foto: Revestrés |
(Edmar Oliveira)
O ano de 1971 foi marcante na minha vida. Eu e Durvalino
Couto fomos até a casa de dona Saló entrevistar o piauiense que tinha
participado do movimento que mudou a Música Popular Brasileira – a Tropicália.
Nós sabíamos da importância de Torquato Neto, que estava passando férias na
terra, embora Teresina não o reconhecesse. Ele topou a entrevista, desde que
lesse antes de publicássemos no jornal Opinião, num encarte feito por nós dois
mais o jornalista Paulo José Cunha, que nesta época estava estudando em
Brasília. Paulo é primo de Torquato e facilitou a entrevista, mesmo de longe.
Não tinha a internet, meus amigos. A gente se comunicava pelo correio mesmo,
acreditam?
Torquato não só aprovou a entrevista como ficamos amigos e
ele passou a colaborar com nossa folha cultural que se chamava,
sintomaticamente para a época, de Comunicação. Pregamos o jornal com a
entrevista nas escolas para ver se os estudantes de então conheciam Torquato
Neto. Um nos procurou e ficamos amigos, apenas um, Carlos Galvão. Este nos
apresentou a Arnaldo Albuquerque, o gênio da raça mafrense. Logo conhecemos o
Dr. Noronha – colega de Torquato Neto, médico pediatra que morava na rua Eliseu
Martins, onde também tinha seu consultório.
Torquato, depois desse pequeno, mas intenso, contato voltou
para o Rio. O tempo entre este encontro e o próximo e último, em 1972, ocupa na
minha memória um grande espaço desproporcional. No quintal da casa do Noronha
tinha um quarto com aparência de estúdio, onde nos deparamos com a maior
coleção de LPs que jamais tínhamos visto. Uma pequena biblioteca, mas com
livros indispensáveis para a nossa formação. A generosidade do Doutor – como
chamávamos carinhosamente Noronha – foi demais importante para mim e creio que
para os meus companheiros. Tínhamos liberdade de entrar a qualquer hora,
passávamos o dia lendo e escutando discos que sequer tocavam no rádio. Ele ia
trabalhar na Faculdade de Medicina e depois no consultório. Quando acabava
ficávamos de papo por muito tempo. Ele deitado numa rede que atravessava o
quarto e nós a sua volta sugando informações que foram por demais importantes
para a nossa formação de pessoas.
Noronha não se importava com a sociedade conservadora da
época que condenava sua atitude de abrigar uns hippies na sua casa. Ria dos
comentários maldosos sobre sua homossexualidade. Entre nós nunca tocamos nesse
assunto tabu para a época. E ri muito da última entrevista do Doutor na
Revestrés: “tudo que falam de mim é verdade”. E eu tenho a certeza que sem o
Noronha não éramos nós.
Torquato voltou para nosso segundo e último encontro. De
longe sabíamos que agora ele estava metido com um negócio de cinema super-8 e
tinha feito um filme como ator – contracenando com a Scarlet Moon – para o Ivan
Cardoso. Eu, Galvão que nem o conhecia ainda, e Noronha nos preparamos para
recebe-lo com uma proposta de ser ator num filme nosso. Meninos, vocês imaginam
a pretensão daqueles cabeludos de então?
Noronha viabilizou uma câmara emprestada e os rolos de
filmes para a aventura. Três. Com esses doze minutos contados passamos noites
desenvolvendo a viabilidade de um roteiro meu. Absolutamente bobo. Arnaldo, que
era fotógrafo, filmaria; Galvão dirigiria. Isso tudo combinado antes do
Torquato chegar. E ele topou! Se comportou como se ele fosse o principiante e
nós os bambas do cinema. “Adão & Eva – do paraíso ao consumo” foi realizado
nas areias do Poty, nas ruas de Teresina, na casa do Noronha. Depois o filme se
perdeu e virou uma lenda. Depois Torquato fez Terror da Vermelha, o filme
definitivo que nem chegou a montar. Depois fizemos – cada um de nós – seu
próprio filme. E o Doutor viabilizou a todos.
Lembro ainda que montamos o primeiro musical de Teresina -
chamado de Udigrudi - com o Pedro Veras, Ana Miranda, Pierre Baiano, Gordinho,
o batera Jacó entre outros. Cenografia de Arnaldo, dirigido por mim e produzido
– quer dizer, viabilizado por Noronha. Esse projeto foi exitoso, se pagou e deu
lucro ficando duas semanas em cartaz. Com minha parte no lucro vim ao Rio pela
primeira vez.
Todas as nossas loucuras juvenis – cinema, jornais, teatro,
músicas, sonhos – só foram possíveis pela generosidade do Doutor. E ele passou
a fazer parte de nossa vida e – ainda bem – um dia eu disse tudo isso a ele.
Agradeci e agradeço de coração.
Depois que nos separamos – o grupo conhecido por Gramma, por
causa do jornal desse nome – continuei com ele em Teresina. Foi meu professor
de Pediatria e depois preceptor de estágios rurais – uma espécie de Saúde da
Família da época. Também teve grande influência na minha formação médica.
Depois eu também vim embora e ele ficou no Piauí, tendo sido
Prefeito de Monsenhor Gil e Secretário de Educação de Governo do Estado. Sempre
que eu ia a Teresina era obrigatório um nosso encontro. Sempre que ele vinha ao
Rio também.
Nunca parou de ser um agitador cultural, um homem à frente
do seu tempo. Quando ele ganhou um prêmio no Ministério da Cultura – gestão do
Gilberto Gil – com seu documentário Balancê/Baião veio ao Rio receber o prêmio
merecido e trouxe seu Zé Coelho, um octogenário sinhozinho de Monsenhor Gil,
personagem principal do documentário. Lembro de três episódios. No dia que eles
chegaram nós saímos para jantar. O Zé Coelho ficou no hotel porque o Noronha
achou que ele estava cansado. Quando ele voltou ao hotel encontrou o velhinho
na portaria do hotel ensinando uns passos de Balancê para os recepcionistas. No
dia seguinte fomos mostrar o Rio para o Zé Coelho, que nunca tinha visto o mar.
Dentro de uma barca na Baía de Guanabara admirava o marzão e me confidenciou
que era maior do que a lagoa de Canindé. Caminhando pelo Aterro do Flamengo,
admirando a paisagem e o Pão de Açúcar, voltou a falar no meu ouvido: “meu fí,
num fosse pela loucura do Noronha eu tinha perdido tudo isso! ”
Há uns dias ele escreveu numa rede social que estava com
câncer de fígado. Assim de chofre, como era seu estilo. Fiquei preocupado, mas
não achei que ele ia assim tão depressa. Soube de sua morte logo depois. Assim,
apressada como ele era. Fiquei com a impressão que ele bateu a porta, deixando
a vida pra trás, com uma frase que ele sempre dizia quando não estava gostando:
“isso aqui tá muito chato, meu chapa. Tá muito repetido. Fui!”
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