domingo, 27 de outubro de 2013

3 em 1: Alface de piranha, gravidade e donde tu rái?

(Edmar Oliveira)

1.

 Quando os meninos pequenos começavam "a se entender por gente" tomando banho nas águas do Parnaíba o medo maior era do Candiru. O peixe tinha a fama de entrar nas intimidades de quem estivesse nu. Mas nunca vi um caso, o medo era de ouvir falar. Tomando banho vestido o medo era da piranha e ninguém se atrevia a entrar nas águas do rio com um ferimento de sangue que atraísse o peixe. E uma delas me meu uma mordida no dedo quando tentei desenganchar a miúda do anzol. A gente tinha que botar um arame que ligava o anzol à linha, pois do contrário ela comia a isca com anzol e tudo, cortando a linha com os dentes afiados. Mais o peixinho dos dentes ameaçadores quando frito no azeite de coco babaçu era uma iguaria que sinto saudade e água na boca. A expressão “boi de piranha” já me dava medo, imaginando o boi que seria sacrificado ao cardume para que a boiada pudesse atravessar o rio. Pois não é que descobriram agora uma nova espécie de piranha na Amazônia? E, pasmem, a bicha é vegetariana, só come o capim mergulhado nas águas com a mesma voracidade de seu parente carnívoro. Ela tem até nome latino: “Tometes camunari” e foi achada no Rio Trombetas no Pará. Fiquei comigo imaginando, e se o Rio tem o nome por causa das trombetas alucinógenas, flor de árvore com que se fazia chá nos anos 1970? Vai ver que as piranhas comeram a flor e ficaram doidonas, comendo capim na larica.

2.

 Fui ver “Gravidade”, filme em 3D, porque um amigo comentou que era um filme espetacular, uma espécie de 2001 da modernidade. Não gostei. Foi o meu primeiro 3D. Mas confesso que não fiquei encantado. A tecnologia do filme é louvável. Cenário, a falta de gravidade, mesmo com um capacete descomunal para a gente saber quem são os dois atores. Mas a Bullock de calcinha e camiseta na nave soa inverossímil. O 3D não me foi surpresa. Eu já o conhecia desde quando morei em Codó. A lojinha  que vendia gibi recebeu, certa feita, uma revistinha colorida que era acompanhada de um óculos de papel crepom com um olho azul e outro vermelho. Os desenhos da revista eram borrados e a gente não conseguia ler. Tava tudo embaralhado. Parecia que a revista tava com defeito. Quando a gente botava os óculos as coisas iam pro lugar parecendo ficar em três dimensões. Alguém aí se lembra destas revistinhas? Eu, que era alucinado por quadrinhos, lembro bem. Não pegou. É essa a tal tecnologia da modernidade. Tire os óculos e a tela vira a minha revistinha da infância. Interessante terem recuperado um truque antigo. Claro que com as novas tecnologias de filmagens, os objetos passeiam na sala de cinema. Mas o filme não se sustenta só com o truque. A mocinha escapa do perigoso espaço sideral, usando até um extintor para fazer manobras perigosas para quase morrer afogada no final. Ridículo. Não tem a menor importância contar o final, o filme não tem um argumento consistente. Faltou um ataque de piranhas. Vai ver que as piranhas em 3D preferem alface.

3.

 Uma equipe americana tá fazendo um filme sobre a infância e juventude de Pelé. Já acharam o pai do jogador que vai ser interpretado por Seu Jorge, o cantor que mora atualmente nos Estados Unidos. Estavam procurando um garoto de 17 e outro de 5 anos que falassem inglês como o seu Jorge e vivessem o rei do futebol de criança até a copa de 1958. Dois pretos pobres da periferia falando inglês. Não acharam. Os dois selecionados estão tendo aula de inglês para algumas falas no filme. Acontece que o filme é americano e em cinema americano todos falam a língua deles. Lembram dos filmes bíblicos da Metro, onde Moisés já falava inglês? Tô doido é para assistir o “Cine Hollyúdy” que é todo falado em cearês e tem legenda até para os outros estados do Brasil. Nóis aí do lado vai entender tudim. Agora a rapaziada do sul maravilha que confira a tradução. Nós também já fala em ingrês, homi de Deus. Quando o caba diz “donde tu rái”, “donde tu rém”, num soa ingrês purim? O Falcão jura que fala. E vai ver que essa piranha vegetariana é uma experiência de Hollywood pro peixe trabalhar em filme americano. Né não, macho réi?

1 verso

 
OS DO PIAUÍ

O querer piauiense às vezes é seco
A fala é lenta, arrastada, preguiçosa
A rua em que moram é quase um beco
E a frase, quando dita, é amorosa

A mansidão por um nada vira guerra
As amizades são verdadeiros pactos
A paixão maior deles é pela terra
Essas almas têm espinhos feito cactos


(Climério Ferreira)


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Foto: Luciano Klaus

klöZ por 1000TON


COM TODO CALOR

 
 
 
VENHA  POR AQUI QUE ESSE  CAMINHO  FINDA
EM  FEBRIL  CORAÇÃO  DE UM  AMOR   EXATO
E  FURE  NESSA  VEIA  AONDE  CORRE  MAIS  SANGUE
ENFORQUE   ESSA  DOR  NA  PORTA  DE  ENTRADA 
DESPISTA  ESSE  CÃO  QUE  SEMPRE TE  FAREJA 
ME  PÕE  NA TUA  MÃO  RASGUE  COM   O  DENTE  A  SEDA
ME  CANTE  UMA  BELA  CANÇÃO 
QUE  NINGUÉM   MAIS  SE  LEMBRA  
QUE  FALA  DESSA  GENTE  GENEROSA  E  FORTE
ME  AQUEÇA  COM   TODO O  CALOR   
QUE  TEM  A  QUINTA  ESTRELA
ME  TENHA  POR  TODAS  AS LUAS  TODAS   AS ESTAÇÕES
ME MENINA  NOS  TEUS OLHOS  A  CALMA   DAS  LAGOAS
ME  CONTA  AQUELE  SONHO  TEU   ME  FAZ  ADORMECER
E  DIGA  UM  VERSO   POR  JESUS   NOSSA  SENHORA
E  DIGA  A   DEUS  QUE  VÁ  EMBORA
 
(Lázaro José de Paula)
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desenho: Antônio Amaral

A cultura grega

(Geraldo Borges)
 
As pessoas quando ouvem alguma coisa que não entendem dizem  ele está falando grego. Engraçado. Pois é. Todo mundo no ocidente fala grego, e é entendido. A maioria não sabe que esta falando grego. Mas, as palavras que pronunciamos em nosso cotidiano, no geral, quando não são de origem latina, são de origem grega. Vejamos este trecho de Leminsky:

               “O imaginário  greco-latino impregnou de tal forma a vida do ocidente que nem  notamos quando recorremos a ele. ‘jovial’ quer dizer ‘de jove’, isto é de Jupitar. ‘Veneno’, de Venus, é, na origem, uma poção mágica amorosa. Da mesma origem, ‘veneno’ e ‘venéreo’. ’Hermético’ é coisa do deus Hermes, o deus sagaz, senhor das interpretações. Nossa linguagem corrente está  coalhada  de alusões ao mundo do mito grego.”

               Isto é apenas uma mostra. Mas tem muita mais. E se fossemos citar encheremos a pagina inteira. O cinema a literatura, as histórias em quadrinhos se encarregaram de popularizar a mitologia grega. Até os cordelista se alimentam de sua substância, juntamente com o universo católico de santos e demônios. A mitologia grega tem atravessado os séculos, é bem mais antiga que o cristianismo. Que de certo modo via Platão bebeu na cultura grega: Zeus e Iesus. Não deixam de ser nomes parecidos. Marx, filosofo, economista e historiador de vasta cultura, não conhecia apenas os clássicos da literatura ocidental.  Estava, também, familiarizado, com a mitologia grega. O seu herói predileto, era Prometeu aquele que roubou o fogo do céu desafiando a ira do  pai dos deuses, e proporcionando ao homem um salto na história da civilização. Freud foi outra grande figura que se valeu da mitologia grega descobrindo arquétipos para o estudo do subconsciente. Eis o que ele diz. “Foram os poeta e filósofos muito antes de mim que descobriram o inconsciente. O que eu descobri foi o método científico  pelo qual o inconsciente pode ser estudado”.

 Bendita mitologia  que começou com a oralidade e que fertiliza a imaginação dos poetas.  Livros, tais como a Iliada e a Odisséia, são eixos básicos para qualquer estudante de literatura que se proponha a uma viagem pelo mundo do imaginário grego. Mas não fica apenas por aí. Todo teatro grego, o que sobrou, é uma fonte de inspiração para os modernos. E todos nos conhecemos as ricas metáforas nascidas da fabulação grega. Como, por exemplo: presente de grego. Cavalo de Troia. Troiado.

Só indo à Grécia amigo, subindo a Acrópole, visitando o  monte Olimpio. E para deleite  tagarelar com os deuses e ouvir as suas histórias, que são inumeráveis. E também dando nuvens a imaginação, pode-se encontrar   com Sócrates na hora em que ele bebeu cicuta, ver Platão, por ali escrevendo o Banquete. Aristóteles escrevendo a sua Poética. Narciso caindo dentro de uma fonte e se transformando em uma flor. Cupido fazendo suas brincadeiras de amor com arco e flecha. Medusa, monstruosa, com suas serpentes na  cabeça. Edipo decifrando o enigma da esfinge, que desesperada se lança ao abismo. Arquimedes saindo da banheira e correndo nu  em pêlo,  pelo meio da rua gritando. Eureka. Eureka. Heraclito dizendo ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio O conhecimento da mitologia grega é inesgotável porque tem como alavanca a imaginação. E se alimenta de sua própria metamorfose fecundando novos textos literários.

Do centauro Quirão deriva a palavra quiromancia, leitura das mãos, magia, e daí surge o termo cirurgião, cirurgia,  quem tem habilidade com as mãos para operar pessoas e animais. Grego. Quase tudo é grego embora nem todo mundo entenda. Caligrafia, por exemplo, quer dizer, escrever com letras bonitas, grafar, grafite.

Mas para fechar a cortina deste pequeno passeio pelo mundo grego nada melhor do que se lembrar dos poetas trágicos: Esquilo, Sófocles e Eurípedes, e também do comediante Aristófanes. E de Plutarco um dos primeiros biógrafos da antiguidade. Graças a mitologia grega temos hoje uma literatura  excelente expressada e derivadas do étimo grego e latino. Pois toda literatura nasce do mito e da lenda. E para citar mais uma vez Leminski: “Fatos não se explica com fatos, fatos se explicam com fábulas. Daí a necessidade da narrativa com todo o seu potencial profético e  protéico da qual não passamos de meros personagens cada qual perdido no labirinto de seu enredo tentando matar o Minotauro que foi morto por Teseu”.

poeta William


Uma tarde no Botero


Nem Buarque, nem Mendes. Quero falar de outro Chico, o Salles.  Pra quem não o conhece, esse paraibano de Sousa é um militante de causas não perdidas, um guerrilheiro da caatinga na selva urbana carioca, um artista popular brasileiro em sua saga pela divulgação da cultura nordestina. Domingão no mercadinho São José, rua das Laranjeiras, no Botero, e lá está o Chico Salles e seu grupo apresentando pérolas de Gonzagão, de Jackson do Pandeiro, de Gordurinha e do próprio cantor, sim, por que Chico Salles também compõe no universo da cultura “borborêmica”, na cartilha da caatinga, do pé de serra.  Em tristes tempos de universitários maltratando a canção brasileira, sertanejos e forrozeiros amarelamente acadêmicos, eis que surge a voz do Chico explodindo em nuances do xaxado, do baião, do xote, do frevo, do samba. Radical no sentido mesmo de raiz, de medula, eis o Chico Salles levantando a poeira do chão, resgatando o mundo de Zé Limeira a Capiba, de Taperoá a Salvador, de Cachoeiro do Itapemirim a Exu. Evoé, Chico. Não é o Mendes, mas sua luta pela preservação da seiva da música popular brasileira é de impressionar. Fazer arte no Brasil é matéria mais que quixotesca, meu amigo, é uma espécie de doce suicídio a conta-gotas e Chico Salles, cabra arretado, não se faz de rogado, não tem medo de cara feia, de funk ou pagode, e enfia um belo xote guela abaixo do mercado devorador de poderosas. Não é o Buarque, mas castiga lá seus versos e melodias, embebidos na cachaça de cabeça de Campina Grande a Uiraúna, passando, é claro, por Sousa. Esse é o Chico Salles Araújo, compositor, cantor, poeta, cordelista, botafoguense (que ninguém é perfeito) e, acima de tudo, um nordestino carioca ou será um carioca nordestino?

(Leo Almeida)
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hoje (27/10) tem de novo: Mercadinho São José, Laranjeiras. Lá pelas 3 horas. Chico convida hoje Carlos Malta para comemorarem o aniversário do Durval, o zabumbeiro. Sempre no último domingo de cada mês. Desenho de Gervásio.

Colombo



Velas me transportam com a marujada
Miro as crespas ondas no  horizonte
E sigo a minha bussola meio avariada
Já não sei se recuou ou vou adelante.
 
A Europa está  distante atrás de mim
Já não dá para voltar ao meu passado
Tenho que navegar preciso até o fim
Bandeira tremulando ao vento alado.
 
Se vou embicar num porto é muito cedo
Para saber das aventuras desta viagem
Desse pélago tenebroso eu tenho medo.
 
Não sei se descobrirei algum continente
Mas já  briguei de mais com a equipagem
E do alto da gávea vejo estranha  gente...
 
(Geraldo Borges)
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quadro de Edward Moran, 1898

BSB


domingo, 13 de outubro de 2013

A TRAJETÓRIA DO MAL


(Edmar Oliveira)

Conheci o mal ainda menino. Estudamos no Colégio Batista de Teresina. Mas ele foi, no quarto ano, para Recife, como acontecia sair de Teresina os filhos da elite piauiense. Como eu fiquei, tinha notícias dele por um amigo que saiu junto com ele. Na Veneza brasileira conseguiu a ponte para vir a ser o que seria: foi oficial de gabinete do vive governador nomeado pela ditadura militar. Ali despertava seu gênio. Foi um dos fundadores nacionais da Arena Jovem, braço partidário do governo militar. Missão dos jovens militantes: arregimentar simpatizantes da ditadura, construindo o arcabouço do pensamento de direita, em contraponto aos militantes da esquerda que eram torturados e morriam nos porões da ditadura. Eu que simpatizava com a esquerda tinha asco do meu colega que babava os poderosos e passava a ser um dedo duro, tão temido por quem era contrário a ditadura sanguinária.
Enquanto nós vivíamos o medo dos anos de chumbo, meu gorducho colega já tinha cargos em Brasília no INCRA, que operava em nome do agronegócio e contra a reforma agrária, depois na EBTU empresa que enterrava a rede ferroviária nacional, facilitando a indústria automobilista. Enquanto nós perdíamos direitos e liberdade ele ganhava prestígio pessoal.
De volta ao Piauí tentou ser deputado federal pela ARENA. Não se elegeu, mas ficou como suplente, sendo efetivado pela morte providencial de um deputado eleito que lhe abriu a vaga. Com a extinção da ARENA na abertura, ele foi para o PP, substituto natural da direita oficial. Mas eram tempos de abertura, portanto ele flertou com o PMDB, tendo conseguido entrar no partido seduzindo o velho Ulisses Guimarães com jantares onde servia capote, capão cheio, bode no leite de coco, cajuína e mangueira trazidos do Piauí. O velho glutão e bom de copo, pai da constituinte, deixou escancaras as portas do partido de oposição para o antigo militante da direita. Foi eleito para deputado estadual por três mandados e, nessa condição, foi vice-líder do governo Sarney e Secretário da mesa diretora da Câmara. O último mandado já foi pelo PFL, sua casa herdeira da ARENA e do PP. Ainda no PMDB foi eleito prefeito de Teresina com uma aliança com Wall Ferraz. Saiu para o PDT e chegou ao PFL, depois DEM onde permaneceu mandando na política e sendo eleito senador até ser expulso do quadro político do Piauí por um indiozinho vindo de Oeiras, que ousou desbancar o nosso conhecido na companhia de Mão Santa e outros mandatários da Capitania Hereditária do sertão.
Achei que o sapo tinha morrido afogado. Passado o primeiro decênio do século XXI as ideologia se misturaram de uma tal maneira que o nosso velho conhecido volta, com a boca cheia, filiado ao Partido Socialista Brasileiro, partido que tomou o nome de Arraes em vão, fazendo o avô estrebuchar na cova quando o neto avacalha quaisquer resquícios socialistas em nome do poder. Esse partido, que abrigou uma Marina que não conseguiu armar sua rede com sustentabilidade, hoje está cheio de evangélicos, amantes da “cura gay”, reacionários de todos os matizes e pode abrigar com conforto o nosso desafeto desde menino. O mal venceu!
 
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desenhos de Izânio Façanha
 

1 verso

O NASCER DA CRIAÇÃO
 
A ideia atravessa o nada
Cruza o território árido da memória
Busca a rima mais disfarçada
Que se esconde do fundo da estória
 
De lá a corda tesa da emoção
Resgata na água salobra desse poço
Tudo que habita o coração
Onde é retido do amor o mero esboço
 
Até que as palavras pronunciem
Traduzindo o silêncio que há na mente
Fazendo com que os versos gritem
A beleza que mora na gente
 
(Climério Ferreira)

O vaqueiro do nordeste

(Geraldo Borges)
 
Na verdade, uma das profissões mais antigas da humanidade é a do vaqueiro. Para se expressar com mais dignidade clássica, é a do pastor de ovelha. Tudo começa nas páginas de Bíblia, no livro de Gêneses. Ali se registra o primeiro conflito agrário. Caim mata Abel, que era pastor. Este exila-se em algum lugar do mundo. E a vida continua, com outros pastores a cuidar do gado, levando o rebanho ao poço para matar a sede.

Essa é a paisagem do Oriente. Um dos vaqueiros mais famosos da história chamava-se Jacob, e era muito esperto, enriqueceu cuidando do gado de seu tio,e, ainda, de quebra ficou com as suas duas filhas, Lia e Raquel. David também foi pastor, e depois rei. E com o tempo, por conta do cristianismo a palavra pastor tornou – se uma magnífica metáfora. Passaram a existir pastores de alma, o que é pior, porque elas são famintas.

               Mas, vamos sair do Oriente. E nos embrenhamos na caatinga do nordeste, onde dizem que o vaqueiro e antes de tudo um forte, e por onde o boi passa ele passa com o seu cavalo, quer dizer, o cavalo de seu patrão. O cavalo de fábrica como é chamado. O vaqueiro mais conhecido das minhas leituras chama-se Fabiano. E ele, mesmo sendo antes de tudo um forte não aguentou a vida no campo por muito tempo. Fugiu para a cidade em busca de futuro para os seus meninos que nem nomes tinham. Tratava-se do menino mais novo e do menino mais velho.

               O vaqueiro é um tipo singular na galeria humana nordestina, de algum modo é diferente do resto dos agregados das fazendas. Tem certos privilégios que vieram do tempo da colônia. Com o tempo apartando as crias a qual tem direito pode constituir a sua própria fazenda. Pelo menos isto acontecia nos meus tempos de menino. Posso dizer que sou neto de vaqueiro. E que tive alguns tios que foram vaqueiros. Ainda hoje posso imaginá-los chegando em nossa casa no interior, montados  a cavalo, parecendo uma figura medieval, com a sua o casaca de ouro de veado. Naquele tempo era de veado mesmo. Bem curtido. Perneiras, alpercatas de couro, chapéu de barbicacho, esporas. Eu gostava de ouvir o som das esporas.

Todo esse aparato me impressionava. Cheguei a pensar em ser vaqueiro. Vaqueiro de meu pai. E com o tempo, fazendo economia, e juntando as minhas crias, montaria a minha própria fazenda. Mas os sonhos de menino não duram mais do que o calendário da infância.

               Estudando história, já na cidade, fiquei sabendo que a origem da formação de nosso estado vem da pecuária intensiva, é que por isso mesmo escravos eram de pouca monta, serviam apena no âmbito doméstico. Não serviam para ser vaqueiro. Porque vaqueiro sugere liberdade. Largos espaços e cavalgadas. Fiquei sabendo que um vaqueiro governou o Piauí e virou visconde.

Antigamente o vaqueiro aposentava-se pelo Funrural, instituto do governo que não existe mais. Muitos vaqueiros se aposentam ao cair do cavalo, como inválidos.

O congresso criou uma lei reconhecendo a profissão de vaqueiro, esta profissão tão velha como o mundo agora foi reconhecida, juntamente, no momento em que nos parece está quase em plena extinção, tornando-se simplesmente folclore, patrimônio cultural de uma região.

No nordeste, onde se encontra verdadeiramente o vaqueiro típico do Brasil, as transformações econômicas e sociais estão eliminando o vaqueiro. A agropecuária, o agro negócio, a soja  tem concorrido para isso. As pequenas fazendas ainda precisam de vaqueiro, geralmente o próprio dono. A criação intensiva dispensa o vaqueiro tradicional, o Fabiano, aquele que curava a rês a distancia pelo rastro. Não é mais preciso, existem veterinários, e até ar condicionado para novilhos reprodutores. As pessoas que hoje trabalham no campo detêm uma alta tecnologia, sabem muito mais do que arrear um cavalo.Tem gente aboiando gado até de moto.

               O nome de vaqueiro registrado como profissão para o homem do campo, que trabalha com o manejo do gado e que ajudou a construir os alicerces econômicos da civilização do couro pode até ser uma justa homenagem a esses heróis anônimos do sertão.  Pouco ou quase nada contribui, para a verdadeira emancipação do homem do campo que vive à margem das estradas em acampamentos provisórios esperando uma prometida e adiada reforma agrária. São vaqueiros desvalidos que não estão no campo e muito menos na cidade. E como o governo não consegue resolver o conflito entre agricultura e pecuária, cada dia um Caim mata mais um Abel.
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foto: Vaqueiro do Vale de Canindé de Alex Galvão

Caiçara

 
Lázaro José de Paula
 
POR  UM  TRIZ  TE  PEQUEI
COM  MEU   DESEJO
RISCO  A  NEVOA  BLUE  DO  BEIJO
OH ! TIGRESA,  RUGE  A  FLOR   DE FORTALEZA
DO  BRASÃO IMPERIAL   FLOR  DO  CAMPO
CARREGO  ENTRE  DENTES
TE  DEIXO  DORMENTE  
E  ROUBO  TEU   AMOR
DEUSA  RARA  ,  SOU TOMÉ  E  ACREDITO
NESSE  LOVE  TÃO  BONITO
NESSA  ARENGA   DE  AMOR
PACAJUS  E  PAJUSSARA
FAZ   TEU  NINHO  DE  ARARA
NESSA  BRUMA  DE  LUNDU
LUA   CLARA  DE  DOÇURA  CAIÇARA
ANJO  AZUL  DO  HORIZONTE   
NUA  NA  ÁGUA  DESSA  FONTE
ASA   NEGRA  DE  ANUM
VAGALUME  ALUMIA  A " NOTE"  DENSA 
LAMBE  MINHA  FLECHA   TENSA
DE  LOS  SANTOS   DE  LA  CRUZ
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desenho: Amaral

Barragens no Rio Parnaiba

(Geraldo Borges)


Nunca pensei que um dia o cenário onde brinquei quando criança estivesse ameaçado  de ser coberto pelas águas de uma barragem. Pois é isso leitor. O poder desenvolvimentista do estado está com um projeto de construir uma barragem no médio Parnaíba, na altura da fazenda Casteliano. E essa construção vai inundar uma boa parte das terras ria bacia do  rio Parnaíba. Um furacão. Flora e fauna ameaçada.

Quando eu era menino, na década de  cinquenta ninguém sonhava com luz elétrica no interior, enxergávamos o nosso pequeno mundo infantil com luz de lamparina, lampião, e no máximo petromax. No nordeste, principalmente no Piauí, vivíamos ainda uma economia pré capitalista, e, no interior o que predominava era a economia de subsistência. Ninguém sonhava com barragem.

Em Teresina existia uma usina  termo elétrica tocada a lenha, que ficava na beira do rio. Dava para o gasto, com luz até as nove horas da noite

Na década de sessenta, com o golpe, o capitalismo, começou a dar as caras com maior expressão; por estes rincões; os vapores gaiolas foram substituídos pelos carros, mais velozes, abriram-se  estradas, e deram inicio a uma barragem no alto Parnaíba, na região de Floriano pela construtora Mendes Junior. Eu estive lá no canteiro de obras e vi a parafernália que representava a luta pelo desenvolvimento econômico. Engenheiros e operários, cada qual  dando conta de seu recado. Saí de la impressionado. A barragem quase não termina. Para falar a verdade nunca terminou. Claro que foi inaugurada, e está iluminando muitos lares e tocando fabricas. Digo, nunca terminou, por que nunca terminaram as eclusas, ou terminaram? Por falta delas  a barca do sal de nosso governador mirabolante nunca passou de Floriano. Quer dizer, também, nunca foi terminada. Pois não alcançou o seu objetivo.

Agora querem construir outra barragem sobre o dorso do velho monge cansado. Sugar o seu sangue já anêmico, raspar a sua barba, mudar o seu cenário, colocar debaixo d’ água  fazendas e fazendas, por em risco populações desavisadas. Acho que ainda é tempo de esquecer esse projeto. Por que não criar um programa para terminar obras abandonadas, existentes, por esse país a fora; Mas, na luta do perde e ganha, alguém vai sair lucrando com essa barragem.

E preciso muito cuidado. No frigir dos ovos uma barragem é um risco anunciado. Principalmente em um país chamado Brasil, onde não podemos meter a mão no fogo  pelos nossos governantes.

 Construir uma barragem nos tempos de hoje é uma empreitada traumática, é como tocar fogo em um formigueiro. Muita miséria, muita desamparo. Temos o exemplo da barragem de Belo Monte uma saga de sofrimento que ninguém sabe onde vai parar. E o desvio do rio São Francisco? Um grande desvio  faraônico fruto da arrogância e vaidade dos  nossos governantes, quando há meios mais econômicos e mais fáceis de resolver  o problema da seca.

Que fazer? Não é exagero dizer que a construção dessa barragem ameaça até mesmo a periferia de Teresina, que em vez de ficar inundada de  luz ficará inundada de água. Bem. O único jeito de evitar tudo isso é demolir a barragem antes dela sair do papel fazendo uma grande mobilização popular contra tal famigerado projeto. Pode não dar em nada, como sempre acontece. Mas, pelo menos, mostra a repulsa que o povo tem por esta mania de construir barragens, empreendimento que já devia ter sido descartado do projeto do capitalismo, que fala tanto de desenvolvimento sustentável...

2 fotos

Fotografia
 
lembranças tecidas
com as mãos do tempo
artesão de cores em sépia
 
(Ângela Weingartner Becker)
 
 
 
Fotografia
 
o tempo desce
como um véu de renda
nas lembranças
das crianças
 
(Lelê Fernandes)
 

A criança e a vitrine

(Luíz Horácio)          

Uma criança atravessando a rua para entrar no ônibus que a levaria de volta para casa. Era isso, ou quem sabe, apenas mais uma criança atravessando a rua. Uma criança atravessando uma rua movimentada. Das mais movimentadas. Não posso afirmar se tinha nove ou dez anos. Talvez onze. Não sei. Não lembro. Quero esquecer. Não consigo.
Não lembro ao certo o horário, mas era  meio da tarde, disso tenho certeza.
Fazia tempo, não sei ao certo quantos anos, nós não morávamos juntos, ele vivia com a inocência e eu dividia o tempo com a culpa.
Culpa … era uma criança, uma criança atravessando a rua, e eu…Eu passava por ali, indo não sei, não lembro, para onde. Fugindo. Na certa fugindo. Naquela época eu já fazia isso, hábito que conservo. Fugir, fugir de mim, me afastar ao máximo dessa capacidade que tenho, de sofrer, e de fazer sofrer.
Não posso afirmar que aquela criança sofria, que seu sofrimento fosse motivado pela minha ausência. Não, eu nunca acreditei que pudesse provocar saudade em quem quer que fosse. Muito menos numa criança, muito menos numa criança, como aquela, que tinha seus brinquedos.
Eu passava por aquela rua, a criança acabara de sair da escola de natação, pequena, levava uma bolsa enorme que sacudia pelo ar, parou frente a vitrine de uma loja de brinquedos, sonhou por instantes, breves instantes, com algo que gostaria de ganhar, eu passava. Uma criança solitária olhando a vitrine de uma loja de brinquedos, poucas imagens me assombram mais do que essa. A criança impotente frente a algo que ela cobiça. Nada a fazer. E aquela criança era meu filho. Na rua...sonhando.
Logo a criança atravessaria a rua, não tive tempo de vê-la entrar no ônibus.  Não fui capaz de descer da condução, do ônibus, do táxi, do carro, não lembro, não consigo lembrar, que me levava. Era preciso chegar a algum lugar. Meu filho, a criança que atravessou a rua, estava só. Será que em seus pensamentos ele sabia que estava só, que seu pai o ignorara por  motivos que até hoje desconhece. O que pode ser mais importante que um filho? O que pode ser mais importante para um pai que o seu filho? O quê?
Há quanto tempo ele cumpria aquele trajeto, atravessava aquela rua movimentada e, ao chegar à casa, a sua espera, quem? A empregada.
Ah como eu gostaria de saber o que se passava em sua cabeça naqueles dias sem pai, naquele momento frente a vitrine, na hora em que acionava a campainha do apartamento e era recepcionados pela empregada.
Sei que as crianças não sabem sentir raiva e meu filho, longe de mim desde seus três anos, não sabia o significado de ter pai.
Pablo, Pablo é o nome de meu filho, eu escolhi chamá-lo assim, sua mãe aceitou.
Ele tem trinta anos e um filho, eu conservo a culpa e um medo. De um dia ser visto por ele, tentando atravessar a rua na precariedade de minha velhice, e ele passar, me ignorar; sem minha covardia, parar e permitir que o veja.
Uma vez conversei com ele sobre o dia em que o vi saindo da escola de natação. Mostrei-lhe minha preocupação e ele, homem feito, disse apenas; “queria que eu ficasse trancado em casa?”
E eu não disse o que precisava ser dito: “não, eu queria estar segurando sua mão”
A vida não oferece segunda chance, é tolice acreditar no contrário, a vida em seu gesto sádico aponta o caminho onde ocorrerá o sofrimento de alguém, perpetrado por mim, por você.
Adiante, bem adiante, em seu gesto cruel, permitirá a repetição, e eu, você, buscaremos nos redimir, lamentavelmente os atores de tal cena serão outros.
A quem impingi minha crueldade, travestida de omissão, falta de amor, falo de Pablo, meu filho, ah esse jamais terei outra chance.
Recomenda-se que não me aproxime de meu neto.

 


Sertão


 
Geraldo Borges 

Sertão remela no olho
Ranho moco no nariz
Feijão bichado gorgulho
O que diz e não diz

Sertão José de Alencar
Muito além daquela serra
Moinhos de vento a girar
Muita energia que encerra

Sertão pintura rupestre
Origem que vem de longe
Foi conselheiro seu mestre

Sertão quadro na parede
Na capela o sino que tange
Na missa eu te vejo verde