quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Histórias do Consiliábulo III

Edmar Oliveira

Quem lê essa folha já sabe. Quando vou na terra passo no Conciliábulo para ouvir umas histórias e histórias do Conciliábulo e de Oeiras são as quentes. Porque histórias acontecidas em Oeiras já são engraçadas por natureza. Desta feita o Tadeu, oeirense ilustre, diz que nos anos sessenta já vinha uma briga de longe entre os Carvalhos e os Tapety, que perdura até hoje. O Valmor Carvalho se elegia a deputado estadual em mandatos consecutivos, graça a um diferencial de votos que tinha num povoado das redondezas. Porteira fechada, fazia o negócio com os votos, o que a oposição chama de curral eleitoral, dando uns agrados em dinheiro ao líder comunitário. Aquele curral era o diferencial que o elegia em mandatos consecutivos. Mas na eleição de que estamos tratando o Carvalho foi surpreendido por um pedido diferente do chefe comunitário. Dizia o caboclo ao nobre deputado que naquela eleição não queria dinheiro, mas um favor pessoal: estava para nascer seu primeiro filho e sua esposa queria que o presidente Kennedy fosse o padrinho. Carvalho se apavorou e pediu que o caboclo reconsiderasse, que o homem era o mais importante do mundo, vivia lá muito longe nas Américas e tava muito preocupado com a guerra do Vietnã e, portanto, era muito difícil atender o compadre. O caboclo olhou desconfiado para Carvalho, como quem diz que deputado pode tudo e aí tascou: “se não der, o Tapety passou por aqui e disse que faz...” Carvalho se desesperou, sem aqueles votos perdia a eleição e então pediu ao caboclo que esperasse, que ele ia ver o que podia fazer...

Saiu dali urdindo um plano. Tinha um primo dono do cartório de Oeiras e aí fez uma procuração falsa na qual John Kennedy passava plenos poderes para o Carvalho ser o padrinho no seu lugar, e uma carta dizia do aceite do presidente americano, que o afilhado recebesse uns presentes do padrinho que o Carvalho levava e logo, logo, que a guerra do Vietnã desse uma trégua viria até Oeiras vê com os olhos e pegar no colo o afilhado. O caboclo, em sendo assim, confiava no deputado e aceitou a proposta. Carvalho entregou um berço, uns brinquedos e até uma bicicleta nova pro moleque. Tempo que segue, o moleque nasceu e Carvalho ganhou de novo a eleição.

Quando assassinaram John Kennedy o caboclo ouviu no radinho de pilha e chamou o deputado que foi lá levar solidariedade, que o padrinho só não veio porque foi assassinado, que esses desalmados do Vietnã são comunistas impiedosos. O caboclo ficou cabisbaixo e a comadre do Kennedy desandou a chorar um pranto inconsolável. Carvalho argumentou que a comadre parasse disso, afinal ela nem conhecera o homem que morreu lá do outro lado do mundo e já tava enterrado. A comadre chorando ainda se explicou pro compadre Carvalho: “eu tô chorando é de pena da comadre Jaqueline ficar sozinha nesse meio de mundo, largada e com duas crianças pra criar...”

Mulheres

Ana Cecília Salis



As que não sabem enlouquecer de dor,
E as que não se submetem,
Definham de tristeza até a altura do verme...

Revoltosos e Legalistas

Geraldo Borges
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Bacaba, propriedade rural à beira do rio Parnaíba Município de Matões Maranhão. 1925. A Coluna Prestes vinha descendo a bacia do Parnaíba pelo lado do Maranhão. Já tinha entrado em confronto com os revoltosos defronte de Uruçui e em Benedito Leite. Os legalistas dispunhas de um vapor gaiola, e vinham descendo o rio. Ao passar pela propriedade Bacaba de meus avós, os revoltosos avisaram ao meu pai e seus irmãos, que estavam capinando uma roça na beira do rio, que se retirassem dali, e fossem para as suas casas. Pois os legalistas logo passariam pela frente do porto. E poderiam atirar neles. Pois estavam atirando em todo mundo.

Meus pais e seus irmãos não deram ouvidos. Continuaram no seu trabalho. Logo mais o vapor apareceu na curva do rio, descendo o canal, que por sorte ficava do outro lado, na margem do Piauí. Os legalistas viram meu pai e seus irmãos. E, logo, começaram a atirar, com seus rifles. O terreno na margem do rio era plano e arenoso; aqui e ali havia algumas palmeiras. Os irmãos de meu pai ao ouvirem os tiros caíram no chão.

Quanto ao meu pai, pegou dois tiros. Um entrou no ombro, o outro, entrou mais ou menos abaixo da última costela. Com certeza a bala bateu em alguma palmeira e ricocheteou; atingiu meu pai com pouca força. Nunca me esqueci desta palavra milagrosa. Ricocheteou.

A situação ficou crítica. Baleado. No interior do Maranhão, onde não chegava nem um adjutório da ciência médica, sem nenhuma condição de socorro. A família apelou para as práticas arcaicas. Ninguém se habilitava a lhe fazer uma operação. Resolveram fazer um chá de pinto. O chá consistia em cozinhar um pinto, com pena, bico, cabeça. Uma gororoba horrível, com todas as vísceras. Meu pai tomou o caldo, era jovem e não queria morrer.

Nesse mesmo dia passou pela porteira da propriedade de meus avós, os tenentes: Cordeiro de Farias e Siqueira Campos, integrantes da Coluna Um deles disse ao meu pai: Não se preocupe você vai sarar, e ainda vai contar sua aventura aos seus filhos e netos. Foi de fato o que aconteceu

Meu pai virou “herói...” Quando nos mudamos para Teresina, ficou famoso na cidade, bastante conhecido, no meio da vizinhança. Muita gente ia a sua mercearia só para ver o homem que tinha sido baleado pelos legalistas, durante a perseguição a Coluna Prestes. Quem não conhecia direito a sua história pensava que ele era um revoltoso... Uma vez um jornalista do Estado de São Paulo, veio fazer uma reportagem sobre a passagem da Coluna no Piauí e lhe fez uma entrevista.

Quando eu era menino esta história me impressionou. E eu tinha orgulho desse acontecimento. Meu pai era um “herói”. Eu contava essa aventura para os meus colegas de escola, e eles ficavam de boca aberta.

Depois de adulto comecei a estudar a história do Brasil. Aí descobri, com mais clareza que meu pai tinha sido uma vitima, que os legalistas agiram, muitas vezes, de modo irresponsável. E que meu pai, embora, tenha solicitado por requerimento na justiça uma indenização por danos físicos, nunca foi indenizado. A bala dentro dele o abalou por toda a vida. Foi sempre uma ameaça em potencial. Mesmo assim, morreu com ela, em idade avançada. Setenta e nove anos. E tudo isso me colocou um indagação. Vale a pena morrer de amores pelo exército brasileiro que por um triz ia me preterindo de contar esta história...

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Esta história, dentre outras contadas pela memória oral, está relatada por Chico Castro em seu livro "A Coluna Prestes no Piauí", edição do Senado Federal, minucioso trabalho jornalístico investigativo, que deve ser lido pelos conterrâneos.

Tuas Mãos


GraçaVilhena

Tuas mãos florescem
na madruga
estendem ramos
sobre meu corpo
traçam atalhos
descem macias
acendem flores
dentro de mim.
Colho tuas mãos
flores da noite
faço um arranjo
sobre meu peito
e mesmo quietas
fechadas em sono
as suas pétalas
voam despertas
gestos de plumas
pelos meus sonhos.

Baú


Keula Araújo


Se você fosse capaz de ler

(Não falo das entrelinhas

Digo as linhas

O óbvio)

Se você lesse entenderia

Talvez gostasse

Ou, se não, descartaria

Mas faça alguma coisa, rapaz!

Guardar como bibelô

Só serve pra mofar.

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Dia 17 de novembro Keula lançou seu livro "Terreiros" na Oficina da Palavra do mestre Cinéas. Quem acompanha esse blog teve o privilégio de ler toda a poética, forte e bela, da linda moça aqui. Mas tem de comprar porque tesouros se guardam. O meu chegou pelo presente da dona.

As Pessoas


Paulo Tabatinga

As pessoas
gostam mais do por do sol
à aurora
porque cultuam muito mais o adeus

e-mail do durvalino:

o menino aí é bom.
não conheço ele pessoalmente.
ele, junto com um amigo professor de literatura,
o wanderson torres,
estão fazendo uma revista na rede
chamada desenredos.
todos dois são professores e poetas dedicados.
te mando esse poema aí que me tocou muito,
pois é muito bom e muito nosso.
eles são amigos do ranieri ribas que vc publicou.
o endereço da revista vai aí embaixo.
se for o caso, entra em contato com eles
e bota o link deles no nauta,
pois eles merecem, eu acho.
dê uma olhada e depois me diga.

duda
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as capas os discos

ontem eu vi o disco da vaca à venda na galeria
onde há muito naqueles campos estranhos me perdi
entre os riscos do vinil motocicleta e sinfonia

ontem eu vi um velho em um quadro carregando lenha
adornando em parede destroçada a capa de um álbum
e a iluminada escuridão de um dirigível de chumbo

ontem eu vi o álbum branco que depois de muitos anos
pude perceber as matizes dispersas de suas cores
e seu discreto nome de besouro impresso em relevo

mas há muito dispostos em silêncio seus sons evocam
sonora imagem retida na retina da memória



Adriano Lobão Aragão é poeta e professor, autor de Uns Poemas (1999), Entrega a Própria Lança na Rude Batalha em que Morra (2005) e Yone de Safo (2007).



http://www.desenredos.com.br/

O Martírio de Madalena

Carlos Augusto de Araújo Jorge
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Madalena, nome fictício, com idade entre 12 e 13 anos, definiu como lugar de viver a divisa entre Manguinhos e Jacarezinho. Ali convivia com o seu grupo de crianças e adolescentes, numa verdadeira “roleta russa”, onde a arma era a pedra do crack. Como eles próprios falam: “a maldita pedra”.

Não só eram a pedra do crack e as demais crianças e adolescentes a companhia de Madalena. A pequenina Madalena, franzina, como todas as outras, filhas talvez da segunda ou terceira geração de crianças covardemente abandonadas nas ruas de nossa cidade maravilhosa e que só são apontadas pela nossa distinta sociedade, quando incômodas, já estavam na teia também maldita da exploração sexual.

Aquela criança, um pequeno sujeito ainda em formação, já era objeto de cobiça do lucro de inescrupulosos, que se utilizava de sua compulsão para fumar uma pedra de crack, e aí é qualquer coisa por um real.

De um lado a dita “cracolândia” do outro, uma surrada barraca de lona e plástico onde Madalena era explorada.

Heróis anônimos, Educadores e Assistentes Sociais, diariamente procuravam Madalena. Abordavam Madalena e, na maioria das vezes, Madalena recusava o contato. Corria e se ocultava nas vielas da favela.

Um dia Madalena não fugiu ao contato, parou escutou; conversou e resolveu que iria cuidar de si. Pactuou com os Educadores e Assistentes Sociais que no dia seguinte aceitaria ser abrigada para um atendimento diferenciado. Gostaria de ter outra possibilidade de vida. Festa na equipe: “estamos chegando lá” desta vez Madalena decidira ir. Com certeza não teríamos mais que nos deparar com a triste e comum resposta: ”evadiu”.

Chega o dia seguinte. A equipe se reúne, define estratégias de trabalho e se dirige ao lugar combinado. Madalena não se encontra: procura-se por Madalena, pergunta-se por Madalena.

A pobre criança devia trinta reais ao “movimento” e este, na noite anterior, assassinara Madalena na linha do trem. As trinta moedas de Madalena levaram-na ao martírio na linha do trem. Não sei se com os braços atados a cada lado da linha...

Esta foi a resposta.

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Carlos Augusto trabalha com a população de rua.

‘PÉROLAS’ AOS TOLOS


Cinéas Santos


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Afirma-se, com incontido orgulho, que o senso de humor, a irreverência, o escracho, a alegria e o jeitinho são os atributos que distinguem o brasileiro dos demais terráqueos. Com estardalhaço, criou-se o mito do brasileiro feliz, e a coisa vingou. Não por acaso, o poeta Maiakovski escreveu: “Dizem que em algum lugar, /parece que no Brasil,/ existe um homem feliz”. É certo que, vez por outra, aparece um louco para “desafinar o coro dos contentes”, ou um coração machucado para implorar: “Tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com minha dor”. Mas a tônica é alegria, alegria!


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Confesso que a “obrigação” de andar com os dentes à fresca me deixa um tantinho incomodado. A bem da verdade, esse humor fácil e apelativo, que se exibe na TV e na internet, mais me aborrece que diverte. Para o meu gosto, não há nada mais deplorável que as “pegadinhas” e as “videocassetadas”, sucesso retumbante entre nós. Aprendi com dona Purcina que não se deve rir de quem cai, de quem sofre, de quem erra. Vamos tomar o seguinte exemplo: o garoto assiste na TV à cena de uma criança escorregando do balanço e enfiando a cara no chão. Não se mostra o choro da criança nem a gravidade da contusão; mostra-se a claque sorrindo e o apresentador berrando: “Ô meu, vai gostar de terra assim no inferno”. Um dia, esse garoto leva o irmãozinho menor ao parque e, lá pelas tantas, ele escorrega e cai. Qual será a reação daquele moleque? Vai sorrir por não entender que aquilo é um acidente e não uma brincadeira. Muito pedagógico, não?


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Estamos popularizando, por todos os meios, o escracho, a grossura, a vulgaridade e o mau gosto como manifestações de humor. Agora mesmo, acabo de ver na internet um e-mail com “as pérolas do ENEM”. Trata-se de um amontoado de disparates escritos ou atribuídos aos que se inscrevem no exame. Em primeiro lugar, uma pergunta pertinente: quem “vaza” tais disparates para a mídia? Outra perguntinha inofensiva: é lícito fazê-lo? Poderíamos fazer mais uma dúzia de indagações, mas isso não nos ajudaria a entender os objetivos perseguidos com a divulgação desse material que, até onde sei, deveria permanecer sob a responsabilidade do MEC.


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Não é a primeira vez que tenho acesso a essa lista infame. Num programa de TV muito popular, o apresentador diverte a plateia lendo as “pérolas” e acrescentando comentários jocosos. Sucesso garantido. Sou obrigado a confessar que me sinto profundamente incomodado com essa maldita lista. Como sou professor, cada vez que leio um disparate escrito por um aluno (que nem conheço), sinto-me um tantinho responsável por ele. Sou uma espécie de coautor. O raciocínio é bastante simples: se nós professores tivéssemos nos empenhado um pouquinho mais, talvez poupássemos esses pobres alunos de terem seus disparates expostos na mídia como objeto de chacota. Vou um pouco além: se a educação fosse levada a sério em nosso país, os governantes, a sociedade, a mídia, todo mundo começaria a perceber que alguma coisa precisa ser feita com a maior urgência. Essa molecada que escreve bateladas de bobagens é vítima de uma escola que os trata como retardados. A mídia, notadamente o rádio e a TV, encarregam-se de fazer o resto.


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Para demonstrar minha indignação de forma clara e veemente, peço permissão aos meus três leitores para encerrar essa arenga com uma piada infame, que também circula na internet: “Quem acha tudo gozado é camareira de motel”.

Caminhos

Chico Miguel de Moura



avança o caminho da tarde
surda(a)mente...
tenho um impossível retrato
a tristeza é igual a ontem:
- reta no meio das curvas
(esquina do horizonte)
poeta, quem te mandou
ser/viço
menino
e se/mente?
o crepúsculo se enrosca impres-
sentido
onde as mãos se fundem...

Poeminha necessário

Paulo Vilhena


O poema necessário

é grisalho e hipertenso.

Ele vive nas mesas de bar

nostálgico como Nat King Kole,

alegre como Jakson do Pandeiro.

O poema necessário

não tem amigos: todos já deixaram de existir.

Ele brinca com as palavras como as crianças brincam.

Ele teima com as cirroses como os lagartos correm.

Ele rima a teimosia como os vaqueiros sofrem.

O poema necessário faz do mundo e do tempo

um pequenino pedaço deste agora:

Portugal, Bahia, EUA, França ou Inglaterra

em qualquer lugar, eis que está

nosso pequenino poema necessário.

Na TPM da rainha ou na gastrite do rei

na traição da dama

na escatologia ou na alegria do circo.

Necessário até mesmo na vida dos poetas,

que mesmo tutelados

ainda sabem caminhar calçadas

e percorrer paixões.

Poética Candanga II


MENEZES Y MORAIS


Seguiremos a estrela

É chegada a hora

Os pássaros trabalham sua cantiga

E curam as cicatrizes dos amores que tive

Eu, cúmplice de mim,

Sigo a plenitude de cada momento

Pois o tempo escorre no olho de Deus

Inda verei muitas luas

Não tente impedir meu caminho

(Climério Ferreira)


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Climério vem fazendo uns poemas sobre os poetas de Brasília, no estilo do poeta candango. Tou publicando os candangos do Piauí...

VI Festival de Cultura de Oeiras



Dagoberto Carvalho Jr.

da Academia Piauiense de Letras

Veterano de outros festivais na velha-cap, retorno do VI Festival de Cultura de Oeiras, convencido de que a cidade Monumento Nacional encontrou sua verdadeira vocação, secularmente talhada para o turismo cultural. É disso que cidades históricas, como a nossa, que ainda tem muito a mostrar, precisam para o seu desenvolvimento sustentado. Parece que Oeiras, renovada pela experiência de seus administradores – à frente, Carla Martins – aprendeu a realizar um festival de verdade. Uma grande festa lítero-gastronômico-musical que já se vinha mostrando capaz de incorporar, com sucesso, ao calendário piauiense da moderna especialidade.

Os políticos viram e sentiram isso. Lá estiveram: governador, vice, deputados federais e estaduais, secretários de estado, prefeitos, vereadores, executivos do serviço público e da iniciativa privada, formadores de opinião. Escritores, músicos, cantores. E, sobretudo, o povo, ente e parceiro privilegiado de todos os eventos sérios que se fazem em seu nome e proveito.

Distribuído em dois pólos, a Casa da Cultura, o auditório da Câmara Municipal e o coreto da Praça da Bandeira, muitas foram as apresentações e inúmeras e interessantes as oficinas realizadas. Manteve-se a tradição dos city tours e do passeio ecológico ao Engenho Guaribas. Gastronomia. A boa cozinha da terra do “doce de leite de fio”, incorporando o “capote” como prato da piauiensidade. Teatro, balé, violeiros, congos, reisados, samba, capoeira. Palestras sobre patrimônio histórico. Livros e revistas.

Na música – teluricamente iniciada pelos “Bandolins de Oeiras”, em quem se homenageia o talento da terra – revezaram-se grandes nomes. Da atualidade de Zeca Baleiro a Vital Farias e Xangai, passando pelo “clássico” sertanejo do menestrel Elomar Figueira Melo que, em aula-espetáculo, apresentou suas “Sertanílias do Elomar”.

Solar da Doze Janelas. Reencontro-me na contracapa de “Crônicas Esquecidas” de José Expedito de Carvalho Rego – patrono do Festival – em opinião sobre o melhor dos seus livros, “Malhadinha”. Fui contemporâneo e amigo do grande romancista e poeta dos melhores. Coordenei sua eleição para a Academia Piauiense de Letras e o recebi na Casa de Lucídio Freitas. Reencontro-me, também – assumida e vaidosamente escritor – nas seguras e simpáticas palavras com que Rita de Cássia Neiva Santos Martins Gama apresentou o meu “Eça de Queiroz e Machado de Assis: o Realismo de cada um”. A professora chamando-me à responsabilidade pelo que já tenho escrito sobre Eça e a geração portuguesa de 1870 – com alguns reflexos não só em Pernambuco ou no Piauí, mas de algum modo, em Portugal –, e pelo compromisso com os meus valores culturais oeirenses, ousou criar o termo “dagobertiano” para os tais estudos, como se todos já não fossem ecianos. Como se os não contemplasse a ecite universal do “pobre homem” de Oeiras do Piauí. Cassi Neiva, esta sim, é que chega à Sociedade Eça de Queiroz renovando a linguagem literária, incorporando-lhe – como fazia o nosso guru – novos e sonoros vocábulos. Materializada a idéia, o espaço proposto agregará valores como a jovem historiadora Tátilla Inez de Sousa Rodrigues que, seguindo as pegadas do cronista, está a concluir importante monografia sobre a presença dos jesuítas no Brejo de Santo Inácio.

Ao elogio oeirense do meu livro não faltou a palavra, também especializada, do psiquiatra e escritor piauiense-carioca Edmar Oliveira que, ao apresentar seu “Ouvindo Vozes”, resgatou o conto “O Alienista”, do Bruxo do Cosme Velho, como ponte entre os nossos discursos eça-machadianos. Entre todas as literaturas do Festival.

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Publicado originalmente no Diário do Povo (Teresina), 4 de novembro de 2009

O Rastro do Jaguar

Luiz Horácio

Hoje não tem introdução, vamos direto, curioso leitor. O livro é extenso 565 páginas, o livro é premiado, prêmio Leya 2008, o autor é experiente, mas o livro é “quase”. Quase bom, quase repetitivo, quase entediante, quase uma aventura, quase previsível.

Deve muito a Tristes Trópicos-Lévi Strauss- e devo um pouco a Trevas no Eldorado-Patrick Tierney e outro pouco a Os sertões-Euclides da Cunha. O enredo é simples, mas a tentativa de torná-lo complexo o transformou numa trama previsível. Tudo isso embalado pelo sentimentalismo sempre exagerado da música de Wagner. Isso é opinião, você não é obrigado a aceitar tampouco concordar. Respeite e estamos conversados, educado leitor.

A trama é a seguinte: véspera do ano novo de 1900, Pereira, velho jornalista de origem portuguesa , começa a desfiar su

as memórias que chegam da metade do século XIX.Conta que saiu de Paris junto com Pierre. O jornalista/narrador pretende apresentar o Brasil que nessa época está em guerra com o Paraguai. Detalhe; o Brasil não está só nessa “dificílima” empreitada. Ajudarão no massacre Argentina e Uruguai.

O rastro do jaguar é a história de Pierr

e, soldado francês de origem guarani, que vem ao Brasil em busca de suas raízes, pano de fundo a colonização dos índios.

O que me proponho a escrever não são minhas memórias, não é um romance; será, talvez, uma longa reportagem sobre a história de várias guerras, grandes e pequenas, que acompanhei ao longo desta vida de repórter. Mas principalmente sobre a viagem de um homem em busca de sua alma e de seu povo.Esse homem se chamou Pierre de Sanit’Hilaire, foi soldado, músico, poeta e mais tarde transformou-se no Jaguar, o Iauaretê das paradarias do Sul.

Pierre não é pouca coisa, guarani, formou-se na Europa, músico erudito, tocou na estréia do Tannhäuser , dramalhão wagneriano,em Paris. Seria Pierre o nosso outro “índio de casaca”? Apelido que Menotti del Picchia deu a Villa Lobos.

A busca de Pierre se desenvolve em quadros pintados com as tintas da melancolia, a leitura de cartas antigas vai deixando à mostra a quantidade incompleta de peças de um quebra-cabeças . Gravados nessas peças as incursões das personagens e um capítulo da história do Brasil do século XIX.

As veredas de Pierre e Pereira começam pelo sertão, é lá que eles perceb

em a resistência dos nômades botocudos. Esses aimorés não se rendem ao colonizador, não abandonam seus hábitos nômades, tais atitudes os encaminham a um fim deplorável.

Pierre, você logo perceberá isso, arguto leitor, encontrará sua gente e a seguir se ocupará com os mitos de sua gente. O mito que não exige dissociação entre ser e natureza, tudo se confunde, o eu e a natureza são uma coisa só. Nossa sociedade atual, massificadora opera nessa mesma faixa, provocando a perda das individualidades. O indivíduo acompanha a vontade das massas. Bem, mas isso é assunto para outra hora.

Voltamos a seguir o rastro do Jaguar. Ao mergulhar nos mitos criadores de seu povo, Pierre tem atenção despertada pela existência de uma Terra Sem Males. E Pierre parte...

Não importava que o Norte os levasse ao coração do Império - nada limitaria a caminhada em busca da Terra Sem Males.

- Por quê? Porque assim nossos antepassados nos mandaram; porque assim continuaremos vivos, assim teremos a esperança. Até onde iremos? Não é possível sab

er o destino antes de começar a caminhar. Haverá, em algum lugar, um vale pequeno onde nossa gente poderá abrigar-se, silenciosa, aguardando seu futuro.

O rastro do Jaguar tem alguns pontos em comum com Trevas no Eldorado, entre eles o massacre dos índios. Na obra de Tierney percebemos as ações criminosas de cientistas e jornalistas. O rastro do Jaguar, por sua vez, traz a reportagem da Guerra do Paraguai.

Argentinos, Brasileiros e Uruguaios se uniram para combater as tropas de Solano Lopez que contava em suas fileiras com vasto contingente de guaranis paraguaios. Dizimados, é claro.

O rastro do Jaguar enquanto aventura, aventura de índios, lutas,selva

s, radiografia da colonização, da nefasta contaminação religiosa/ideológica tem lá seus méritos. Do caráter antropológico não convém tratar, Tristes Trópicos ainda vale leituras e releituras infindáveis. No quesito reportagem, o obra de Murilo Carvalho fica bastante aquém de Os Sertões, inclusive no que diz respeito a aventura, ao quase faroeste tupiniquim que ele e Euclides da Cunha escreveram. Desse modo, concluo que a floresta seja o terreno por onde Murilo de Carvalho melhor conduz sua narrativa e seus personagens. Embora seus personagens sejam de uma firmeza psicológica assustadora, buscar aproximações com a realidade não é tarefa das mais fáceis. Tem um quê daquelas construções idealizadas, o índio de José de Alencar e suas façanhas. Murilo tem resquícios de um romantismo que compromete. Vale ressaltar o olhar critico do autor no que diz respeito a moral vigente no Brasil pós-colônia, onde negros e índios eram tratados como “bois de piranha”. Os Farrapos, Gal. Canabarro enviou os lanceiros negros, armados com lanças e nada mais, a enfrentar as balas. Viraram nomes de ruas e avenidas os “anjos Caxias, Canabarro, Borges de Medeiros, et. Caterva. Feito o desvio, voltemos ao rastro do Jaguar.

Ao ingressar no cenário urbano os aspectos de gosto duvidoso se tornam mais evidentes. Na viagem da floresta para a Europa, Murilo esquece algumas coisas e acrescenta outras, entre elas a pieguice e os lugares comuns. A história de amor de Pereira, o narrador, é constrangedora em seus exageros nostálgicos. Mas Murilo não deixa a pieguice de lado quand

o o cenário é a floresta, não embarque nessa canoa, ingênuo leitor. Atente para o trecho onde o narrador se refere a poesia de Gonçalves Dias.

Hoje, depois de tantos anos, percebo como ele estava errado;seu romantismo não era exagerado;as virtudes como honestidade, honra, coragem, lealdade, amor, que ele colocava romanticamente, nos personagens de seus poemas, existiam sim entre os índios brasileiros.

Isso posto, vale acrescentar mais um quase a O rastro do Jaguar , o quase épico.O quase épico que não enaltece feito algum, o quase épico a apresentar desastres e mais desastres culturais.

E de Wagner, a influência maior que se nota não vai além dos absurdos sentimentais.

TRECHO

Hoje, relendo o poeta Gonçalves Dias, não apenas este poemas, mas outro

s versos em que fala da nobreza, do amor, dos grandes sonhos que nascem nas noites da floresta, posso compreender ainda com mais clareza as decisões de Pierre e também por que seu povo passou a chamá-lo de Jaguar, o grande tigres das florestas americanas, solitário, valente e poderoso. O Jaguar, cujo rastro venho seguindo, para que eu mesmo possa ter certeza de que a honra e a lealdade são os valores que levarei comigo desta vida de aquém-túmulo.

É estranho como sempre que se discute algum aspecto da vida moral, como a honra, a bondade, a solidariedade, muita gente se indague sobre sua utilidade. Nestes anos em que o positivismo tornou-se quase uma doença que ataca a maioria dos homens que governam os países, fazendo-os enxergar na ordem e no ordenamento das idéias a base de toda a felicidade e do progresso das

nações, é comum buscar uma utilidade para cada coisa.Assim, a ordem, o progresso seriam aplicações úteis das idéias, como a ordem unida e os exercício físicos são pressupostos da formação de bons soldados. Nada mais errado. A experiência do pensamento e a convivência com a cultura não lógica, como a dos índios brasileiros, têm me mostrado que o bem moral não é útil; ele é, na verdade, uma forma de realização harmônica do ser humano, porque coloca o homem no plano real da liberdade à medida que sua vida toma o rumo que ele deseja, ao fazer a escolha entre uma vida moral e uma vida baseada no útil.

AUTOR

Murilo Carvalho é jornalista, escritor e realizador de documentários.Trabalhou em alguns dos principais jornais e também em revistas e em emissoras de televisão brasileiras.

Durante os anos de ditadura militar no Brasil foi repórter do jornal Movimento. Trabalhou ainda no jornal Folha de São Paulo e em revistas da Editora Abril. Nos últimos anos,dedicou-se à produção de documentários e programas de televisão sobre a realidade brasileira.

Emyllia Santos

Emyllia Santos, saxofonista da banda militar do 25 BC de Teresina. Achado de Paulo Tabatinga.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Piauinauta, o desenho


Gervásio Castro, o caricaturista piauiense que mora no Rio. Pra quem me conhece: o homem me descobriu no Manoel e Joaquim do Largo do Machado. Trocamos duas ou três frases em piauiês. E o desenho me aparece assim. Coisa de gênio...

Filho da Puta Glorioso


Edmar Oliveira

Quentin Tarantino chegou à perfeição na técnica, mas não saiu de dentro do “blockbuster” em que trabalhava antes de fazer cinema. “Bastardos Inglórios” acontece todo dentro de uma locadora de cinema. A vida real entra na tela por força e obra deste genial cineasta. No filme conta sua versão da queda do 3° Reich acontecida na tela do cinema e contada por outros filmes.

O que fez com John Travolta nos filmes anteriores faz aqui com dois atores extraordinários, mas que sucumbiram ao tacão do diretor violento: Brad Pitt é um novo ator com o sotaque texano e a bestialidade americana que masca chicletes, e Christoph Waltz num ator versátil dos idiomas cinematográficos correntes nas locadoras, que sacaneia com os sotaques dos outros atores americanos de falar qualquer idioma “em inglês americano”. Genial a crítica. Além de homenagear o veterano Rod Taylor (dos faroestes americanos) que faz uma ponta insignificante como um Churchill que só pita o seu indefectível charuto.

E os filmes todos que viu nas locadoras, Tarantino coloca na tela com trilha sonora e toda ação de forma genial. E como um nervoso freqüentador de todos os gêneros acho que vai tocar em muitos cinéfilos. Em mim sobressaiu o Morricone dos filmes de Sergio Leone, além de trilhas sonoras inesquecíveis para um rato do Cine Rex em Teresina: “O Dollar Furado”, com Giuliano Gemma de um esquecido diretor e de “Um Colt para o Filho do Demônio” do mesmo diretor de “Adeus Gringo” (cult piauiense) com os indefectíveis Lee Van Cleef (sempre vilão) e Antonio Sábato (aqui mocinho). O tema de Dr. Jivago é identificável na Lara de um amor impossível do Tarantino.

Mas estamos falando é de um drama passado na Segunda Guerra e Tarantino reúne todos os atores num cinema para acabar com a guerra. Goebbels, Göring, toda a cúpula alemã, inclusive Hitler tem o final antecipado em cinema de locadora barata em que o Tarantino trabalhou e misturou todos os filmes no seu inconsciente. Tem gente que não vai gostar do filme. Mas essa gente nunca gostou mesmo de cinema...

Rotina

Graça Vilhena

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A noite geométrica
é só aquilo
que a janela traça
por isso o homem sonha aluar-se
perdido em arribação.

Asa Delta

Ana Cecília Salis

Asei-me olhares
Voei por lá de cima
e vi um colorido miudo
delicado...
grandioso...
nas paragens do infinito
margeado

tal como foi feito
em mim
e entregue a ti

e só a ti

um amor naif
emoldurado...

Nordeste


Geraldo Borges


O nordeste é o nordeste é o nordeste, um roseiral, mas não é apenas o nordeste é muito mais do que um simples mapa geográfico, é vento áspero, sereno, brisa marítima, camarão, cavalo marinho, pé na estrada, pó na estrada, cavalo do cão, cabra da peste. É deus e o diabo na terra do sol. É menino barrigudo cheio de lobriga frieira coçando no pé até ficar em carne viva, é carrapato, mutuca, berne, pés rachado de retirantes; E vidas secas, Fabiano Sinhá vitoria. O menino mais novo, o menino mais velho, a cachorra baleia., pitomba,açude,soldado de policia e muito mais.


É sertão de Euclides da Cunha, lampião que ganhou uma estatua em uma praça dos nossos rincões. O nordeste é piolho de cobra, cascavel, gavião, carcará, cobra coral, escorpião, sapo cururu na beira do rio, gravatá, macambira, onça pintada. capoeira. boi de carro, vazante. Cana caiana, cachaça, pistoleiro que reza pela alma de sua vitima antes de arrebentá-la com um tiro. E mandá-lo para as profundas dos infernos. Nordeste pevide de galinha, carrapato, fracos do juízo que se dizem Napoleão e cultivam a sua ilha particular contando histórias imaginárias, figuras exóticas de cavalhadas antigas que viram lendas na boca do povo. O nordeste tem de tudo, e cada dia é mais descoberto e inventado, padres valentes, beatos mulherengos, políticos finórios.


O nordeste é o nordeste com cerca de arame farpado, grileiros , SUDENE com as águas turvas do rio São Francisco, do Parnaíba, com carrancas, com o cabeça de cuia, com procissão para chover, com bicho de pé, com vaqueiro curando bicheira pelo rastro da rês, com o filho da casa grande levando a mulata para dentro do mato. Nordeste, nordeste quantos nós górdios vos tereis que desamarrar com faca de ponta canivete, tesoura, martelo, foice, enxada, e mais outras ferramentas.


Nordeste bica chuviscando, cacimba, cisterna, latrina no fundo do quintal, menino vendendo pirulito, azeite de mamona no pixaim das mulatas, óleo de rícino como purgante para pessoas empachadas, roupas no varal secando ao sol, quinais com pés de bananeira dando filhos ao vento. Nordeste chapéu de couro chapéu de palha, bode de pele de primeira esfolado de cabeça para baixo, pendurado no caibro do pátio sangrando, buchada, sarapatel, nordeste da molesta, virgem Maria mão de Deus, oratórios nas alcovas, caritó, rezas para moças velhas se casarem. O nordeste, é assim e assado, pegando fogo; coivaras, aceiros, roça florindo, casa de farinha, dedos calosos de mulheres debulhando o rosário, formigas criando asas no céu para o prazer dos bem ti vis, avoante, carne seca, calango, tanajura. O nordeste é inventivo, e é muito mais do que o leitor imagina. Pode ser encontrado nos romances de cordel, nas xilogravuras que ilustram suas capas. O nordeste é uma metáfora ambulante está em todo lugar nas favelas de todo o Brasil nas cercas elétricas por cima dos muros das mansões na alça de mira da fuzis dos marginais.


Nordeste, nordeste, quantas vezes repito o teu nome e agora torno a repetir como um menino faminto pedindo pão, estudo, família. E o que vejo são minhas irmãs perdendo o cabaço antes mesmo de sair da puberdade pegando carona com motorista nas auto – estradas da vida pelo nordeste afora. O nordeste é um só porém existe o nordeste baiano com seu berimbau o nordeste do Piauí e do Maranhão com seu bumba meu boi o nordeste de Pernambuco com seu maracatu e outros nordestes que ensinam a língua do ABC de Luiz Gonzaga e com o zabumba a sanfona e o triangulo fazem a festa...


Você já foi ao nordeste? Se não foi não está perdendo nada, o nordeste também é Brasil e está em todo lugar do país. Mas se está a fim de ir não perca temo, vá antes do mar virar sertão. Tem gente que vai e não volta mais, principalmente o europeu. Se apaixona pelo sol e pelo céu. Mas o nordeste não é apenas nosso nordeste de cartões postais vendido para turista ver nordeste do IBGE de dados estatísticos e gráficos sobre o desenvolvimento. O nordeste é o nordeste é o nordeste transfigurado num sentimento místico e mítico de que ali o Brasil foi descoberto e inventado as margens de um porto seguro.

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foto de Marcos Michael, que pede créditos e eu desculpa (edmar)

Abusada

Keula Araújo


Para Dalton Trevisan


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Claro que tenho que encontrar


mil defeitos em ti


E acusar-te sempre que possível


Não que isso seja o que mais percebo


Não que isso seja o mais evidente


Mas seria surreal demais


Se sempre que me chamasses


De encrenqueira e abusada


Eu sussurrasse em teu ouvido:


Meu puta gostoso!!!

Vício ao Contrário

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Diante dessa mixórdia que virou a grande imprensa do sul maravilha, comecei a sentir uns arroubos incontroláveis do que passei a denominar de “vício ao contrário”. Perguntarão vocês: mas como vício ao contrário? O vício é uma sensação pessoal e intransferível, na maioria

das vezes inconfessável, a não ser aqueles

que viraram viciozinhos corriqueiros , muitos deles confundidos com superstição, como bater na madeira, não passar embaixo de escadas ou coisas assim. Outros são aqueles hábitos que, mesmo trazendo malefícios à saúde, são consumidos pela sociedade como as bebidas alcoólicas, o cigarro e as drogas chamadas mais pesadas. Como se o tabaco e o álcool, vendidos legalmente em qualquer esquina, não o fossem também. Droga é bom! Senão não haveria tanta gente boa atrás delas. E, por isso mesmo, ela é muito perigosa!

Mais eu não estou aqui tergiversando, nem tentando falar sobre a discriminalização do uso de drogas (assunto esse, aliás, muito importante de s

er discutido), nem cortar o barato de ninguém, nem o meu próprio. Cada um sabe onde vai pendurar o seu chapéu, não é mesmo? Eu, por exemplo, sou um ex-fumante e tem coisas absurdamente agressivas que vejo acontecer recentemente na caça aos consumidores de tabaco, principalmente em São Paulo. O governador de lá, um cara que não sai da moita e também não dá lugar, e tem pretensões sérias de ser presidente desse país, resolveu que só limitar o espaço para fumantes (até aí nada demais) não seria suficiente. Resolveu proibir, por lei, o estabelecimento comercial de receber um tabagista. E o que é pior, qualquer um que se sentir incomodado pode chamar a radiopatrulha e exigir que o infeliz seja autuado...Quer dizer, o pascácio governante tira o dele da reta, estimula o denuncismo, os incautos burgueses metropolitanos e a grande imprensa apoiam a medida, e acham que isso vai melhorar a qualidade de vida da cidade mais poluída (ar, água e solo) da América Latina. Os comparsas elitistas partidários desse Senhor governam São Paulo há mais de 15 anos e, a cada mandato, o dia-a-dia do cidadão paulista, principalmente a do trabalhador da periferia das grandes cidades, se deteriora cada vez mais.

Gente, eu estou disfarçando um pouco, mas o assunto é pertinente. Vou entrar no vício ao contrário agora. Falei lá em cima dos jornais safados, aqueles de maior circulação que todos nós conhecemos, pois é... Não sou mais eu quem lê o jornal, é “ele” quem me “lê”. É ele quem me saca, sacou? E aí vem o pior desse vício ao contrário: é que eu sei disso!... Notem bem, eu não estou falando do vício de pegar no jornal, sentir o papel e o leve cheirinho de tinta (já foi bem mais forte), ouvir o

barulhinho do folhear de páginas, que, não nego, tudo isso me traz uma sensação boa (apesar do meu hábito diário de procurar opiniões bem mais abalizadas nos excelentes blogs informativos que a internet me oferece, e de graça). Eu estou falando de uma coisa muito grave, estou falando de um distúrbio mental, e eu não sei se tem cura.

Vou descrever uma cena do meu cotidiano: todo o santo dia eu me digladio com aquele calhamaço inútil de folhas. No que eu abro a porta para pegar o “cara”, já dou uma olhada, de soslaio, na manchete principal e nas chamadas menores. Só essa primeira lambida do meu olhar já dá para perceber, tanto nas notícias, quanto nos temas escolhidos pelos miquinhos colunistas amestrados, as matérias mal intencionadas, incongruentes, caluniosas e tendenciosas. Tento jogar num canto da estante, aquele catatau de informações. Mas o desgraçado me pega, me gruda nas mãos, quer me devorar. Quem lê tanta notícia ? Eu vou... sem lenço, sem documento, nada no bolso, só com o meu jornal na mão. No trajeto até o banheiro antevejo os dissabores que tomarão conta de mim, num confronto inevitável a ser travado com “ele”, ou seja, me subjugo a ler, já sentado no vaso (sinto falta de ler qualquer coisa quando estou obrando, nem que seja bula de remédio ou até mesmo coluna de jogo de bridge), tudo aquilo que me despertará raiva, deboche,

desprezo ou empáfia. Para não “sofrer” tanto, passo a desenvolver uma leitura dinâmica, que eu próprio inventei, tentando me livrar logo da minha espinhosa missão, ter que ler aquelas hodiernas páginas... Luto bravamente, vai nessa Miltão, vai, leva fé, continua... quatro linhas pra acabar, agora é rapidinho, faltam só duas linhas...está chegando a faixa final, digo, o ponto final, você vai conseg......................................Qual nada!... Ao sair do banheiro, derrotado, em frangalhos, ele me obriga a ler tudo que eu fingi que não li, o meu carrasco já me conhece de priscas eras, esse maldito. Envergonhado e humilhado, leio tudo, agora, de cabo a rabo. Pronto! O que você quer mais de mim, seu canalha?

Triste sina. Eu sei muito bem do espírito do cramunhão que baixa toda a manhã no meu quintal... É o nosso Cidadão Kane tupiniquim. Ou, melhor traduzindo, o nosso cidadão Kano, ou Cano, tanto faz. Pode ser a mira de umcano de fuzil, ou um cano de esgoto, para o qual “ele” sempre tenta nos empurrar.

Vocês sabem de quem estou falando, não sabem? Daquele espírito de porco, de um dos maiores pulhas senhores de veículos de comunicação do mundo todo, tão poderoso que chegou a mandar no nosso país, e que hoje deve estar vivendo nas profundezas do reino do tinhoso, e não mais habita o nosso globo terrestre.

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