domingo, 21 de julho de 2013

Nostálgicas Gaiolas de Transporte


(Edmar Oliveira)
 
Hoje eu acordei nostálgico. Nas minhas rugas vi o tempo distante e me deixei levar para bem muito longe quando esperava com impaciência dos meninos uma viagem de Teresina a Palmeirais ou de itinerário contrário. Mas foram tantas as idas e vindas que as modernagens foram aparecendo e o que era novidade são rugas perdidas nas circunvoluções da memória.

Lembro do vapor do Rafael. Uma gaiola de dois andares que apitava para chegar e partir deixando uma fumaça preta nos céus do carvão queimado em suas caldeiras de ferro. Ele se achegava e encostava-se ao barranco improvisado de cais e a gente tinha que se equilibrar numa prancha para adentrar na embarcação. Depois as famílias armavam suas redes no convés e a monotonia da paisagem era quebrada por lavadeiras e pescadores que viviam de trabalhar no rio. Pelo meio do dia destampavam-se as latas de frito e era um cheiro de comida que vinha abafado dentro das latas saltando pra fora. Até hoje sinto o cheiro do frito de galinha ou de carne de sol, comida fria de vaqueiros, que guardava seu aroma e sabor em latas bem tapadas. A água fria da quartinha matava a sede da comida seca. O vapor deslizava lento dentro da noite para chegar no outro dia. Em Teresina o imenso cais de concreto nos facilitava o desembarque junto com os côfos, embalagem feita da palha do coqueiro, que traziam galinhas vivas em uns, farinha, feijão e milho da roça noutros. Com a modernagem a lentidão do vapor nas águas do rio, que demorava muito mais pra subir a corrente que pra descer, deu lugar as rodovias. Também a estiagem do Parnaíba e seus bancos de arreia dificultavam a navegação. As rodovias chegaram mais ligeiras.

Rodovias era um modo de dizer. Ou buracos da estrada carroçal de apenas cento e poucos quilômetros eram feitos por quase um dia todo. Mas os paus-de-arara eram mais rápidos que o vapor. Quando chegaram os “mistos”, aí a viagem ficou mais confortável. Tinha até lugar numerado dentro do banco inteiriço. A demora se acentuava com o embarque e desembarque de gêneros alimentícios que o transporte, misto de ônibus e caminhão, tinha que receber e entregar. Mais tarde vieram as jardineiras, meio fechada nas laterais, avó dos ônibus modernos. Aí a viagem já ficava um luxo de conforto!

Mas nunca vou esquecer uma viagem que fiz com a mudança da minha tia Vangir e a família para Teresina. Pequei uma carona no caminhão de mudança. Tia Vangir e seu marido Antônio tinham uma prole muito extensa. Às vezes eu achava que ela nem sabia contar os primos e primas. Viemos, os meninos, em cima da carroceria carregada da mudança. Móveis, bilheira, potes e outros utensílios de fácil quebra que nós tínhamos de salvar dos buracos. Os trapos eram poucos, mas tomavam quase todo o espaço. A farra era boa nas nossas peraltices. Mas quando chegou a noite a meninada foi se agasalhando como podia em cima do caminhão. Lembro que ainda tinha um galão de gasolina, cujo cheiro irritante desencadeou em mim uma crise de asma. Chegamos tarde da noite numa casa no bairro da Vermelha que não tinha luz elétrica. Minha tia tentava acomodar aquele bando de meninos nas redes, algumas com dois ou três. Dei sorte de ficar sozinho numa rede porque “piava” muito e tinha grande falta de ar que só melhorou quando o dia clareou. No café, tia Vangir deu por falta de um dos meninos que devia ter de ter ficado em Palmeirais ou naquela parada no Castelhano, onde eles tinham uma propriedade e nós paramos para almoçar. É claro que o primo apareceu logo depois por ali mesmo, só tinha saído para fazer uma incursão na cidade grande de madrugadinha, que era costume da roça.

Mas a jardineira, na qual andei muito, ficou embalando minha nostalgia numa foto que o Paulo José me mandou por e-mail. Se ela veio da nuvem da internet eu andei nela nas nuvens das minhas lembranças nas estradas esburacadas parando em Nazária, Caititu, Estados Unidos, Capumba, Castelhano e Riacho dos Negros, antes de chegar nos Palmeirais. A nostalgia vem das rugas que vejo num espelho, como num poema do Climério.

1 verso

 
A CARA NO ESPELHO
 
Há algo estranho em minha face
Parece um mapa dos dias
Gastos em momentos de esperas
 
(Climério Ferreira)
 

COM O MESMO ESPÍRITO...

 
Lázaro José de Paula
 
COM  O  MESMO  ESPIRITO  DE  PORCO
PERAMBULANDO  NA  MESMA   POEIRA  DE  ESTRELAS
A  DESEJADA    DOS  POVOS  DIZ  QUE
ATRAS  DO  ARCO - IRIS   TEM  UM  POTE
DENTRO  DUM   POTE  DOIS   FARÓIS
FARÓIS  QUE  ME  SERVEM  DE  GUIA
PRA   FORTE  E  FARTA  SANGRIA
NAS  NAVES  DO  MEU  PENSAMENTOS
PENSAMENTOS   QUE SÃO  DE  VOCE
MINHA  LINDA  QUIMERA  ANTIQUÍSSIMA
BAILARINA  SALOMÉ  DE  SALÉM
 
_______________________________________________________
ilustração: The Rainbow: Study for 'Bathers at Asnières, Georges Seurat, 1883

Paulo Tabatinga

o fotógrafo pousou o helicóptero no fio, como um pássaro!

Poema maior



(Léo Almeida)
(sob o prisma de Bandeira e Cabral)

 

Quero cantar os passos matinais
de minha prole, de meus irmãos,
desses meus espelhos fraturados
- sou seu pai, seu filho -
louvar seus pés decididos, suas mãos
suas unhas com esmalte barato
copulando óleo e carvão
seus calos, rugas, flores murchas
seus olhares destemidamente apavorados
tão carentes e tão senhores de si
nessa manhã fria de novembro.
Saudar os rostos sérios, os bocejos,
o hálito de quem mastiga o mal dos dias
o cansaço estampado na expressão de sono
que invade meu caminho nesta epifania.
Sou eu naquele par de sujos tênis
naquela saia de brim desbotado
na farda de vigilantes e policiais
são minhas as costas onde se apóia aquela mochila
com livros, carnês e marmita fria
É meu o ombro que suporta o mundo, sim
pois assim deve ser.
É minha a mão calejada que arrasta uma criança
É meu o estômago de quem não se alimentou nesta manhã
e as dores de quem veio em pé no coletivo lotado
no metrô, nos trens, nas vans, nas bicicletas.
Sou eu, eu que mal dormi
e corro atrasado para empacotar margarinas
repor mercadoria num supermercado.
É minha a teta flácida na boca do menino
e é minha aquela boca ávida na teta flácida
Eu quem tosse, espirra, fuma e cospe
carpindo um dia que parece não ter fim
neste seu começo.
Eu quem chuta a lata de cerveja na calçada
quem morre sozinho na periferia
quem sonha e quem se desespera
São meus os dentes cariados que sorriem
E que mastigam a média no bar da esquina.
Eu sou o outro que me olha e que me instiga.
...
Perdoa, poeta, mas não. Definitivamente, não.
Não são galos que compõem uma manhã
Não, não são.
São homens, a urbana prole,
que tecem, em sua marcha, esta e todas as manhãs
com seus fios de esperança e desencanto
e seus gestos de homens costurando o dia.
Ou será que essa manhã fria de novembro,
 com sua melancolia e bruma,
tece um novo homem em mim?

 

...cidade, te

quero qualquer coisa de minha

relâmpagos saraivados de sabores

terra entre dedos domingueiros

abraços d’avó querida

te quero silêncio latente (latido

miado, um berro forte)

ar... efeito: o tempo da morte te

quero alarido ronco uma dose ausente

um dia nublado, saudade

o gemido da gente
 
______________________________
do livro "Cidade Frita" de Rodrigo MLeite
foto poema de Paulo Tabatinga

poema de louvor a Amarante e à vida


(Remansos)
.
quem ouviu o grito plantado na vida do rio
e percebeu o mistério dos olhos na ciranda
das águas
aprendeu que a esperança anda a galope
nas margens do Parnaíba.

guarde no peito com cuidado
os nostálgicos sons de Amarante
dos rios, serras e segredos
partitura do nosso encantamento
casarão da rua principal

rua do fogo, do fio
areias da minha vida.
quem ouviu o crepitar da acendalha
no beiço da ribanceira
e percebeu o renascer da invernada
no ciclo evolutivo das sementes
aprendeu que o povo guarda o segredo
das raízes.

desça hoje a escadaria
entre fantasmas azuis
e lusas lembranças
da cidade que entre rios
delira
onde uma gente luminosa e livre
amorosamente livre
constrói o amor definitivo.
ali o mundo mágico dos sentimentos
se agiganta
aqui a poesia brinca nos areais
da confluência


(Carvalho Neto)

___________________
poema enviado por Cinéas Santos

Alzheimer


A família que não recorda
Se encontra no alzheimer

(Paulo Tabatinga)

LITANIA Nº 3


Há uma noite
incidente
aqui na janela
com seu pincel
de estrelas. A mesma
das ruas
e dos delinquentes.

... Dela se adornam as flores
e os assassinos
para vestir
sua túnica ancestral.

Não posso bebê-la
ou amarrá-la como a um
cão, nem sequer renegar
seus arcanos, mas
posso escandi-la
em minhas geografias.

Quisera olvidar
o teu nome, ó irmã
do inumerável!
porque frio é o chão
do teu silêncio
e deserta a estrada o medo.

Mas habitas meus rastros
-- feroz e sorrateira! --
sob a métrica do tempo provisório.



 Salgado Maranhão
(Do livro “O Mapa Da Tribo”)
desenho Amaral
Paulo José Cunha mandou essa:
Texto claro, objetivo, conciso, direto... sem margem para dupla interpretação! Dá gosto ler coisas bem escritas. Chega a ser comovente, nesses tempos de tanta ignorância em relação à língua portuguesa.
 


Redator de impecável estilo literário!


 
 
 

 
 

domingo, 7 de julho de 2013

Tá bonito prá chover!




(Edmar Oliveira)


 
Foi com satisfação dividida que ouvi meus conterrâneos louvando a chuva que chegou fora de época, agora, em Teresina. Nas redes sociais os piauienses cantavam o cheiro da terra molhada, a diminuição da inclemência solar do equador, e deixar o corpo banhar-se nas bicas dos telhados fartos. Houve mesmo quem gostou de ter goteiras em casa com um telhado feito mais pra proteger do sol do que da chuva. Aliás, chamamos o guarda-chuva de guarda-sol pela melhor utilidade da indumentária.
Banhar é um verbo só conjugado na nossa terra. Ninguém lá diz “vou tomar banho”, mas um delicioso “vou me banhar”.  Na chuva então fica mais gostoso. “O menino banhou?”, conjugamos o verbo na pergunta e eu pergunto quem não foi pra chuva banhar de alegria quando foi criança?
O carioca não gosta de dias nublado, reconheceu a cantora gaúcha. Quando aqui cheguei não entendi quando o rádio ou a tv dizia que ia ter tempo bom e eu saia num sol de rachar que, tirante a brisa do mar,  torna o verão carioca muito igual a quentura do meio dia do sertão. Pra mim o tempo bom deles era aquele calor de amolecer o juízo, que cansei de experimentar na terra filha do sol do equador. O meu tempo bom sempre foi chuvoso.
Um amigo meu disse que só conseguiu pensar mais devagar quando saiu do sertão pro litoral. Diz ele que só conseguiu elaborar um raciocínio mais complexo quando o sol deixou de amolecer seu juízo. Tirando o exagero, faz algum sentido. Como aquele personagem de um romance do Camus que comete um assassinato porque estava fazendo muito calor no norte da África. Camus, sim, exagera. Se seu personagem fosse colocado no sertão seria tomado de uma fúria homicida bem maior, pensando eu aqui que o escritor nunca imaginou o calor do Piauí.
Mas devido às mudanças climáticas tá chovendo em julho no Piauí, coisa de acontecimento extraordinário e de justas comemorações. E aí dá saudade. Euclides da Cunha, nos Sertões, quando comenta o clima do nordeste diz que ele faz o homem ir embora e voltar, diferente de outros nômades da terra. É que no sertão o cinza se faz na inclemência do sol e falta de chuva fazendo o sertanejo arribar. Mas é só cair as primeiras chuvas que o verde volta e quem foi embora também volta.
E não é à toa que quando as nuvens cobrem o sol carregadas de água a gente diz: tá bonito pra chover!
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foto: futebol na chuva e no sol, no Piauí

NUM VERÃO TÃO INTENSO,...

 
Lázaro José de Paula
 
NUM  VERÃO  TÃO  INTENSO
ONDE  UMA  MÃO  LAVA   A  OUTRA
E MANTEM  LIMPO  O  MISTÉRIO
EM  QUE  O  JOÃO- DE-  BARRO
NÃO  TEM  PROBLEMA  DE CASA  PRÓPRIA
UM  MUTIRÃO  DE  LIMPEZA
COM  GRITOS NO  ASFALTO
INTERROMPEM  O  TRANSITO
E  ACUMULAM  VÁRIAS  FUNÇÕES 
HÁ  FARTA   DOAÇAO  DE  SANGUE  AZUL
COM  FRUTOS  DO  MAR  DE  MIM  MESMO
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foto: Paulo Tabatinga: Don Quixote do ex-hospital Meduna em Teresina

Descaminho

 
Se soubesse o caminho
Em que me perdi
Reinventaria com carinho
O desejo de seguir
.
Desfaria de mim a melancolia
Que a noite solitária instalou
Inventaria um novo dia
E um amanhecer de luz e cor
 .
(Climério Ferreira)

posso te dizer uma coisa?



Rodrigo M. Leite
 
ao descobridor Arnaldo Albuquerque
.

que os homens andem vagarosamente
passos lentos corredor
que os móveis estejam empoeirados
telhas quebradas goteiras
que o dia pese aos poucos no peito
tardes praças calores
.
que eu caminhe contigo,
aceite tua bebida!
.
se estive pensando no rio,
nos banhos não dados todo este tempo?
em tarde de recusa saldões jaquetas
a sombra ainda me agrada os membros
relaxos, contornos
 

Jorge Ferreira


JORGE FERREIRA NOS CÉUS DO DF
 
(Celso Adolfo)

Versos de Climério Ferreira homenageiam Jorge Ferreira.
E eles têm que ser colados nas paredes de Brasília
distribuídos nas escolas públicas
encartados nos cadernos de publicidade dos jornais
nos cadernos de balancetes dos bancos
nos cadernos escolares (mas antes do Hino Nacional)
nos bancos e praças de Minas Gerais
na entrada e saída de Cruzília
nas folhas em que se segue a missa
lançados para flutuar no Paranoá
afixados nos arbustos
e cuidadosamente esquecidos nas planícies do centro-oeste.
 
Versos de Climério Ferreira que homenageiam Jorge Ferreira
deveriam ser encartados na Bíblia.
 
Em Minas Gerais é custosa a homenagem. 
É custoso o reconhecimento.
Mas os versos de Climério Ferreira são tão límpidos
que não há distração ou estupidez ou cara de pau 
entre nós que nos permita ignorar seus sentidos.
 
São esses os versos de Climério Ferreira
que homenageiam Jorge Ferreira:
 
VIVA JORGE


De tanto embriagar os poetas
Ele ficou embriagado pela poesia
E se tornou ele próprio um poeta
Queria tanto voltar pra Minas
Que errou o caminho e foi pro céu.


(Climério Ferreira)
_________________________
Jorge Ferreira era animador cultural, poeta e contador de causos de Brasília. Dono do Feitiço Mineiro e outros bares famosos do DF. Beber em Brasília ficou mais triste.

Trilha



As cinco da tarde
tenho febre

Meu corpo ferve
e as horas me derretem
como o relógio do Dali
Não reconheço as forças
que lutam em mim
Alguma coisa grita:
Me tira daqui
Então, levo a febre
 pra passear

     (Lelê Fernandes)

Sergival



Alô, meu caro Edmar, alô Gervásio...

As palavras me sumiram quando abri o arquivo e me deparei com excepcional traço...fiquei boquiaberto!!! Fabuloso, Gervásio...
E, estando eu boquiaberto, aproveitei a deixa e me danei a falar, ou melhor, digitar essas "poucas" palavras...

Ver retratada a fisionomia, e mais que isso, a essência do trabalho que desenvolvo focada em nosso chão, muito me emocionou. Preciosíssimo, Gervásio.
Sabe, Gervásio, somente vejo como OBRA DE ARTE o grau de excelência de seu trabalho. E sempre foi assim, desde que passei a devorar assiduamente o Piauinauta e encontrar a leitura que você faz com tanta propriedade da imagem.
Não sei de suas crenças, mas pelas minhas rogo a Papai do Céu que te ilumine cada vez mais em dom e inspiração e que lhe retribua em dobro este presente que sua generosidade se dispôs a criar.

De antemão, informo que vou plotar em papel especial e emoldurar, para que possa apresentar sua obra aos amigos, com "paspatú" e tudo que tem direito.
Aliás, acredito muito na força que move as obras artísticas, e principalmente nas possibilidades que se disprendem delas.
E é justamente nessas possibiliades que pretendo retribuir sua gentileza, não só com esse especial MUITO OBRIGADO. Deixemos o tempo agir.

Pode ter a certeza que me emocionou, e aceite esse brinde que você retratou em minha mão, pois não me farei de rogado para tornar real em nova oportunidade que vou fazer questão de promover junto com os demais novos amigos que estavam presentes em nossa mesa quando lá no Mercado de Laranjeiras, meu caríssimo Gervásio.
Edmar, meu muitíssimo obrigado a você também, pela gentileza de ter me apresentado e estendido sua amizade aos seus, disparando assim a criação desse "papo-amarelo" com o qual estamboco no ôco do mundo a nossa música nordestina.

E se me perguntares ao ver esta obra de arte:
- Lascô o cano Sergivá?
Eu responderei "nas buchas", parafraseando o véio Lua:
- Lascô, meus caros Gervásio e Edmar. Mas ao redor de 7 léguas, num vai ter fio d'uma égua que não mostre este quadro.
Um fraternal abraço, antes que eu chore!!!
Sergival.

____________________
Sergival apresenta o programa "Puxe o fole", todo domingo, a partir das onze horas da matina na Rádio Nacional.

O Último Minuto


(Luiz Horácio)
 
"A forma esférica da bola é exatamente o símbolo da imprevisível casualidade", afirma Peter Handke. Calma, apressado leitor, não confundo Backes com Handke, calma... voltarei ao austríaco daqui a pouco.

O motivo: Handke assim como Backes, também escreveu um livro  que traz o futebol, melhor dizendo, os bastidores do futebol  nos  bastidores de suas narrativas. O autor chega à  beira do túnel,  e por enquanto O último minuto  é “o nosso grande livro sobre futebol.” Backes, porém, é mais antropológico em sua análise, mais cientista social, mais arquibancada, menos gramado. E por esse viés, O último minuto é obra prima.

Mas eu disse bastidores. Isso mesmo, porque em ambos, sob a luz dos holofotes, o leitor encontrará a angústia.

O último minuto apresenta a desgraça de Yannick Nasyniack, apelido: João, o Vermelho, descendente de alemães e russos. João vive seus dias iguais em um presídio no Rio de Janeiro. Cometeu um crime que será revelado ao final do livro.Crime, que em determinados momentos ele chega a questionar sua autoria.

A narrativa, aparentemente simples, se sustenta na conversa entre Yannick e um jovem missionário.

A vida, do início ao fim, do condenado é esmiuçada detalhe por detalhe, Backes marca o passar do tempo com a ampulheta do futebol. Cita vários jogadores, fatos do mundo futebolístico sem esquecer seu patético folclore.

Tamanha preocupação em situar o leitor, Backes por vezes chega a ser didático, esmiuçando espaço, tempo e sobretudo a vida de Yannick, contrasta com a rara "documentação" acerca do missionário que ouve e a seguir contará a história.

"A apropriação talvez aleivosa continua, mas sinto que preciso dar, pelo menos oficialmente, um crédito maior a meu Yannick, e juro que tudo aquilo que faço, tudo aquilo que fiz desde o princípio, inclusive a maior ingerência de caráter erudito em seu discurso, foi e é apenas para sua maior honra e glória."

Ao  leitor caberá aguardar  o apito final, onde será informado sobre a, também, angustiante vida do narrador.

O dito acima não empana em nada o excelente trabalho de Marcelo Backes. Vale ressaltar,  e seus livros anteriores testemunham, O último minuto é a comprovação de um autor na contramão da sonolenta e acomodadíssima literatura brasileira contemporânea. Backes não engrossa as fileiras do politicamente correto, felizmente, e é de nossos raros autores a equilibrar com excelência a abordagem espaço/tempo.

O último minuto vai muito além das  “eruditas teses”que o colocarão no rol dos romances narrados por presidiários. Poupem-me.

Não tenho dúvidas que textos e textos com tal argumento ocuparão páginas e páginas, mas infelizmente é assim, vício de professor que pode ser comprovado na imensidão de publicações sobre  a obra de Machado de Assis, noventa e nove por cento diz a mesma coisa.

Deixo claro que também sou professor, e nesse rol me incluo,  embora busque distância cada dia maior desse imenso bando de perroquets fatigués.

O autor situa o leitor, apresenta os cenários, inicialmente a origem de Yannick ,a comunidade de Linha Anharetã, no interior missioneiro, localidade  bastante familiar aos leitores dos livros de Backes.

A localidade é referida sempre envolta  em tules de  saudade, sofrimento, rusticidade, violência e angústia.

Violência e angústia. Vem de Anharetã a eficácia da violência para resolver problemas supostamente sem solução.

Tu já matô os gatinho?

Ouve-se e o ouvido dói.Mal se conhece o estranho que conta, que fala, que narra uma arenga sem fim, jurando que foi assim que tudo começou. Pois é, o pai voltava da lavoura, a família já estava à mesa, as panelas fumegavam, que travessas não havia. E ele, o estranho, o que conta e jura, é obrigado a se levantar, ir ao galpão, pegar os recém-nascidos, olhos fechados, nada do  mundo ainda, a não ser um punhado do precário de deduções às cegas, seis num saco, levá-los pra roça, miados mínimos, lamentos minguados de quem não sabe o que se passa e apenas sofre pela mãe só teta tão longe de repente, e bater todos contra  moirão da cerca antes de jogá-los nas macegas, já mudos, calados pra sempre.”

E a violência se faz presente ao longo  lda narrativa, vem de Anharetã, Yannick a utiliza de todas as formas e aos poucos o leitor perceberá que o jovem missionário também será contaminado.

Arrisco dizer que é uma narrativa seca, violenta, por vezes tosca, adequada aos cenários, Anharetã e Rio de Janeiro, ou você, inocente leitor, pensa que a cidade maravilhosa é um mar, um mar de rosas?

O fato de ser uma narrativa áspera também não diminui em nada os méritos de O último minuto, acrescenta mais curiosidade além de deixar bem exposta a coragem/qualidade de Marcelo Backes.

Mas afinal de contas o que tem nesse livro que insisto em enaltecer, você deve estar se perguntando, exigente leitor.

Tem, sobretudo o talento do autor para equilibrar a rusticidade verbal de Yannick e o seminarista com a sutileza  utilizada para trafegar entre os constrastantes  mundos vividos pelo presidiário, Anharetã, Suíça, Rio de Janeiro.

Mundos que de uma maneira ou outra foram traídos por Yannick,

Anharetã , abandonada;Suíça onde deixou o cheiro da mangueira do gado pelo vestiário do estádio de futebol e o Rio onde cometeu seu deslize fatal. Ou seriam...deslizes?

A trama? Sim, a trama, quase esqueço. Grato pelo puxão de orelhas, tosco leitor.

Yannick deixa Anharetã e vai viver na Suíça, peão, trabalhador braçal, sem conflito abandona mulher e filho. Brasileiro e ex-jogador de várzea, não encontra obstáculo capaz de impedir que se torne técnico de futebol. Ao retornar ao Brasil, Rio de Janeiro, continuará no ramo.

Nunca esquecendo que Yannick narra sua história de uma cela de presídio. A vida desse presidiário vem a ser a parte banal do livro, cuja riqueza reside nas  digressões do presidiário e do narrador. O futebol aparece como a grande metáfora. Depois da metade do livro é que a subjetividade de Yannick bem como a do missionário saltam ao primeiro plano expondo as semelhanças angustiantes de ambos.

Tão semelhantes que as vozes por vezes chegaram a confundir este tosco leitor.
E por falar em angústia, não eu não esqueci do que anunciei ao início deste texto.
O medo do goleiro diante do pênalti é o título brasileiro de um livro de Peter Handke. A história de Joseph Bloch, goleiro que perde seu lugar num time de Viena, após discussão com árbitro e suspensão aplicada pela diretoria. Nada a fazer , anda pela cidade, vai ao cinema e acaba dormindo na casa da bilheteira. Na manhã seguinte, sem motivo, a estrangula. Por um tempo leva vida normal até mudar-se para a pensão de uma amiga onde aguardará, angustiado, o fim da sua liberdade.
O último minuto vai além do ganhar e perder, chega ao sobreviver. Superar perdas e a incapacidade de preencher vazios. Tudo em precisas 220 páginas.
 O último minuto e O medo do goleiro diante do pênalti vão aos poucos deixando a mostra as entranhas de Joseph e  Yannick. 
Ambos aguardam julgamento, ambos admitem suas culpas. Angústia e culpa, pesadelos inseparáveis.
Handke e Backes, Backes e Handke. Superiores...extremamente superiores.
Seria responsabilidade da forma esférica da bola essa louvável casualidade?
 

TRECHO
Já me chamando e colorado, um sorriso ralo no rosto, ele insistia em dizer que o futebol desde sempre havia sido uma metáfora formidável, uma comparação como nenhuma outra dava conta das potencialidades da vida real. O futebol era o verdadeiro teatro da existência, o maior circo de todos os tempos, a última representação sacra da contemporaneidade. Um rito, no fundo, a religião popular dos que ainda não haviam se entregado toscamente ao neoevangelismo, e bebiam seu pão e seu vinho em doses fartas de cerveja e salgadinhos vendo a bola rolar.

O futebol era o esperanto popular, a linguagem universal em que as pessoas podiam aplaudir o preço do bilhete de entrada, e ainda por cima de um concerto do qual inusitadamente compreendiam todas as notas. Sim, o futebol era o único lugar em que até ao mais macho dos homens era permitido se mostrar histérico, segundo ele, uma das poucas manifestações capazes de mostrar com fidelidade um bom pedaço do universo.

Ainda que o mesmo futebol, seu futebol, seu amado futebol, estivesse cada vez mais dessacralizado pelos interesses sempre escusos da moeda e das negociatas, uma boa partida continuava sendo uma imitação do mundo, com suas regras, seus uniformes, seus aliados e seus inimigos, divididos em times.

 


AUTOR

É escritor e tradutor brasileiro nascido em Campina das Missões (RS), em 1973. Em sua obra, destacam-se os títulos: Estilhaços ( 2006)  maisquememória (2007) e Três traidores e uns outros (2010). Doutor em germanística e romanística pela Universidade de Friburgo, Backes verteu ao português obras de Arthur Schnitzler, Franz Kafka, Hermann Broch e outros.

Tabatinga - Instante


Mautner em Teresina



Vídeo produzido por Gilson Caland na Estação, em Teresina Piauí. Mautner fala do Piauí e do seu povo.