quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Pedra do Sal


O Piauinauta observa o sol em se pondo por a paisagem da Pedra do Sal, na Ilha Grande de Santa Isabel, no litoral piauiense, num destaque deslumbrante. Não é canoa quebrada, elas estão inteiras e emoldurando a paisagem...
(foto: Ralph)

Aeromoças no cartaz...




Edmar Oliveira

Lembrei de um verso quase assim, acho que do Tom Zé, quando fiz minha última viagem de avião. Lembram do glamour dos vôos da Varig? Talheres de metal, cardápio com escolhas, vinhos, uísques e bebidas finas, o charme saudoso da fumaça do cigarro e – sonho inatingível dos desejos masculinos – as aeromoças louras, morenas, altas, salto em alto, meias finas na costura que iam até nossa imaginação, cabelo moldado a laquê, longas saias azuis, blusas brancas com decotes a saltar os seios, casaco um tanto militar que parecia afastar os mais salientes pela imponência da farda. Mas todas belas como se acabassem de sair da tela do cinema.


Não sei se o capitalismo da livre concorrência que barateou os vôos, democratizando a viagem aérea, foi o responsável pela falência daquele sonho. Mas que dele tenho saudade, isso sei. E ele se desmanchou na barrinha de cereais e biscoitos mal-cheirosos acompanhados de refrigerante barato, alem de apertarem o espaço entre os assentos para nos conduzirem como em um ônibus da baixada. E as moças ficaram feias. Ou foi eu que acordei daquele sonho? Elas ainda nos oferecem balas, recolhem o lixo do avião e nos dão um até logo com um sorriso amarelo entre dentes por pura obrigação, com se nos estivessem mandando à merda.


Pois bem, na última novidade, quem viajar verá, a comissária chefe pega o microfone e anuncia a venda de... sanduíches, cerveja, café e uma taça de vinho. Igual ao botequim do seu Manoel. E dizem aceitar cartão de crédito e pedem para facilitar o troco. Igual a caixa de supermercado. Puta que pariu por esta crise na aviação: a minha artista de cinema americano foi substituída por uma garçonete do botequim da esquina. Me pego em preconceito explicito alimentado por um sonho burguês. Mas confesso que eu gostava da viagem de aeronave e não desse ônibus aéreo. Quando vim agora de Teresina uma passageira tentava acomodar no bagageiro uma cesta de talo de coco trançada, daquelas do mercado do Mafuá. Sei que corro o risco de aumentar o meu já evidente preconceito burguês, mas com jacá de pequi nesse ônibus que voa eu não quero viajar não...

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Ilustração luxosa de Gervásio




O Jogo da Noite


Graça Vilhena

A noite faz seu jogo
guarda um valete de copas
e sua dama no decote
pisca alcoviteira
nos cílios das estrelas
ninguém vê nada
e o rei de ouros
dorme descartado.

Inventário do meu quintal

Geraldo Borges

Depois da chuva fiz uma visita ao meu quintal que fica atrás da varanda da minha casa, levando uma prancheta e um lápis. Para listar as plantas estão vicejando no meu chão, a começar pela grama,pequenos tapetes verdes que mudam de cor conforme a incidência do sol de manhã cedo ou no crepúsculo onde saltam gafanhotos A lavoura do meu quintal é bastante diversificada . Começo a registrar os nomes das plantas sem levar em consideração os seus nomes latinos, até mesmo por não sei. E se soubesse não iria infernizar o leitor com tanto conhecimento.

No meu quintal tem abóbora que nasce tão frágil mas em seguida vai se espalhando pelo chão. Nesta altura, como choveu muito deu abobora a valer, a gente não á conta. Para ficarmos livre dela fazemos a política da boa vizinhança. Tem ráfia que é uma palmeira, tem orquídea que no momento estão desabrochando; não gostam muita de água nem de sol preferem a sombra; são vegetais sofisticados, de espírito barroco. Tem orelha de coelho, também conhecida pelo nome de pulmonária. Tem coentro do Pará. Tem vinagreira, conhecida pelo nome de hibisco . Tem sálvia, um tempero. Tem alecrim que excelente para se tomar feito chá , ou cheirar no vapor para curar sinusite e mesmo arejar a memória. Tem tomilho, palavra bonita que aparece em um lindo soneto de Florbela Espanca quando ela se refere a uma linda rapariga do campo – “ cheirando a alfazema e a tomilho.” Tem lichia, fruta originaria da China , e já bem adaptada por aqui, parece uma pitomba. Saborosa e suculenta. Tem alho todo ano, violenta arruda, com seu cheiro forte e seu folclore para as pessoas que gostam de levar um ramo atrás da orelhas para evitar olho gordo, pois os olhos são a parte mais promiscua da carne e se metem em todas a s fechaduras. Jaca, cupuaçu, sapoti, alfavaca, considerado um tipo de manjericão, cheira que é uma beleza, abacate, quebra pedra, capim santo, mamão tomate papiro, pimenta do Reno, que dá todo ano, baunilha, uma trepadeira, acerola, pitanga. Figo que eu trouxe do quintal de minha mãe lá da província de Teresina, manga também trazida do sitio de minha irmã no Piauí Cebolinha, boldo, erva cidreira , cebola branca, que parece estar em extinção, bom ingrediente para fazer paçoca com farinha e carne seca pisada no pilão.

Espinheira santa, salmonela, que tem um cheiro muito forte e serve para repelir insetos caseiros. Abacaxi, nunca frutificou, mas parecem três coroas de reis decepadas no meio da grama, ou cartas de copas de baralho desenhadas no tapete do quintal, folha santa, babosa, que as mulheres usam como produto de beleza para amaciar o cabelo, mamona, não sei como esta planta veio parar no meu quintal,talvez tenha sido trazida pelos morcegos. É a planta dos famosos purgantes de óleo de rícino tão conhecido nas paginas famigeradas da nossa historia do fascismo tupiniquim. Goiaba. Pena que dificilmente se encontra uma goiaba saudável, dela só se salva o cheiro e a sombra. Caju, espada de são Jorge, girassóis de carolas amarelas olhando para o nascente. Tamarindo, o frondoso pé de tamarindo não está propriamente dentro da área do meu quintal mas seus galhos generosos se derramam por cima do muro do vizinho, do nosso muro e vem nos oferecer suas vagens maduras e doces. Isto me faz recordar os versos de um poeta não sei se Ferreira Gullar ou Geir Campos, não importa, todo poeta é a mesma coisa, que disse. “ Que importa a árvores carregada, dar fruto no quintal do vizinho, a natureza, o anjo de ígnea espada, ou mesmo o homem com seu machadinho?” Tem também mandioca, quer dizer aipim, samambaia, mandacaru, com frutos vermelhos. Tinha um pé de coco da praia, mas morreu, morreu de pé, continua altivo. E as arara azuis em suas viagens pousam nele para descansar de seus vôos. Depois batem asas se despedindo com um grito agudo.

Parece que terminei de registrar a lista das plantas de meu quintal, que na verdade estão mais aos cuidados de minha mulher e da nossa empregada. Ela não esquece toda manhã ou de tarde aguá-lo com um regador as plantas mais tenras e com um mangueira as mais taludas.

Nosso quintal é um santuário onde penetramos com veneração para fazermos nossa terapia. Ele é o meu refugio, meu salmo, onde meu cálice transborda, parece um pouco com a paisagem rural da minha infância no meio desta cidade cheia de arranha céus, cimento e córregos cobertos de asfalto. Nosso quintal é um pedaço da flora de nosso pais onde cantam passarinhos, onde as minhocas e as formigas e as abelhas trabalham. Louvam deuses, gafanhotos mimetizam-se no meio da paisagem. Mas eu não me iludo, um dia bem longe ou mesmo próximo ele será destruído pela sanha imobiliária para dar lugar a um condomínio, ou,quem sabe,a um grande estacionamento, a não ser que seja tombado ao patrimônio nacional, vire um parque. Mai aí já é sonhar alem dos interesses e ambições dos nossos governantes que pouco estão ligando para o meio ambiente.

Sintaxe

Ana Cecília Salis


Nem o ponto, nem a vírgula, nem a interrogação...
O que melhor responde por mim, são as reticências...
É que a fala que me inventou, não sabia o que queria...








O Ovo do Corvo

1000TON

A favela é, realmente, a nova senzala. O Favela Bairro, portentoso programa social (atualmente investigado pelo Ministério Público), criado para atender à população carente, no fundo, no fundo, foi só maquilagem. Na parte da frente as melhores casas e comércio local, próximos da entrada das comunidades, favorecidos com meio fio, asfalto, iluminação, água e esgoto, pracinha bucólica, cheirando a cenário do Projac/Globo.

Nos fundos, no fundo, morro acima, em difícil acesso, os mais distantes barracos, babau! Chama-se isso, político-eufemisticamente, de “inclusão social”, ou melhor dizendo, “capitalismo solidário”?

Gastou-se um dinheirão público com essas “melhorias” e os habitadores mais pobres continuaram socados e desassistidos nas suas pocilgas. Ah! E a nova classe média do pedaço, os habitantes da frente, tida como “C” e “D” pelos nossos pesquisadores especializados, aplaudiu, tanto é que manteve o César Mala e seu redondo lacaio Fruta do Conde no poder, com o poder do seu voto, durante doze longos anos!

Assistidos por essas benesses, os emergentes moradores, começaram a fazer cara de nojo pro pessoal dos fundos. Pô! Tem que tirar esse pessoal daqui, ou removê-los para outro lugar, esquecendo-se de que, quando lá se estabeleceram, também sofriam forte pressão para se mandarem dali , lutando contra a PM e seus pastores alemães, contra tratores vorazes e o escambau...

Juntando-se aos aqui representados pelos emergentes das comunidades, agora pertencendo às “classes do asfalto”, aqueles do Nós-pagamos-mais-impostos, as classes “A” e “B”, necessitando da utilização dessa mão- de- obra barata, não compensa mantê--los por perto? Compensa sim, desde que esses mais caidinhos fiquem longe daqui. Mantenhamos só os mais limpinhos por perto, os caidinhos a gente manda pra bem longe, ô raça!

Pobre rico Rio de Janeiro! O Conde Fruta, tentando “completar o serviço”, como arquiteto que sempre foi das elites, quis colocar muros ao redor das favelas. Não conseguiu, porque logo depois esse gordo cuspiu no prato de porcelana do Ao-César-o-que-é-de-César e teve que adotar o Antônio Menininho, mais a sua companheira a Erva Rosinha Daninha, os quais não concordavam com o gueto murado.

Reunidos em torno da Igreja cognominada “Rejuvenescer em Jesus e Ficar Igual a um Garotinho”, acabaram dando com os burros n’água, ou melhor, dando com os chifres nos muros que o Eduardinho Paes, o garotinho da Barra, conseguiu, finalmente, levantar para ver se recuperava os votos da burguesia da Zona Sul, que o Goiabeira, digo, Gabeira tomou dele (aliás, esse menino, o Edubabaquinha teve pouquíssimos votos na zona sul, engraçado!).

BERLIM DERRUBOU OS MUROS! Eu sei, eu sei, mas só os muros, o lado oriental dá pobrema , o ocidental come caviar, e, aqui, o Paespalhão juntamente com o Me-dá-Um- Cabral-Aí levantam um novo muro em pleno século 21! Caraca!!!

“Melhor” fez o Carlos Lacerda que mandou toda a ralé indesejável para a Baixada do Cacete, ou pro Cu da Zona Oeste, ou pra Onde Caxias faz a Curva, ou pra Onde São João de Meriti Perdeu as Botas, ou pros Confins Onde o Padre Miguel vai Rezar Missa, regiões essas que continuam com carência de serviços essenciais até hoje: transportes, água e esgoto, iluminação, hospitais e postos de trabalho.

Isso tudo começou lá pelos anos 60, quando “O Corvo”, e sua “Dama de Ferro” Sandra Cavalcante, à medida que desovavam mendigos no Rio da Guarda, iam empurrando para a Faixa de Gaza carioca os pobretões irrecuperáveis.

Vamos deixar de frescura, Lacerda conseguiu botar o ovo do corvo em pé! A ultra-direita lá já tinha a sua fórmula infalível, a política de resultados, traduzida assim:

Manda os caidinhos pra os alhures que os pariu e deixa os mais limpinhos por perto, sub-empregos para todos, e strawberry-burguesia-fields-feliz-for-ever!...

“Let me take you down, ‘cause I’m going throw………”

Esconderijo


Eduardo Borges

a cidade é
feita de barro,
de mínimas
moléculas de
certezas e escárnios
em paredes translúcidas.

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do livro "Sussuros". Foto de Bernardo Biagioni do site Overmundo.

Superfície

Vivian Pizzinga

Naquele calor da tarde, olhou bem para sua mão. Era uma mão fina, branca, os dedos longos, mas algumas pessoas achavam-na pequena. Para ela, era uma mão longa. Olhou seus dedos. Cinco dedos. Em uma mão. Colocou a outra ao lado, agora somavam-se dez dedos. Mexeu-os, sentiu-os. Pareciam seus, pois os sentia, mas quando os via mexendo-se, pareciam outros, de outros, seres, bichos. Eles a incomodavam, agora que se mexiam. Não sentia como partes suas. Na verdade, sentia o calor da tarde aumentar pela simples presença daqueles dedos em contigüidade às suas duas mãos. Para que tantos?, pensou. Eram muitos e nem sempre necessários. Quanto maior a superfície da pele, mais problemas. Calores, frios, suores, coceiras, sujeiras... quanto mais superfície, mais possibilidade de sentir todas essas estranhas sensações. Mas era certo que escrever, tocar violão e pegar coisas, objetos quaisquer, podiam ser ações levadas a cabo graças àqueles cinco dedos da mão direita e aos cinco da mão esquerda. Sim, ela sabia que tinham uma função, porém o caso agora era ponderar se sua função trazia mais utilidade do que o incômodo de sua existência. Mexeu-os novamente para relembrar o que sentia. Sim, eram um incômodo, eram um estorvo. Mas não tê-los poderia ser prejudicial demais. Alguns daqueles dedos seriam necessários e, dando-se conta disso, começou a avaliar quais deveria possuir, quais eram indispensáveis, e quais nem tanto assim.

Olhou mais atentamente para o dedo mindinho de uma das mãos. Tão frágil e tão inexistente... era o que menos tinha a oferecer, mas, por outro lado, em termos de superfície a mais, era o que menos incomodava. Então, quanto mais útil, mais irritante também! Difícil decisão. Pois ela queria selecionar os dedos que deixaria na mão e aqueles dos quais se livraria, sem remorso nem apego. Cogitou: e quantas pessoas por conseguem viver anos a fio de suas existências sem ter os dedos, ou sem tê-los todos, ou sem tê-los completos? Por que ela não podia viver assim também? A perda de um dedo não significava para tais pessoas a perda da vida. Mas, com certeza, seria uma existência diferente. A existência de quem não tem um dedo ou de quem não tem alguns dedos, ou, enfim, de quem deixa de ter quase que a totalidade dos dedos. De qualquer modo, cada existência é diferente da outra, ela pensou, satisfeita com suas reflexões. A existência de uma mulher com orelha furada é, na certa, diferente daquela que não a tem, ou que não o tem, a ele, o furo, e menos ainda aos brincos, ou os têm, mas de pressão. A sensação de ter um brinco de pressão muda toda uma vida e determina toda uma rotina. Pois assim é também com pessoas calvas e com cabelo. Poder fazer um rabo de cavalo ou se incomodar com o calor no pescoço, isso era determinante de uma vida! E os dedos? Sua ausência também determinaria algumas coisas, mas não necessariamente piores do que aquelas determinadas por uma franja que tapa metade da visão ou que faz cosquinha no sobrolho. Em tempos de computador e internet, a ausência dos dedos faria uma certa falta. Talvez mais falta do que o furo na orelha, ou do que brincos na orelha, ou do que franja no sobrolho. Entretanto, e ainda assim, quantas e quantas pessoas não tinham o que fazer com os dedos, por não terem teclados à disposição, ou, então, quantas e quantas pessoas são capazes de usar o teclado dos computadores com apenas dois dedos? Sim, chegou à conclusão, então, de que ao menos dois dedos deveria deixar. Pois até morrer, haveria muitos botões a apertar e nem sempre isso seria fácil de fazer com o cotovelo. Ou com a ponta do nariz. Embora houvesse tais opções. Além de tudo, havia as coceiras. Estas surgiriam menos, uma vez que não sentiria nunca mais coceiras nos dedos, porém, se precisasse coçar alguma outra parte do corpo, ter um dedo, ou pelo menos dois, faria uma grande diferença e poderia salvar uma vida!

Agora... que dedos tirar? Ela os olhou novamente e mexeu-os. E novamente, a sensação de incômodo. Incômodo por vê-los ali, mexendo, e o desconforto era por senti-los como outros, embora estivessem executando o movimento porque ela, de alguma forma obscura e incerta, comandava silenciosamente. Mas, quando os via mexendo, tinha a sensação muito clara de serem bichos, ou outros seres, que estavam em continuidade à mão, eram prolongamentos inacessíveis de seu próprio corpo e que quase ganhavam autonomia. Não, não se sentia bem com aquilo, e mais do que certo era que os cortaria fora, pelo menos alguns deles. Pois, mesmo se os que sobrassem ainda mantivessem a estranha sensação de seres intrusos em seu corpo, não formariam um grupo. Isso traria maior alívio, maior segurança. Porque quando via os dez dedos mexendo-se, de alguma forma percebia que eles tinham força, pela união que vinha do grupo. Sim, eram um grupo, e nisso ganhavam em vigor! Sentia-se então fraca perante aquele conjunto de dedos, seres prolongados de sua mão, seres outros em sua mão, intrusos do corpo em seu corpo. Mas, se fossem apenas um em cada mão, seriam solitários e distantes entre si. Ou, se deixasse dois em cada mão, ainda sim teriam um quê de abandono. Mais ainda: poderia deixar três em uma mão e uma em outra. Não seria nada mau essa falta de simetria!

Levantou-se então, sentindo uma gota de suor escorrer de seu pescoço pelo fio da coluna. Superfície do corpo! Que incômodo! Tinha então de sentir aquilo: todo aquele calor e mais o percurso da gota incerta. Intrusa estranha, mas fraca, pois se desfazia em algum lugar e não formava grupo.

Dirigiu-se até a cozinha, acendeu a luz, começava o lusco-fusco. Olhou ao redor. A geladeira. A parede. O fogão. A pia. Alguns copos secando. Um pano de chão amarfanhado. Alguma sujeira, sim. O teto. A janela mais adiante. Superfícies. Ao seu redor, coisas. Prolongamentos do mundo. Matéria feita de forma e bem acabada. Para que tudo aquilo? Para que os dedos? Estendeu a mão para a gaveta dos talheres e rapidamente retirou uma faca, dessas grandes, bem afiadas, de cortar carne. De cortar dedo. De cortar osso. De cortar veias, tendões talvez. Hesitou. Haveria dor, mas o objetivo compensava. Era destra. A mão direita era mais necessária. Porém, quanto mais necessário, maior o desconforto: lembrou do dedo mindinhomeio mole, meio inexistente, meio fraco, mas com pouca superfície. Olhou os dedos, as mãos, mexeu-os, e a faca estava em uma delas. Um prolongamento estático, que não se mexia, e que não era parte de sua pele. Um instrumento que brilhava, e os dedos, esses sim, formando um grupo que segura. Tinham poder. Botou a mão esquerda sobre a mesa, espalmando-a bem, separando os dedos. A lâmina encostou no dedo indicador, o mais sábio, o mais em riste. Começou a cortar.

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Publico o conto de Vivian Pizzinga por merecimento. A autora é competente. Conheci Vivian sensível com a psicose, por isso acho-a em talento na sensibilidade literária. O conto é grande, não é formato para essa rapidez da internet, mas aposte na dica! (Edmar)