domingo, 24 de julho de 2016

SEM O NORONHA NÃO ÉRAMOS NÓS

 
foto: Revestrés

(Edmar Oliveira) 

O ano de 1971 foi marcante na minha vida. Eu e Durvalino Couto fomos até a casa de dona Saló entrevistar o piauiense que tinha participado do movimento que mudou a Música Popular Brasileira – a Tropicália. Nós sabíamos da importância de Torquato Neto, que estava passando férias na terra, embora Teresina não o reconhecesse. Ele topou a entrevista, desde que lesse antes de publicássemos no jornal Opinião, num encarte feito por nós dois mais o jornalista Paulo José Cunha, que nesta época estava estudando em Brasília. Paulo é primo de Torquato e facilitou a entrevista, mesmo de longe. Não tinha a internet, meus amigos. A gente se comunicava pelo correio mesmo, acreditam?

Torquato não só aprovou a entrevista como ficamos amigos e ele passou a colaborar com nossa folha cultural que se chamava, sintomaticamente para a época, de Comunicação. Pregamos o jornal com a entrevista nas escolas para ver se os estudantes de então conheciam Torquato Neto. Um nos procurou e ficamos amigos, apenas um, Carlos Galvão. Este nos apresentou a Arnaldo Albuquerque, o gênio da raça mafrense. Logo conhecemos o Dr. Noronha – colega de Torquato Neto, médico pediatra que morava na rua Eliseu Martins, onde também tinha seu consultório.

Torquato, depois desse pequeno, mas intenso, contato voltou para o Rio. O tempo entre este encontro e o próximo e último, em 1972, ocupa na minha memória um grande espaço desproporcional. No quintal da casa do Noronha tinha um quarto com aparência de estúdio, onde nos deparamos com a maior coleção de LPs que jamais tínhamos visto. Uma pequena biblioteca, mas com livros indispensáveis para a nossa formação. A generosidade do Doutor – como chamávamos carinhosamente Noronha – foi demais importante para mim e creio que para os meus companheiros. Tínhamos liberdade de entrar a qualquer hora, passávamos o dia lendo e escutando discos que sequer tocavam no rádio. Ele ia trabalhar na Faculdade de Medicina e depois no consultório. Quando acabava ficávamos de papo por muito tempo. Ele deitado numa rede que atravessava o quarto e nós a sua volta sugando informações que foram por demais importantes para a nossa formação de pessoas.

Noronha não se importava com a sociedade conservadora da época que condenava sua atitude de abrigar uns hippies na sua casa. Ria dos comentários maldosos sobre sua homossexualidade. Entre nós nunca tocamos nesse assunto tabu para a época. E ri muito da última entrevista do Doutor na Revestrés: “tudo que falam de mim é verdade”. E eu tenho a certeza que sem o Noronha não éramos nós. 

Torquato voltou para nosso segundo e último encontro. De longe sabíamos que agora ele estava metido com um negócio de cinema super-8 e tinha feito um filme como ator – contracenando com a Scarlet Moon – para o Ivan Cardoso. Eu, Galvão que nem o conhecia ainda, e Noronha nos preparamos para recebe-lo com uma proposta de ser ator num filme nosso. Meninos, vocês imaginam a pretensão daqueles cabeludos de então?

Noronha viabilizou uma câmara emprestada e os rolos de filmes para a aventura. Três. Com esses doze minutos contados passamos noites desenvolvendo a viabilidade de um roteiro meu. Absolutamente bobo. Arnaldo, que era fotógrafo, filmaria; Galvão dirigiria. Isso tudo combinado antes do Torquato chegar. E ele topou! Se comportou como se ele fosse o principiante e nós os bambas do cinema. “Adão & Eva – do paraíso ao consumo” foi realizado nas areias do Poty, nas ruas de Teresina, na casa do Noronha. Depois o filme se perdeu e virou uma lenda. Depois Torquato fez Terror da Vermelha, o filme definitivo que nem chegou a montar. Depois fizemos – cada um de nós – seu próprio filme. E o Doutor viabilizou a todos. 

Lembro ainda que montamos o primeiro musical de Teresina - chamado de Udigrudi - com o Pedro Veras, Ana Miranda, Pierre Baiano, Gordinho, o batera Jacó entre outros. Cenografia de Arnaldo, dirigido por mim e produzido – quer dizer, viabilizado por Noronha. Esse projeto foi exitoso, se pagou e deu lucro ficando duas semanas em cartaz. Com minha parte no lucro vim ao Rio pela primeira vez.

Todas as nossas loucuras juvenis – cinema, jornais, teatro, músicas, sonhos – só foram possíveis pela generosidade do Doutor. E ele passou a fazer parte de nossa vida e – ainda bem – um dia eu disse tudo isso a ele. Agradeci e agradeço de coração.

Depois que nos separamos – o grupo conhecido por Gramma, por causa do jornal desse nome – continuei com ele em Teresina. Foi meu professor de Pediatria e depois preceptor de estágios rurais – uma espécie de Saúde da Família da época. Também teve grande influência na minha formação médica.

Depois eu também vim embora e ele ficou no Piauí, tendo sido Prefeito de Monsenhor Gil e Secretário de Educação de Governo do Estado. Sempre que eu ia a Teresina era obrigatório um nosso encontro. Sempre que ele vinha ao Rio também.

Nunca parou de ser um agitador cultural, um homem à frente do seu tempo. Quando ele ganhou um prêmio no Ministério da Cultura – gestão do Gilberto Gil – com seu documentário Balancê/Baião veio ao Rio receber o prêmio merecido e trouxe seu Zé Coelho, um octogenário sinhozinho de Monsenhor Gil, personagem principal do documentário. Lembro de três episódios. No dia que eles chegaram nós saímos para jantar. O Zé Coelho ficou no hotel porque o Noronha achou que ele estava cansado. Quando ele voltou ao hotel encontrou o velhinho na portaria do hotel ensinando uns passos de Balancê para os recepcionistas. No dia seguinte fomos mostrar o Rio para o Zé Coelho, que nunca tinha visto o mar. Dentro de uma barca na Baía de Guanabara admirava o marzão e me confidenciou que era maior do que a lagoa de Canindé. Caminhando pelo Aterro do Flamengo, admirando a paisagem e o Pão de Açúcar, voltou a falar no meu ouvido: “meu fí, num fosse pela loucura do Noronha eu tinha perdido tudo isso! ”

Há uns dias ele escreveu numa rede social que estava com câncer de fígado. Assim de chofre, como era seu estilo. Fiquei preocupado, mas não achei que ele ia assim tão depressa. Soube de sua morte logo depois. Assim, apressada como ele era. Fiquei com a impressão que ele bateu a porta, deixando a vida pra trás, com uma frase que ele sempre dizia quando não estava gostando: “isso aqui tá muito chato, meu chapa. Tá muito repetido. Fui!”



  

A RAZÃO QUE A PRÓPRIA RAZÃO DESCONHECE



desenho: Máximo


(Edmar Oliveira)

Essa semana as folhas trouxeram uma estória deliciosa acontecida na Noruega. Contam que uma senhora de 92 anos fugiu de uma casa de repouso para viver com um namorado de 87 anos.

Os responsáveis pela clínica deram por falta da senhorinha e empreenderam uma busca para tentar acha-la. Foi encontrado nas proximidades de um parque um andador abandonado, sendo uma pista da fuga. Contam que o amante a tinha visitado recentemente e esse foi o segundo elo na investigação da fuga. Sem mais detalhes, a notícia diz que a procura foi encerrada quando descobriram que ela estava morando com o namorado em Estocolmo, na Suécia. A clínica ficava nos arredores de Eidsvoll, ao norte de Oslo. Mais, as folhas não dizem. Nem a identidade dos enamorados. Nem a clínica, nem responsáveis – se haviam – recorreram ao desenlace do caso.

Me interessei em pesquisar os dados de que dispunha viajando no google maps. O andador foi encontrado num parque de Eidsvoll, que fica a 72 quilômetros de Oslo. Da provável clínica até a estação de trem tem de se caminhar dois quilômetros. O andador só foi encontrado num parque já na cidade. A velhinha andou com ele dois quilômetros? Tudo parece indicar. Deve ter ido de trem até Oslo. A viagem é feita em 35 minutos num trem moderno. Agora vem o mais inusitado: de Oslo a Estocolmo são 530 quilômetros que se pode fazer em sete horas de ônibus superconfortáveis ou cinquenta e cinco minutos de avião. Como a senhorinha terá ido?

O namorado foi busca-la em Oslo ou esperou em Estocolmo? Parece ter sido tudo muito bem combinado. Mesmo que ela tivesse alguma doença degenerativa parece que o amor tem a capacidade de curar de forma inconteste. E parece que agora na modernidade não apareceram psiquiatras para interditar um amor que só devemos aplaudir.

Lembrei-me do caso de Bárbara de Jesus que eu tive contato num livro de Magali Engels[1], quando fiz uma pesquisa para meu primeiro livro. Aconteceu no início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro e não teve um final feliz.

Bárbara de Jesus, viúva de 67 anos, escandaliza a sociedade do Distrito Federal, com amplo destaque na imprensa, por querer casar com um tal de Ayres Pereira de Mello, português, também viúvo, de 52 anos. A mídia da época, contrária ao casamento, já noticiava Bárbara como octogenária e Ayres como um moço de trinta e poucos anos, aumentando o escândalo. A família de Bárbara se opõe ao casamento, por ser Ayres desempregado e temendo pelos bens de Bárbara.  Contrata Juliano Moreira e o Dr. Rego Barros para um parecer psiquiátrico, usado juridicamente, atestando que a setuagenária, apesar “de não sofrer nenhuma psicose definida, tem, por sua extrema ignorância”, uma evidente “insuficiência mental”. Após longa briga judicial, com ganhos de Bárbara em dois julgamentos, ela termina por ser interditada, de acordo com o diagnóstico pericial dos doutores psiquiátricos.

Bárbara de Jesus não teve a sorte da senhorinha norueguesa de agora. O amante sueco, bem mais velho que o nosso Aires, teve a determinação de perseguir o amor de sua vida. Os velhinhos europeus não foram vítimas de nossa douta psiquiatria, que teve no festejado Juliano Moreira um impedimento para a felicidade dos muitos mais jovens amantes brasileiros do século passado.


[1] Engels, M. “Os delírios da razão”, ed. Fiocruz, 2001




Uma charge do Millôr bastante atual


Futuro sem passado


O facebook me avisou do aniversário do meu amigo Arnaldo Albuquerque, falecido em janeiro do ano passado, como se ele ainda estivesse vivo e fazendo a idade atual.

Creio que dentro de alguns anos essa rede social estará cheia de páginas de pessoas mortas. Verdadeiros mortos-vivos na internet.

A efemeridade da internet tem problemas a longo prazo. Talvez terei que desativar este blog, que tenho há quase noves anos, porque ele está se desconfigurando. Parece que não aguenta a quantidade de postagens ao longo de tanto tempo. Blogs foram feitos para durar pouco.

E eu que pensava que estava guardado tudo que escrevi durante esses anos todos! Trabalho perdido.
Também acho que essas fotos "deletáveis" não terão longa vida. Estamos fazendo uma informação que se perde rapidamente.
Não se guarda os e-mails como se guardava correspondências. Não poderemos conhecer mais verdadeiras histórias de correspondências, como - por exemplo - as cartas trocadas entre Freud e Lou Andreas Salomé, por exemplo.

Não existe mais as versões anteriores de uma obra literária. Os remendos eliminam a versão anterior. Não teremos mais uma história da constituição de um romance ou a correção dos poemas de Torquato, tal como ele deixou.

Não sei se estou nostálgico, mas sei que tenho um medo de pensar que teremos um futuro sem passado!
(Edmar Oliveira) 

1000TON


Amarante





(Geraldo Borges)
                              
Conheci a cidade ribeirinha de Amarante quando ainda era menino. Eu vinha de Teresina e ia de férias para a propriedade rural de meu pai que ficava abaixo da cidade de Palmerais, antigamente, chamada de Belém. Geralmente fazíamos a nossa viagem para a    Bacaba a bordo de um vapor gaiola. Mas nesse período   a navegação a vapor já estava em plena decadência. E, por isso mesmo, meu pai bolou o seguinte plano.

Viajaríamos de carro, tipo jardineira, para a cidade de Amarante. Saímos da Praça Saraiva, local onde ficavam os Expressos. A Estrada era ruim, carroçável cheia de buracos, curvas perigosas.

 A jardineira deu o prego a boquinha da noite. Devido a demora para consertar o carro, chegamos   na cidade de Amarante   de madrugada. A neblina cobria os telhados dos casarios cercado de morros. Era como se tivéssemos em uma cidade fantástica. Alguns vultos noturnos cruzavam as ruas.

Agora íamos descer em uma canoa até a Bacaba, onde nossa mãe estava nos esperando. O canoeiro contratado por meu pai para o serviço fluvial já estava na beira do rio esperando por nós. Era o mês de julho, mês de férias escolares, e mês de frio. De caburé piando, piando. Tremendo de frio entrei na canoa. Lembro-me que não suportando o frio me agasalhei dentro de um saco de estopa daqueles de estocar coco babaçu. O canoeiro era bem-humorado, e contou piadas para animar a gente.

A lua minguante refletia-se palidamente sobre as águas do Parnaíba. Lá para as tantas, passamos rente ao morro da Arara. Aí o canoeiro falou: é aqui nesse morro que as araras costumam fazer seus ninhos. Do lado do rio, no abismo para dificultar aos homens a sua caça. Nunca me esqueci essa observação. Quando o canoeiro parou de falar ouvia se apenas o bater do remo no costado da popa das canoas que descia pelo canal caudaloso do rio daquele tempo. Não custou muito estávamos passando rente a cidade de Palmerais.

Logo que o sol apareceu, eu saí de dentro do saco de estopa. E ouvi meu pai dizer: estamos chegando na fazenda Tamboril. Tamboril era uma propriedade rural de um tio meu. Meu pai mandou o canoeiro aportar lá. Aí ordenou que eu subisse a ribanceira do porto e fosse avisar o meu tio que preparasse um café para nós. Dito e feito. O café tinha de tudo. Forramos o estomago até ficarmos saciados.

Chegamos a Bacaba mais ou menos às dez horas da manhã. Esse foi o primeiro contato que tive com a cidade de Amarante. Embora quando menino o seu nome me fosse familiar. Pois meu pai costumava comprar rapaduras fabricadas na cidade de Amarante para sortir o seu comércio na fazenda Bacaba.

Quando fiquei jovem, Amarante entrou em minha vida, no meu mapa de recordações pela voz do poeta Da Costa e Silva. Saudade asa de dor do pensamento nunca mais fez me   esquecer a cidade de Amarante. Rugidos vãos de canaviais ao vento traziam-me o sabor de suas doces rapaduras.

Depois apareceu a figura simpática do professor Odilon Nunes, um homem magro e bem fornido de ideias e que revolucionou a Pesquisa história no Piauí. A Argila da memória me faz lembrar também Clovis Moura, filho da terra amarantina. Cidade onde os rapazes se masturbam ou se apaixonam pelos animais e o delegado apenas faz de conta.

Outra figura que emerge do rio das minhas lembranças é Luis Ribeiro Gonçalves, personagem importante na cultura piauiense, foi aluno e Da Costa e Silva em Amarante, onde passou a infância, e com o poeta aprendeu confeccionar papagaio. No início do século vinte Amarante estava no auge do mercantilismo, negociava diretamente com a Europa.  Na cidade havia duas bandas de música. As mulheres iam a missa com vestidos caros e luvas luxuosas. Cunha e Silva, meu velho professor de história também era de Amarante. Carvalho Neto é de Amarante. Mas tudo isso são retalhos do passado no rio do tempo.

Hoje Amarante é uma cidade morta, ancorada à beira de um rio moribundo, berço de muitos vultos que deixaram o fantasma da infância nos becos e ruas da cidade, no adro da matriz e desceram o rio fugindo da aldeia em busca da metrópole.