Janeiro e participa de vários projetos. Além disso, ganhou concursos de melhor samba enredo em vários blocos da cidade, nos anos 90, como Simpatia é Quase Amor, Barbas, Elas e Elas, Banda da Barra e Vem Cá me Dá.

Com esta vivência, Chico mostra em “Sérgio Samba Sampaio” todo o seu cacife para tirar do baú músicas do compositor pouco conhecidas do público, que tem como referência na memória apenas seu hit “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de 1972, que ganhou o Festival Internacional da Canção ao ser apresentada no Maracanãzinho, naquele ano.

Mas a obra de Sérgio Sampaio é vasta e este projeto vem contribuir para recolocar seu nome de na ordem do dia. Ele integra uma galeria de "malditos" da MPB, que incluiria Melodia, Itamar, Torquato Neto, Macalé, Mautner e Arrigo. Hoje foi redescoberto num culto novíssimo e nada saudosista em torno do artista que, como o texto de Edmar Oliveira diz na abertura deste release, “passou pela música brasileira preso ao rabo de um cometa”.

Henrique Cazes ressalta o quanto Sampaio sabia fazer samba com qualidade e originalidade. “Muitos dos sambas do disco não foram gravados originalmente como sambas clássicos e agora ficaram mais valorizados com esse tipo de instrumentação (violões, cavaquinho, acordeom, muita percussão) e arranjo. Sérgio fazia samba como uma forma de transgressão, já que a ‘máquina’, a gravadora, o mercado, esperava que ele fosse pop. Ele fala disso na letra do Velho Bandido. Ele transgredia dentro da própria transgressão”, completa o músico e arranjador.

“Gravar Sérgio Sampaio hoje é de enorme importância”, opina José Milton, “pois ele foi fundamental pra música brasileira; deixou vários discos bons. Era um compositor talentoso, um poeta cru, explícito na veia”.


Chico Salles - Sérgio Samba Sampaio
Lançamento ZecaPagodiscos
Preço médio: R$ 25,00

MEU CHORO, MEU CHORINHO

MEU  CHORO MEU  CHORINHO
É  NA  LEVADA  DE  VIOLÃO, CAVACO,  E BANDOLIM 
MEU CANTO,  MEU  CANTINHO
É  NO TRINADO  SUTIL DE  PASSARINHO
 
(Lázaro José de Paula)

Salgado Maranhão


Balanço

Fecho o ano
abro o abraço
choro 
e comemoro
a dor
da imensa alegria de viver


 
         (Lelê Fernandes)

Centro Norte


Das coisas que só o Carlão Fazia

 
 
Com  arte e delicadeza,

das asperezas do aço,

Carlão extraía leveza...
 
(Cinéas Santos)
 
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Carlos Martins, artista piauiense, mago da escultura em aço, falecido precocemente

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O Piauinauta entra em recesso até o lançamento de "Terra do Fogo"


Lançamento do CD "Sérgio Samba Sampaio"

Em SAMPA
Bar SAMBA
Rua Fidalga, 308
Vila Madalena - São Paulo - SP


Alô, Alô, Pessoal de Sampa. Vamos reunir os sampaiófilos da cidade. Programa obrigatório.



domingo, 24 de novembro de 2013

Minha irmã

(Edmar Oliveira)

Quem me ver assim mal acabado, meio torto, empenado, sempre fracote não faz conta que fui um dos treze filhos de mãe que vingaram. Eu e meus sete irmãos somos dos fortes. Pelo menos os mais velhos, pois os mais novos já tiveram a ajuda da medicina da capital. Teve eu de um primeiro parto no sertão, às beiras do Parnaíba. Depois de mim, um perdido. Meu irmão e minha irmã mais velha, mas separada de mim por quatro anos. Depois vieram outros quatro que vingaram, entremeados de uns tantos perdidos ou abortados antes de serem anjos.

Mas depois de mim e o Edivaldo, minha irmã Eliane eu lembro bem lá nos tempos de Codó, no Maranhão. Uma menina magrinha, branquela, mas com uns cabelos alourados e cacheados que a transformavam em cópia, para os meninos da rua,  de uma estrela do cine São Luiz. Eu e meu irmão tínhamos o dever de protegê-la e nos orgulhávamos da tarefa. Fomos crescendo feito uma escadinha em cujos degraus ali no Maranhão chegou meu irmão Maioba. Edinha, a única de nós genuinamente maranhense, voltou muito pequena para Teresina, onde Moisés e Ana chegaram bem separados de nós no tempo.

Mas de todos, eu e minha irmã éramos os mais magros, os dois que herdaram os ossos fracos da família, mas não éramos assim tão doentes. Tínhamos a convicção que éramos parte dos que vingaram. Minha irmã nunca se queixou de nada. Começou a trabalhar cedo, casou e foram morar uns tempos no litoral, na Parnaíba. Eu vim embora pro sul maravilha. O nosso contato ficou por conta das férias e de nossos filhos que têm a mesma idade e conformação. E passamos algumas férias juntos unidos pelos filhos. 

Soube que ela teve uma tuberculose vencida como os fortes são capazes de fazer para manter a vida no sertão.

Depois soube da aventura que a família de minha irmã empreendeu num fusquinha, cortando o Brasil no cumprido, vindo fixar residência numa cidade do Rio Grande do Sul.

As notícias escassearam, ficamos meio distantes, embora eu tenha ido uma vez lá e ela tenha vido aqui certa feita. Mas hoje eu choro por mais contato nesta vida que é muito curta, mesmo para os fortes. E me arrependo de não ter tido mais tempo perto da minha irmã. Quando ela ficou doente agora fui visitá-la, encontrei-a em coma num hospital com os melhores padrões da medicina brasileira. Sei que ela está bem cuidada, mas temi pela gravidade do quadro. Naquele instante, na beira do seu leito de hospital, só consegui dizer – meio com raiva – que ela estava furando a fila. Tinha dois irmãos que deveriam morrer antes dela pela lei de chegada na terra. A minha dor foi muito grande. Era como se tivéssemos nos desgarrando para sempre...   

   

1 verso



BOA ESPERANÇA

Ou ÁGUAS DILACERADAS


Deram um nó nas tripas do rio

E deixaram os peixes a ver navios


Para arrancar energia desse estrangulamento

Assassinaram a vontade das águas


Vez por outra se vê crescer onde era rio

Uns matinhos recém-desafogados


Ao sentir que o fluir das águas esgarça

O verde denuncia uma ameaça


Não pesque a lua refletida nas águas

Nem as estrelas da superfície da noite



(Climério Ferreira)
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foto do site acessepiaui: o rio antes navegável após o "nó nas tripas" que o poeta chora

O VAPOR DO PARNAÍBA NÃO NAVEGA MAIS NO MAR


(Edmar Oliveira)

            Saía um vapor do cais do Parnaíba, que nem trem, puxando várias barcaças. Carregado de gêneros de primeiras necessidades. Como se fosse uma mercearia deslizando no rio. Sabão, óleo, açúcar, sal, e umas brevidades que a cidade anunciava estavam no balcão flutuante. A tarefa era trocar estas mercadorias por coco babaçu e cera de carnaúba, que seriam beneficiados na capital e eram artigos de grande valia. O comboio subia o rio por uma margem e voltava pela outra. Escambo era a forma econômica de então. Não tinha dinheiro na transação. O convencimento, a barganha, o espírito do árabe que habita cada nordestino fazia o acontecer do toma-lá-dá-cá, das negociações. Ia uma barca mercearia, voltava uma barcaça de matéria prima pros ingleses que exploravam os nativos. Meu velho pai fazia o papel do representante do inglês. Enrolando seus conterrâneos, com certeza. Só quem não conhece a leis da economia acha correção no comportamento dos negociantes. Quem se deu bem conta a história, quem fracassou, nem sei.

            E lá se ia o vapor e seus vagões. Barcaça seca, barcaça cheia, sempre que mais cheia do que veio. O querosene valia muito mais que o babaçu. E quem pesava tava quase sempre na barca, não na terra. Me lembro destas viagens, nas que acompanhei meu pai, e do rio. O Parnaíba parecia um mar. Talvez na minha imaginação, mas com certeza no avançar das águas que ainda não tinham sido presas na Barragem de Boa Esperança, que acabou com a esperança do rio correr pro mar e carregar o vapor e as barcaças.

            Ainda me lembro dos vapores de passageiros. O mais famoso deles era o vapor do Rafael. Não sei quem era o Rafael, mas certamente ele tinha orgulho de sua propriedade para botar seu nome no casco. Os vapores eram de aço com uma chaminé fumarenta que apitava na chegada e na saída do porto. Um verdadeiro navio com um convés cheio de redes, balaios com galinhas, potes de barro, malas de couro. Mas um luxo a viagem! Nem todo mundo podia viajar de vapor. De Palmeirais a Teresina era rápido. Voltar contra a correnteza levava mais que o dia todo. Quando me perguntam se nunca fiz um cruzeiro conto as aventuras no Parnaíba. Pobre ia às balsas desfraldadas, feitas com buriti e com uma casinha de palha de coqueiro. E lá iam os balaios de galinhas, potes e outras cerâmicas de barro, bacuri, pequi, pitomba, macaxeira e verduras, que eram comercializados no cais de Teresina. Inclusive as balsas eram desmanchadas e vendia-se até os paus de buriti (pra fazer cerca ou gaiola) e a cobertura de palha, já que balsa só desce o rio e não tem viagem de volta. O retorno era no pau-de-arara ou no lombo de burro. Eu tinha loucura pra viajar numa balsa, mas nunca tive o desejo realizado.

            Diziam que estes pequenos e valentes navios eram fabricados na Inglaterra e vinham navegando até o delta do Parnaíba, onde entravam sertão adentro para fazer do rio uma estrada. E neles viajei muito. Conhecia aquelas beiras de rio, seus povoados, pescadores e lavadeiras olhando do alto do convés do vapor ou de dentro de uma barcaça puxada por um vapor de carga, que funcionava como locomotiva das águas.


            Lembro destas histórias porque outro dia olhava o rio do cais de Teresina. E ele parecia me dizer o quanto estava sofrendo. Os bancos de areia, que nós chamamos de crôa ou coroa, pareciam sufocar o rio. O assoreamento de suas margens, o correr vagaroso do rio, parecem sinais clínicos de falta de ar. O odor fétido de suas outrora luminosas águas anuncia uma grave doença. Desde que prenderam suas águas em Boa Esperança o rio vem perdendo a esperança de viver. Parece que vai morrer. E isto dói muito em mim...

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Crônica publicada em maio de 2008 aqui no Piauinauta.
Fotos colorida do site acessepiauí: o cais do Parnaíba onde chegavam e saiam os vapores. O rio agora agoniza. Fotos antigas retiradas da página do facebook "Teresina Meu Amor".  

Ingressos para o teatro

(Geraldo Borges)               

Durante as férias na fazenda, quando minhas irmãs vinham da cidade, no meu tempo de menino,  brincávamos de representar dramas, comédias: cenas burlescas, que faziam a platéia cair na gargalhada. Armávamos o palco na varanda, que era o espaço maior da casa grande, e enfileirávamos uma quantidade de cadeiras, tamboretes, para o auditório. Os agregados, os parentes e os vizinhos  vinham assisti a peça.

                Uma vez, eu fui escolhido por minhas irmãs para participar do elenco. Fiquei feliz. A minha colaboração era ínfima, duraria no máximo dois minutos. Eu pularia a janela em uma hora determinada no meio de uma cena, e alguém, uma das minhas irmãs me interpelaria, fazendo-me uma pergunta. No que eu responderia com a cara de abestado:
               Não sei não. Minha mãe é quem sabe.

                Ao cruzar o batente da janela escorreguei e saí tropeçando. Cai. Mordi a língua e machuquei os lábios. Mas logo me recompôs. E desempenhei o meu papel. A minha Irmã fez de conta que o  episódio da queda fazia parte da cena. Todo mundo riu e a comédia continuou.  E eu saí do palco pela mesma janela debaixo de aplausos.
              
               Na cidade, tive a ocasião de participar de um novo drama; este no quintal de nossa casa; desta vez apenas como espectador. Era uma pequena peça em um ato, arranjada pelo Cupertino, que depois foi morar em Brasília, tinha a figura de galalau,  personagem  dos doze pares de França, e era magro que só uma lagartixa. Seus modos, sua presença já era motivo para riso;  outro  elemento da peça era o Gislene, baixinho e gordo: parecia uma pipa de vinho, a dupla dava certo no palco.
                
               A história desenvolveu-se com o seguinte enredo. Cupertino fazia o papel de paciente, que tinha de ser operado. O médico era o Gislene,  metido em um jaleco branco. Havia também no elenco uma enfermeira, a pessoa que lhe dava os instrumentos para a operação, e  um anestesista que logo desapareceu.

               Procedida a operação, aberta a barriga do Cupertino com um golpe afiado de bisturi entregue pela mão enluvada da enfermeira para a mão enluvada do medico, que começou a extrair coisas estranhas do corpo do paciente que estava deitado em uma cama coberto por um lençol branco.

                O primeiro objeto que saiu de dentro do paciente foi um apito, ai o doutor apitou e disse, deve ter engolido quando era criança, depois deu uma gargalhada tão ostensiva que foi fazer eco no palco. Em seguida tirou um  carrinho de lata de sardinha, trazia um cordão em uma das extremidades. O medico pegou e disse: carência da infância, e deu um giro puxando o carinho pelo palco.  O auditório riu. A  enfermeira  ao   lado do medico, séria, parecia um fantasma. O paciente ia ficando mais magro. A gente notava por causa da saliência do lençol que ia aderindo  ao seu corpo O médico continuou catando o lixo na barriga do paciente, encontrou algumas caixas de palito de fósforo  encaixou uma nas outras e fez um trenzinho, encontrou um revolver de brinquedo  e apontou para o rosto do paciente. Não reagiu. Encontrou um pião de madeira e com bastante habilidade fê - lo girar em sua mão enluvada, um papagaio verde amarelo com a seda rasgada e sem rabo. O palco estava se atravancando de objetos. 
               A enfermeira teve que sair um pouco para pegar um cesto  de lixo. Nisso a cortina fechou-se.


               Quando abriu de novo, não havia mais ninguém no palco. Apenas dezenas de cestos de lixos  amontoados, cheios de objetos descartáveis, tanta coisa que não é nem possível imaginar e pelo visto tudo tinha saído da barriga  do paciente Cupertino que depois apareceu junto com o resto do elenco no palco para agradecer a platéia.

Trans



Estou grudado à pele
destes signos
que me adestram
pela noite imêmore.

Por eles me relâmpago 
entre matilhas; neles
teci minhas ráfias de luz
e sombra; deles
são meus labirintos de safira.

Um dia uma fênix
grafou meu nome
em suas asas;
desde então me encanto
para renascer

transbordante em cada mim


(Salgado Maranhão)
______________________
poema do próximo livro do poeta, ainda inédito

Crônicas minimalistas

RECEITA CONTRA A INVEJA

A feira livre se fazia anunciar pelo cheiro. Dois urubus mansos posavam de recepcionistas. O fotógrafo parou, olhou tudo e, sob uma sombra exígua, descobriu uma senhora - idade inescrutável - vendendo sua escassa mercadoria: três molhos de maxixe, um punhado quiabos, metade de uma abóbora. Aproximou-se, perguntou se poder...ia fotografá-la. A vendedora não permitiu: "Enfraquece o espírito". Em frente à banquinha, um pé de pinhão-roxo num vaso de cerâmica e um minúsculo pé de arruda numa latinha enferrujada. Perguntou se as plantas estavam à venda. A vendedora, um tanto agastada, respondeu; "Não, moço, isso é pra espantar olho-grande". Pela firmeza da resposta, devia saber o que dizia.

(Cinéas Santos)


Paulo Tabatinga


andarilho

Saber viajar
E sempre uma grande arte
Mas ande devagar...
Porque você já está

Em toda parte.

(Geraldo Borges)

Autoajuda: Jó e a felicidade


 

Caro leitor, me pediram para ser bom, justo, decente, honesto... eu até que tento. Juro! Me obrigaram a obedecer as leis e eu me vi coagido a ser legal. Não satisfeitos, os caras me jogaram nos cornos 10 mandamentos, zil costumes, ordens, proibições, censuras, tabus, regras de etiquetas e me disseram para, no fim das contas, tratar de ser feliz. Puta que nos pariu a todos, ser feliz assim? Lembrei-me de Jó, de seu suplício no tempo, de suas pequenas e grandes tragédias e, é claro, da sua fé inquebrantável. No fundo, querem que sejamos como Jó. Mas se ligo o rádio ou a TV e ouço notícias terríveis sobre peste, morte, destruição; se leio no jornal as notícias de fome, abandono, dor; se vejo da janela a miséria que nos rodeia, e ainda assim sou feliz, é sinal de que sou, no mínimo, uma besta egoísta. Não adianta me sensibilizar com os que não têm nada a partir do meu agradecimento a um Deus pelo que tenho. Ora, é simples. Qualquer sofrimento alheio é também meu sofrimento. Ou pelo menos deveria ser.  Mas não. Seguimos todos nos iludindo com a promessa da felicidade, como se ela estivesse na estante de um supermercado existencial qualquer e fosse, ela, a felicidade, uma certeza absoluta. Não me engano, eu não nasci pra ser feliz enquanto a maioria está condenada à infelicidade. Esse papo de dormir com a consciência tranqüila por que contribuo para uma creche, porque dei moedinhas para um flanelinha, porque não nego comida a quem bate em minha porta, é conversa para boi dormir. Não quero dizer com isso que a culpa disso tudo seja minha, até porque não falo de culpa, mas de responsabilidade. O mundo é minha responsabilidade sim e é justamente por isso que grito com plenos pulmões: Não me peçam pra ser feliz debaixo de tanto entulho moral. Tampouco esperem que eu sorria passivamente diante de todas as censuras do mundo. Eu não vim ao mundo para ser feliz, mas, se eu quiser, para tentar sê-lo.

Leonardo, o bofe

A luz na noite matinal.

Gervásio


domingo, 10 de novembro de 2013

de seca, de grilagem e poluição


(Edmar Oliveira)

A

 seca castiga o interior do Piauí, apesar das poucas chuvas na capital. E, como sempre, os políticos prometem investimentos em obras que resolverão a questão. Entra ano e sai ano e o sertão continua ao Deus-dará. Desta vez, talvez pela globalização dos protestos, um cidadão, em Jaicós, portava seu cartaz solitário: “Senhor governador, não precisamos de suas visitas e falsas promessas. Queremos só a água”. Nem sem precisar imitar a violência policial mostrada na TV, a segurança do governador foi em cima do manifestante solitário e rasgou seu cartazinho de cartolina. No que o solitário e politizado manifestante deu entrevista aos órgãos da capital dizendo que os homens do governador estavam impedindo seu direito de manifestação e com o cartaz rasgavam também a constituição. Bravo manifestante da pequena Jaicós.

Enquanto o governador promete obras, carros pipas andam até duzentos quilômetros para levar uma quantidade de água ínfima aos habitantes do sertão. A lavoura de subsistência foi embora e o gado morre na tragédia da seca. A diferença dos retirantes d’agora para os descritos por Graciliano são as motos e os celulares. As notícias das vozes da seca são de cortar o coração.

 


O

 sul do Piauí tornou-se um atrativo para o agro negócio. As plantações de soja estendem-se a perder de vista e agora surgem denúncias de grileiros de terras, acobertados por órgão governamentais. E vale tudo: procurações falsas, matrículas inverídicas, posses forjadas, laudos infiéis e outras artimanhas jurídicas. O objetivo de sempre é a expulsão do antigo posseiro, a compra de terras por valores irrisórios e a revenda milionárias para o agronegócio em expansão. Ou seja, o agronegócio do sul do estado despertou uma cobiça por terras ocupadas com títulos dados pelos órgãos oficiais que agora refazem a propriedade para terceiros com documentos forjados. Uma quadrilha está assentada no governo e as acusações chegam a chamuscar o governador.

O Piauinauta, daqui de cima, olha os dois males que acometem o Piauí nesse instante: no sul o agronegócio se expandindo à custa da grilagem de terras que jogam na rua seus verdadeiros donos. No miolo do sertão a seca inclemente que mata a economia de subsistência e o gado pé-duro dos pequenos proprietários. E a região mais castigada está a poucos quilômetros da pujança do São Francisco. Tem jeito?

 


U

ma vez eu estava hospedado num hotel em Teresina e chegando suado de um dia escaldante foi informado pelo recepcionista que não havia água. Perguntei quais as providências do hotel e o moço disse que tinha de esperar que a culpa era da AGESPISA (Aguas e Esgotos do Piauí Ltda). Pedia uma providência do hotel, um carro pipa que fosse. O impassível recepcionista falou uma frase em piauiês que se agora posso ri, na hora fiquei uma arara: “se o senhor quiser se banhar com uma bacia d’água, nóis arruma!” Lembrei das lavagens dos cabarés da Paissandu.

Mas já que hoje estamos no propósito das denúncias, mais um escândalo: diretores da AGESPISA foram presos por crime ambiental. Os dejetos que chegam a estação de tratamento do esgoto sanitário estão sendo jogados no rio sem tratamento. Falta água e os esgotos contaminam a água. Caso sério. O rio morre a cada crime desses...   
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Deu nos jornais aqui do Rio que o governador do Piauí tinha quebrado algumas costelas na queda de uma rede. O Izânio já fez a charge com os inimigos políticos fazendo um despacho.

1 verso

 
A CANÇÃO DA MINHA TERRA
 

A minha terra habita

A sombra da tardezinha

E me encara e me grita

Dizendo não ser mais minha

 

De já não ser mais de lá

Sem os amigos de então

A mim só resta cantar

Esta saudosa canção
 
(Climério Ferreira)

A velha ponte do trem Maria Fumaça

(Geraldo Borges)

 
A velha ponte metálica  está  parcialmente corroída pelas  estações das águas e do sol, praticamente abandonada, parece um grande paquiderme  saído de uma metalúrgica  fantástica. Foi construída por uma engenheiro alemão, e muita mão de obra maranhense e piauiense, e, com certeza, cearense. O engenheiro alemão, dizem, suicidou- se, porque os alemães adventícios estavam sendo perseguidos durante a guerra. A ponte se não me falha a memória foi construída na década de 30. Dizem também que o material que veio para a construção da ponte dava para construir a do rio Parnaíba e outra sobre o rio Poty, essa desapareceu. Em vez de uma ponte metálica apareceu uma de madeira.
 
João Luiz Ferreira, engenheiro, com certeza, deu a sua demão na construção da ponte que leva o seu nome. Antes de  ser construída o trem de ferro Maria Fumaça chegava até a estação de Timon, os passageiros que vinham para Teresina passavam em canoas para o outro lado. Assim, também, os comerciantes, com as suas mercadorias. A ponte precisava ser feita e assim se fez. Em nome do desenvolvimento econômico dos estados do Maranhão e do Piauí. Mais tarde sofreu uma adaptação  para que no seu leito passasse caminhões e automóveis.



Do outro lado do rio, em terras maranhenses, existem muitas personagens anônimas que estão ligadas sentimentalmente a velha ponte metálica. É só pesquisar, Em Teresina existia uma figura popular que tinha a sua biografia bastante ligada a ponte. E eu gostaria de apontá-lo. Chamava - se  Manelão, vulgo Manuel Avião, que com a sua febre de representar o mocinho  na fita de cinema pulava escandalosamente de cima da ponte para salvar a mocinha.

Eu também tenho a minha história relacionado da com a ponte  João Luiz Ferreira. Vem do meu tempo de menino quando a ponte era apenas uma travessia de trem. Não era revestida de tábuas. Os seus dormentes apareciam debaixo dos trilhos, como costelas de um grande animal antediluviano,  e, de cima, via-se lá embaixo as águas do rio  barrentas, descerem caudalosas, fazendo vórtices em torno dos seus pilares.  Eu me aventurei atravessar a ponte para a cidade de Timon, com outros colegas. Mas quando estava no meio  me arisquei a olhar para baixo. Fiquei tonto Senti como se as águas quisessem me arrastar  para o fundo do abismo. Resolvi voltar engatinhando. Hoje pensando bem, me pergunto se estava no meio da ponte, ou, talvez, mais perto de Timon, por que não fui em frente e realizei a minha façanha? Isso fez com que eu admirasse mais ainda os meninos  moleques que subiam cabriolando pelos elevados arcos  que rodeiam  a ponte e depois declinam  E assim eles atravessavam o rio dando um espetáculo. A ponte nos atraia não só pela sua beleza arquitetônica, coisa que não entendíamos, mas, pelo fato de ser uma travessia, de nela a gente ver o trem passar. Somente o trem naquele tempo. E de certa maneira  porque  ficava distante da cidade. E nos proporcionava um passeio excitante.
Ao longo de muitos invernos e sol causticante a ponte metálica sofreu algumas avarias a ponto de seu uso se interditado. Mas resiste a ferro e fogo. Abraça o rio de um lado a outro num gesto cordial  ligando dois estados que têm muito em comum. E é por isso mesmo que ela pertence à União, de modo que merece o zelo tanto de Teresina como de Timon.
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fotos da ponte metálica de cima para baixo: Paulo Tabatinga, Dasaev dos Santos Barbosa e Raphael Senna (primeiro, segundo e terceiro lugares num concurso de fotos da ponte metálica)
 

 

CORAÇÃO VAGABA

 
MEU  CORAÇÃO  AS  VEZES  FAZ  DAS  SUAS
DESTA  FEITA  QUER  POR  VERDADEIRO 
E  DERRADEIRO  
QUE  TE  AMAR  
SEJA  COMO  ACHAR 
UMA  AGULHA  NO PALHEIRO  
 
(Lázaro José de Paula)

1000TON cartas

  1000TON
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o calor de Teresina


 
O calor de Teresina não é a apenas uma metáfora
O calor da minha cidade é uma realidade atmosférica
Faz o nosso corpo ficar encharcado e suja   o colarinho
Do cidadão. Faz a moça tecer sombras a seus pés com a sua
Sombrinha colorida. Faz os  moleques  timbungarem
Nas águas poluídas do rio Parnaíba
Faz o transeunte  procurar uma sombra na calçada.
Mas a sombra está vazia porque derrubaram as árvores
Para o carro passar besouros devoradores do verde.
O calor de Teresina não é apenas o calor de  seja bem vindo
O calor de Teresina é real, é de sol a pino, na faixa do Equador
Mas o calor de Teresina tem suas vantagens
Devora as carniças nos monturos da cidade
Nos esgotos aos céus abertos
Transforma-os em múmias em pergaminho
Nos anais  dos descuidos deslavados da municipalidade
Já pensou se esta cidade mal cuidada tivesse um clima frio?
Seria um inferno, uma semente para a peste
Viva o calor de Teresina onde as chananas nascem
Quebrando com toda a delicadeza o cimento das calçadas.
 
(Geraldo Borges)
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foto: Nayene Monteles

 

Tabatinga


VERDADES E MENTIRAS NA LITERATURA

(Luíz Horácio)

 

Um livro de leitor. De leitor exigente. Lado A

Um livro de professor. De mestre em radicalismos. Lado B

Verdades e mentiras na literatura se justifica, graças a seu lado A. Recomenda-se leitura de olhos bem abertos. Partículas maniqueístas pululam ao longo de Verdades e mentiras na literatura.

É preciso estar atento e forte, aconselhou Gilberto Gil em Divino maravilhoso.  Mais adiante, o  alerta: tudo é perigoso.

O autor Stephen Vizinczey é húngaro. Nasceu em 1933. Jovem escreveu peças teatrais. Suas peças costumavam ser proibidas pelo regime comunista, o que não impediu  A Última Palavra, sua segunda peça, de receber o prêmio Attila József. Diz o autor que, certa vez, enquanto ensaiavam, receberam  a visita da  polícia política. Esta, não satisfeita com a "confraternização" , levou algumas lembranças: para ser exato, carregou os cenários, os figurinos. Vizinczey não tardaria a fugir  para o Ocidente.

No Canadá, sem saber falar inglês, viu-se obrigado a aprender. E aprendeu tão bem, a luta pela sobrevivência é o melhor dos métodos, que  logo a sobrevivência resultava dos argumentos que escrevia para filmes.  

Não tardaria a escrever romances, ensaios, resenhas.

Verdades e mentiras na literatura reúne textos anteriormente publicados em jornais e revistas. Trata-se de uma coletânea que merece redobrada atenção. Apresenta uma face bobinha, aparentemente ingênua, porém perigosa, e uma face arrogante, pretensiosa, extremamente bem articulada, mas como diz um amigo, “as serpentes também são muito bem articuladas.” Recomenda este aprendiz: aprecie com moderação, não se deixe impressionar. 

Comecemos pelo lado B, Os Dez Mandamentos de um Escritor, não fosse a grandiosidade do lado A estas dez bobagens arrogantes jogaria o livro no esgoto. Vale a leitura pelo lado cômico, ingênuo, piegas, encare como uma negação do primeiro mandamento; Não beberás, não fumarás nem usarás drogas.

Dito desse modo, sem dar exemplos, corro o risco parecer  sob efeito de duas das mais potentes drogas, inveja e arrogância.

Enganou-se deploravelmente, impaciente leitor, caso tenha sentido falta da  mediocridade. Esta não é droga, é componente de minha essência.

O primeiro mandamento é constrangedor, conhecemos inúmeros bons escritores que fumam, muitos que bebem e outros que se drogam. Por vezes ocorrem num mesmo sujeito. Não fazer uso dessas três “ferramentas” não significa ser bom escritor.

Segundo mandamento: Não terás hábitos dispendiosos. Alguém pode explicar onde isso tem a ver com escrever bem ou mal?

Diz Vizinczey: É preciso decidir sobre o que é mais importante para você: viver bem ou escrever bem.

Essa afirmação é de uma estupidez constrangedora. Aproveito para dar um aviso aos editores e editoras: desprezem todo original não oriundo de regiões miseráveis. Dia desses fiquei sabendo que Madagascar é o lugar mais pobre do nosso globo. Pelo visto deve estar repleto de grandes escritores.

Perdoe, caro leitor de espírito elevado, mas a irritação se aproxima, em vista disso não tomarei seu tempo com todos os mandamentos, mas....no quarto mandamento você encontrará Não serás vaidoso, no quinto o autor lhe recomendará, Não serás modesto.



Menos mal que são dez mandamentos, dez patéticos mandamentos. Condição para levá-los a sério: ter no máximo dez anos de idade e ostentar analfabetismo no mais alto grau de convicção.

Ultrapassada a arrebentação,  o leitor encontrará a erudição inquieta de Vizinczey,  então se perguntará como ele foi capaz cometer aqueles dez mandamentos imbecis.

Aproveito para fazer uma pergunta, atento leitor: por que raios escritores gostam tanto, ou pelo menos se arvoram nesse direito, de ensinar a escrever? Nem artistas plásticos apreciam tanto essa atividade. Com a quase erradicação dos cursos de corte e costura, o terreno foi invadido pelos escritores/professores.

Percebe-se nitidamente sua admiração por Stendhal, admiração que permite leve consideração a Balzac e quase esquecimento de Flaubert.

Vizinczey parece não conseguir desapegar  da  pieguice, perceba, apesar da devoção por Stendhal como ele começa o ensaio. Voilá:  Stendhal é um desses raros espítiros que nunca param de desejar estar vivos, estar apaixonados, estar livres. Estes três desejos dominam suas obras.

 


Vale lembrar que a leitura de Verdades e mentiras na literatura deve ser efetuada com extremo cuidado e sempre de forma criteriosa. Percebe-se a indisfarçável pretensão  de SV de assumir a “persona” de bússola a orientar não apenas o aspirante a escritor, mas também ditar normas acerca de como se deve receber a literatura. Caberá a você, criterioso leitor, aceitá-las. Caso aceite incondicionalmente saiba que está a permitir que alguém lhe informe o que vem a ser  bom gosto em literatura. Pelo menos na literatura européia e americana. Parte da literatura europeia e americana. Parte escolhida pelo autor. O que enseja miríades de controvérsias.

Cabe lembrar a você leitor, que também lê no idioma de Rabelais, a leitura de Des mystications littéraires, de Jacques Finné. Compare e depois conversaremos.

Para encerrar, Verdades e mentiras na literatura é o retrato da intransigência de Vizinczey, se desmistifica determinados aspectos da literatura também demonstra sua agressividade, sua inteligência e seu idealismo piegas.

Verdades e mentiras é um livro pretensioso, arrogante, aparentemente sincero, feito este texto que você acaba de ler. Não deve ser levado  muito a sério.  

 

AUTOR 

 Stephen Vizinczey nasceu na Hungria em 1933. É autor de diversos livros, entre eles In praise of older women, editado em 21 países e ganhador, em 2004, do Prêmio Elba, na Itália.

 


TRECHO

A verdadeira grandeza é como o infinito, não conseguimos medi-la. Em geral, as tentativas de avaliar as obras de arte prejudicam até mesmo nossa capacidade de apreciá-las. Ao tratar os êxitos criativos como se fossem panoramas sociológicos ou históricos, ou exercícios de intenções piedosas, boa parte da erudição literária é empregada para destruir a distinção vital entre o ordinário e o extraordinário - um tipo de incompreensão bárbara que descreveria o olhar de uma mulher dizendo que ela  tinha visão 20/20. No entanto,essa  seriedade pedestre, que Stendhal foi o primeiro a reconhecer como o mal da cultura moderna, domina o ensino hoje em dia, e tem como resultado o fato de que só os leitores com sensibilidades indestrutíveis conseguem sobreviver e formar uma cultura literária.. O ensino de literatura é o principal instrumento para alijar os jovens da boa prosa e particularmente dos clássicos. As aulas pedantes sobre o brilhante retrato que esse ou aquele romancista fez de uma época passada propagam a falácia de que os grandes autores do passado escreveram sobre coisas mortas e enterradas.

Mas a calúnia é a verdade mal aplicada. O que confere perene credibilidade ao indevido tratamento sócio - histórico - moralista das obras de arte literárias é a abundância de romancistas datados que foram pouco mais do que cronistas de sua sociedade e honrados porta-vozes da desilusão dela. Tais escritores sofreram, se não de falta de talento, ao menos de uma overdose de sua cultura solidificada e de suas convenções.