domingo, 23 de dezembro de 2012

um conto de natal


Edmar Oliveira
 
A velha levou o menino pro padre fazer o batismo. O menino nasceu no pé da serra do Araripe, num lugarejo do mesmo nome, perto do Baixio dos Doidos. Por cima da serra um chapadão se estendia a perder de vista separando os dois estados nordestinos. Mas o lugar do nascimento ficava muito distante das duas capitais na mesma lonjura. O lugar em que o menino nasceu era verde quando chovia e o mel das abelhas inxu era o melhor daquele pé de serra.

A velha que levou o menino para receber o batismo não sabia o nome do menino. Como era dia de Santa Luzia o padre chamou de Luiz o menino sem nome. E a velha nem sabia o sobrenome dos pais. De modo que ficou Nascimento em louvor ao mês do nascimento do menino Jesus. O menino cresceu vendo e apreendendo os ensinamentos do pai. Mais ou menos taludinho tentou enfrentar um fariseu na feira. Apanhou da mãe, fugiu de casa e desapareceu. Naquele pé de serra não se sabia notícia do menino por muito tempo. O menino escafedeu e o povo se esqueceu. As abelhas de inxu faziam mel, mas quando o mandacaru secou, o lameiro empedrou, as arribaçãs sumiram, o mel acabou.

Quando não chove no chão, a terra avermelha, fica fina feito pó levada pelo vento, cobre as soleiras das portas com a cor da terra. Os açudes secam na rapidez do sol escaldante, a água evapora saindo de dentro do chão esturricando e rachando o fundo das reservas d’água. O gado come a palma do mandacaru enquanto tem. O cabrito lambe o sal da terra procurando sustança. Perto do Natal Santana lembrava do menino que foi embora e já se fazia muito tempo.

Foi preciso esverdear, o ribeirão voltar, a flor brotar para as abelhas inxu trabalharem afiadas no fabrico mel. Nas ondas do rádio alguém descobriu a voz do menino. Cantando loas à terra deixada pra trás, mas não esquecida. E era de sua terra que o menino cantava em louvor a sua gente. Era Gonzaga que fazia sucesso lá pras bandas do sul.

O resto da história o povo sabe de cor. E uma outra lua brilha no céu na comemoração dos cem anos do rei do baião.    
__________________________
foto: a lua é do Paulo Tabatinga onde eu botei a sanfona do Lua.   

klöZ por 1000TON


Jesus, um cara legal


 

Geraldo Borges           


Jesus deve ter sido um cara muito legal. Claro. Irradiando luz. Continua sendo. Imagino-o com a sua família na aldeia de Nazaré no meio dos irmãos, da mãe, dos tios, trabalhando na oficina de marceneiro do seu velho pai.
 
            Aos doze anos assustou toda a comunidade de fariseus quando passou um pito nos doutores. Talvez tenha começado aí a sua tragédia e paixão; justo por contrariar este tipo de gente metido a besta. Tanto que a partir deste momento, desapareceu. Suponho que o tenham deportado.
 
 Daí por diante não se fala mais no evangelho sobre a juventude de Jesus. Ninguém sabe se ele foi roqueiro, passou noites em baladas, andarilho. Silencio total sobre a sua juventude. Alguns historiadores dizem que ele foi para o deserto, meditar. Não sei. Tem gente que acha que ele nunca existiu. Seu nascimento foi um mistério, sua mãe era virgem. E que ele não passa de uma bela metáfora que os judeus ofereceram numa bela jogada de marketing aos gentios.
 
            Durante o seu nascimento os reis magos apareceram com as mãos cheias de presentes para ele. Herodes ficou puto da vida. Por que diziam que o menino iria ser o rei dos judeus. E não sabendo como encontrá-lo mandou matar milhares de crianças recém nascidas. Quem sabe o menino Jesus não estaria no meio delas. Mas o casal Maria e Jose  avisando em sonho pela providencia divina, tomaram o menino e fugiram para o Egito. Só voltaram depois que Herodes morreu.

            Uma voz no deserto anunciou que ia aparecer um messias. Aí Jesus apareceu e foi batizado à margem do rio Jordão. Ninguém diz de onde ele veio. Aí começa depois de batizado o seu ministério, o seu mistério. Como ninguém é profeta em sua terra, ele entra em Jerusalém montando em um jegue. Começa a curar doentes, ressuscita Lazaro, ama Maria Madalena. Tira espíritos malignos dos corpos dos possessos, e lança–os ao mar. Transforma água em vinho. Como eu gostaria de ter bebido deste vinho e desta água que aplaca a sede para toda a vida.

            Jesus de tanto ser um cara legal, de tanta se preocupar com o povo miserável e pecador, de fazer discursos e milagres já tinha até um grupo a seu favor, um partido constituído de apóstolos; Jesus reuniu tanta gente no sermão da montanha, que causou medo as autoridades romanas e judaicas. O pior foi quando multiplicou os pães e os peixes. Os economistas e os comerciantes da época não gostaram. E, fez mais, andou sobre as águas. Que legal bicho. Surfou sem precisar de prancha. Pedro tentou. Pedro sempre tentava e era tentado. Mas como era um homem de pouca fé, afundou. Uma pedra. Mesmo assim Jesus estabeleceu sua  igreja  nesta pedra. Jesus era e é um cara legal.

            Tão legal que, segundo o evangelho, que todo mundo conhece, morreu por nós. È uma historia complicada, com sabor de lenda, mito, enigma. Tudo começou com Adão e Eva  no Paraíso. Só que ninguém entende a leitura,  a escritura, ou, melhor, todo mundo entende lá do seu jeito, ou finge que entende. O importante é que Jesus continua sendo um cara legal. Um cara tão legal que quase ninguém conhece. Até Pedro que ele tanto amava, disse, eu não conheço este homem. Foi a primeira vez que Pedro ouviu o canto do galo. E nós continuamos dizendo a mesma coisa. O diabo é que ele nos conhece. Viu aí?, o diabo tinha que entrar no meio desta história. Pois este rapaz faz parte dela, é um desafio. Tanto quando Jesus Cristo, que é um ponto de interrogação  para os cientistas e filósofos que estão longe de ser um cara  legal quanto ele.

            Jesus que demorou tão pouco fisicamente neste mundo deixou sua sepultura vazia. Deu um susto em Madalena. Passeou pelos caminhos de Emaús junto com alguns apóstolos que não o reconheceram. Comeu peixe. Despediu-se e disse vou para o pai. E prometeu voltar. Alguns poetas acham que ele não deve voltar. Se bem que a bem da verdade ele não saiu daqui. Talvez esteja no deserto. A voz que proclama no deserto. Um cara legal, de braços abertos abençoando o pobre povo brasileiro.
 
___________________________
ilustração: Head of Christ, Leonardo Da Vinci
 
 
 

quase um haikai

 
EU NÃO SEI PORQUE É
QUE DO CUME DA CABEÇA
AO DEDÃO DO PÉ
I LOVE YOU
I NEED YOU MULHER???!!!
 
(Lázaro José de Paula)

Outra vez


Edmar Oliveira
 
Outra vez. Um americano esquisito armado atira em vítimas indefesas. Um massacre comum naquelas terras. Mas que americano é esquisito, parece nos filmes. A loucura de um povo e dos costumes pode ajudar a entender, não a loucura individual do atirador.

O menino era um nerd, psicólogos lhe apontaram uma síndrome meio autista, mas deles o Vale do Silício está cheio e por eles temos as maravilhas da informática, não as mortes inexplicáveis.

A mãe, sim, tinha um comportamento muito americano: levava as crianças para a prática de tiro ao alvo, esporte preferido de muitos naquele país. Ela tinha uma coleção de armas e gostava de desfilar suas marcas, potências e capacidade destrutiva, enquanto ouvia jazz e tomava cerveja num bar próximo de casa. Adan era um menino retraído que mal saia de casa.

Os americanos têm mais de uma arma “per capta” e as lojas do ramo estão em cada esquina como aqui se vendem remédios nas farmácias ou bebidas nos botequins. Nos filmes se resolvem problemas atirando e é impressionante como as câmeras não se preocupam com os que morrem pelo caminho em tiros ou explosões espetaculares. Elas seguem o mocinho que se torna herói após matar metade do elenco. Não é assim?

Michel Moore, em Tiros em Columbine, levantou essas questões e apontou a poderosa National Rifle Association (NRA) como defensora intransigente do livre uso de armas, que ameça derrotar presidentes que se oponham a essa questão. A tragicômica entrevista com Chalton Heston é inesquecível nas cenas finais de Columbine.

Os conservadores e, claro que há os interesses comerciais, a indústria bélica não deixam que a questão seja sequer examinada. É certo que o livre uso de armas pelos cidadãos americanos é garantido pela constituição e isso exigiria uma emenda à carta magna.

Mas não já morreu gente demais por esse culto às armas? Não seria melhor um adeus? Ou o Obama vai ficar em silêncio? A charge do Latuff é melhor do que qualquer explicação sociológica.
____________________
charge retirada de OperaMundi

Sérgio Samba Sampaio


Curraleiro Pé-duro


Agora tá valendo. O Ministério da Agricultura publicou uma portaria reconhecendo o gado “curraleiro pé-duro” do Piauí como raça brasileira. Esse animal é uma legítima mutação darwiniana do boi trazido da península ibérica para os sertões do Piauí, que alavancou nossa colonização. Assim como nós somos resistentes filhos mestiços do português com as irmãs do Mandu Ladino, o boi do Piauí se adaptou correndo na caatinga e no cerrado procurado com esmero pelo nosso vaqueiro e se tornou um bicho arisco, pequeno, da carne dura, mas com um potencial de reprodução extraordinário.

Pesa menos da metade do gado zebuíno, portando desconfie de uma picanha que pese mais de meio quilo. E não reclame de que a carne tá dura. Macio nesse bicho só o pequeninho filé mignon, a mão-de-vaca ou a panelada por culpa da pressão. Agora, pense numa carne que tem sustança e sabor. E a nossa carne-de-sol é a melhor do Brasil, palavra de quem provou a de Caicó.

E minha filha dizia que o piauiense não sabe fazer carne. A culpa é do boi, não do homem. E os nossos cortes são outros: dianteira e traseira; de primeira e de segunda; com osso e sem osso. Não tem todos os cortes do gado gaúcho e argentino, que o nosso é um bicho pequeno. Mas não humilhe não, que a nossa vaca é sagrada tendo sustentado as árvores genealógicas do povo da nação Piauí. Gente esmirrada, mas valente. Como disse Euclides: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Como o boi “curraleiro pé-duro”, acrescento.
(Edmar Oliveira)

Lan & Biglione


 
Na Praça São Salvador, quase o quintal aqui de casa em Laranjeiras, todo domingo tem uma roda de choro no coreto da praça. A gente compra uma cerveja numa das muitas barraquinhas e fica ouvindo um som da melhor qualidade. Vez por outra acontece um prêmio. Neste último domingo o grupo de choro fez uma homenagem ao cartunista Lan. E Victor Bliglione veio oferecer uma canja. Maravilha!

+ 1 versinho


SERTÃO DAS ALMAS
 
      
Tem hora que a fome é tanta
Que a barriga num güenta
Toda essa falta de janta
Sob um calor de quarenta

Dá um tremor na garganta
Uma secura na venta
Uma lerdeza tão santa
Uma fraqueza jumenta


(Climério Ferreira)

Nísio do Acordeon



Nísio no Acordeon, Morrom no pandeiro, Sergival no zabumba e Chico Salles no triângulo. Aniversário de Roberto Araújo no restaurante "Nordestino Carioca" em Jacarepaguá, Rio.

Depois emenda com Gereba na Feira de São Cristóvão homenageando Gonzaga.

domingo, 9 de dezembro de 2012

edição comemorativa dos 5 anos


No dia 4 de dezembro de 2007 o Piauinauta foi mandado ao espaço virtual. Permanece em órbita há cinco anos, com pequenas mudanças. Mas sempre no mesmo rumo: ser uma revista periódica como antes foram os jornais alternativos da década de 1970. A primeira crônica, cujo título deu nome ao blog, é reproduzida nesta edição. Outras crônicas foram pinçadas da viagem espacial para esta edição comemorativa.

A nave tinha como missão resgatar outros astronautas perdidos do planeta, expulsos pelo movimento de rotação da globalização e da modernidade. Geraldo Borges, primeiro astronauta piauiense resgatado em Mato Grosso do Sul permanece na cabine de comando desde o começo. Climério Ferreira, um piauiense candango, desde que entrou ajuda a manter a nave em órbita, como perfeito engenheiro de voo. Durvalino Couto e Paulo José Cunha, piauiseiros que se perderam em Brasília, vez por outra fazem contato. Cinéas Santos, o sábio ancião; e Salgado Maranhão, o artífice das palavras, de quando em quando engrandecem a viagem. Paulo Tabatinga trouxe para a cabine as mais belas fotografias, poemas sóbrios e cachaça para nos embriagar de saudade. Graça Vilhena e Keula Araújo trouxeram o feminino piauiense com poemas que, semeados entre as estrelas, fazem mais bonitas as constelações celestes. De Netto de Deus, Gervásio Castro, Paulo Moura, Amaral e Gabriel Arcanjo a nave toma emprestadas as mais belas ilustrações. Isso, falando apenas em alguns conterrâneos dessa folha bairrista.

O incrível é que os “estrangeiros” também entraram na nave e contribuem para o sucesso dessa viagem. Ana Cecília cativou os leitores com seus poemas cortantes, pena que anda ausente. 1000TON é um amigo carioca mineiro que desde o começo rabisca a nave por dentro e por fora. Leo Almeida conheci outro dia em Brasília e parecíamos amigos antigos. O grandão Nicolas Behr aparece vez ou outra. Luiz Horácio, um gaúcho e grande escritor contribui com resenhas saborosas quase toda edição. O paulista Aderval não comparece sempre, mas quando vem domina a prosa. E eu ainda nem conheço pessoalmente esses dois últimos astronautas.

Mas hoje comemoramos o aniversário da aeronave. Ela foi remodelada pra festa. Nova “template” (o que chamávamos de logotipo) na concepção magistral de Gervásio sobre uma foto, de Paulo Tabatinga, da nossa velha ponte. E os gratos 150 mil acessos podem assoprar as cinco velinhas. E la nave va!   

_____________________________________
REGISTRO de antes de findar o ano:

Morre Décio Pgnatari, dia 02 
.
    lavra
 palavras
  a vida
    ávida
    parábola
& pêndulo.
.
amor
tece dor
a morte
adormece
vazio
mar morto
mármore
frio
larva
 
(Edmar)
 
 
 
 
Morre Oscar Niemayer, dia 05
.
Inscrita no mármore a tua memória
Pelas avenidas e praças do universo
As tuas obras celebram a tua glória
E magníficas não cabem nesses versos 
.
Pelo mundo inteiro a tua arquitetura
Ergue - se como pirâmides modernas
E em curvas e leveza se transfigura
Apontando para o céu pontes eternas.
.
Pelas mãos do operário, obra concreta
Enfrentando o sol de Brasília a realidade
Oscar Niemeyer, o poeta atingiu a meta. 
.
Oscar Niemeyer um candango  pé no chão
E também um comunista de verdade
Uma flor no asfalto renascida no sertão.
.
(poema de Geraldo Borges) 
 
 
 
 
Também Dave Brubeck, no mesmo 05
Take Five, 1966: http://youtu.be/faJE92phKzI
 
 
 
 
Dia 13, 100 anos de Gonzaga. Ver homenagem de Gereba no vídeo desta edição.
desenho: Netto de Deus 
 
Gereba apresenta o cd "Luas de Gonzaga" e Gil canta 13 de dezembro. Veja:
 
________________
 
obs. quem souber de quem é a linda foto azulada do Poty com Teresina ao fundo, que ilustra essa folha, por favor me avise. Gostaria de creditar ao exelente fotógrafo. Coisas da internet sem nome...
 

klöz por 1000TON


Aniversário do Piauinauta


Geraldo Borges
 
 
Salve, salve o Piauinauta
E o seu comandante
Com toda a sua tripulação
Navegando no mundo virtual
 
E nessa  épica expedição
Já encontramos com o
Pequeno príncipe
Em seu asteróide,
Com a estela Dalva
Aldebaran aurora boreal
Com toda a via láctea
E com  os astronautas
A caminho da lua.
Sobrevoamos o sertão
Muito calango e mandacaru
 
E estamos prontos para
Descobrir novos colaboradores
E ampliar nossas fronteiras
Não vamos parar tão cedo
Dependendo de nosso
Comandante e da tripulação
E do nosso talento e do vento.
 
E  claro  dos queridos leitores
A quem devemos nossos vôos.
No mais muitos anos de vida
E boa viagem na nova partida.
___________________________________________
desenho: Gervásio
 

Primeira crônica (04/11/2007)

PIAUINAUTA



Edmar Oliveira

Quando era pequeno, começando a me entender por gente - como se diz no Piauí -, ficava à noite olhando o céu na esperança de ver o satélite russo que rodeava a terra, lá longe no espaço. Depois, não entendi porque o Gagarin declarou que a terra era azul. Só mais tarde, vendo a terra em fotografias coloridas, compreendi o ponto de vista do Yuri, o que considerei, a princípio, uma ironia. Mas da real ironia do Ari Toledo, me lembro bem. Para os que chegaram recentemente ao planeta, o artista estava no auge com canções picantes e debochadas. A melodia invade a memória, mas não posso dividir com vocês. A letra da canção, não sei toda. Me parece que uns versos diziam assim:

“O progresso nordestino
Esse menino já tem fama mundial
Se é foguete lá num falta
Um piauinauta
Foi ao espaço sideral.
Americano quando chega no espaço
Toma uma pílula, mode jantar
Mas lá no norte nós num faz economia
É melancia, rapadura com jabá...”


O mundo deu suas voltas, o foguete também e, cinco anos depois do Yuri, Armstrong pisou na lua. A frenética corrida invadiu o satélite. Logo depois se descobriu que não valia tanto a pena os vôos para o belo astro dos seresteiros, da famosa canção do Gil. A lua não tinha nada que interessasse à economia, só aos poetas. E estes voam sem necessidade de naves espaciais. As assas da imaginação podem levar a qualquer lugar. Mesmo aos enxeridos, como sou, que escreve sem ser convocado.

Isto me ocorre porque danei a escrever croniquinhas ordinárias, que só satisfazem a mim, mas que, aproveitando o fenômeno da internet, divido com as vítimas da minha caixa postal. E alguns de vocês têm me perguntado a razão de tanta conversa jogada fora. Eu também me pergunto e não sei bem a resposta.

Tendo a achar que me sinto como um piauinauta. Saído do sertão, vivendo no sul maravilha, me sinto perdido no espaço tentando entender a modernidade do planeta. As voltas que ele faz neste início de século me tornaram um estranho no ninho. Meu cordão umbilical me prende à nave mãe do sertão. Mas estou girando sem entender muito bem os acontecimentos. Alguém já disse que a crônica trata como banalidade as coisas sérias ou trata com seriedade as coisas aparentemente banais. Na modernidade, que determina o lugar das coisas sem questionamentos, para entender um pouco os acontecimentos atuais esta estranheza da crônica me é necessária... Preciso conversar comigo mesmo. Mando pra vocês porque falar sozinho é sintoma de loucura!

É TEMPO (pelo aniversário do Piauinauta)

É TEMPO

É tempo de assinar aRevestrés; de ler a poesia de Graça Vilhena; é tempo de Anderson Braga Horta e de Nicolas Beher; de crônicas de Cineas Santos e de Severino Francisco; tempo de músicas novas do Clodo; tempo do bar do Mineiro; tempo de ir com Helôpros festejos de São Gonçalo em Regeneração; tempo do churrasco de bode do Agenor Leal em Angical do Piauí; tempo de ouvir o disco de Celso Adolfo sobre Sagarana; tempo de gravar Pássaros no coração no novo disco do Túlio Borges; é tempo de reler Ouvindo vozes do Edmar de Oliveira; tempo da poesia de Salgado Maranhão; tempo Fundamental de Takaie do jazz de Elaine Guedes; é tempo de curtir Matias, Luisae Julia; tempo de abraçar Débora e Daniela; saber notícias de Frô; telefonar pro; ouvir Bené Fonteles; ver Ceumar na Sesctv; encontrar Guido Heleno; planejar publicação com Ruy Godinho e Jorge Ferreira; é tempo de terminar de escrever dois livro: Águas Dilaceradas& outros poemas e Pássaro Penso (versos da asa norte); é tempo de viabilizar a publicação do infantil-juvenil O Destino Azul das Estrelas; é sempre tempo de fazer parcerias com Dominguinhos; é tempo de bater um papo com Assaí Campelono Clube dos Diários; e, principalmente, é tempo de se ter tempo.
(Climério Ferreira)

Torquato volta, de novo


Livros inéditos de Torquato Neto lançados em Teresina

Durvalino Filho(*)

 

Os amantes e leitores de poesia podem comemorar uma boa notícia: dois livros inéditos do poeta tropicalista Torquato Neto acabam de ser lançados em Teresina. São eles Juvenílias e O Fato e a Coisa – e reúnem novíssimos poemas que Torquato desenvolveu a partir dos 16 anos, de 1961 a 64, quando saiu de Teresina para estudar no Colégio Marista, em Salvador e depois seguiu para morar no Rio de Janeiro. 

A inquietação criadora do piauiense Torquato Neto já se manifestava, e seus poemas nessa idade carregam uma força estranha e espantosa, ao abordar temas sempre recorrentes à poesia de todos os tempos, como o amor, o sexo, a morte, a angústia da existência e o poder ambíguo da linguagem poética.

Para mim foi uma surpresa mágica ver que o poeta, em tão precoce idade, já deixava antever nestas criações a sua genial veia poética, que veio a explodir logo a seguir, quando eclodiu o movimento tropicalista do qual participou ativamente, sendo o seu mais engajado poeta e teórico.

O primeiro desses livros – O Fato e a Coisacontempla o leitor com poemas de inegável beleza, precisão e densidade formal.  Para o jornalista e crítico paulista Aderval Borges, que o prefacia, “trata-se do único livro de poesias de Torquato Neto concebido como tal. E que livro! Escrito entre 1962 e 1964, nele já se anunciam os principais recursos que caracterizariam sua produção futura: a agres­sividade mordaz, a precisão vocabular, a utilização enfática (porém controlada) das figuras de lin­guagem, a ironia, a metalinguagem, as quebras de sintaxe, o experimentalismo de vanguarda e versos precisos quanto à escolha dos timbres fonêmicos e marcação rítmica, qualidade que o levaria para o terreno da melopeia e faria dele um dos mais requintados letristas da música popular.”

O segundo livro – Juvenílias – reúne poemas esparsos que Torquato deixou datilografados e organizados em pastas que chegaram a Teresina enviadas pela sua viúva, a artista gráfica Ana Duarte. O espólio destes inéditos caiu nas mãos do economista e publicitário George Mendes, que também é primo direto do poeta. Os papéis amarelecidos estavam lá”, diz George, “mal dobrados, mal guardados, mas es­tavam lá. Li, reli, aprendi, conversei sobre o assunto, resolvi editá-los. Dadas as circunstâncias de vida e morte do Torquato, o mínimo que poderia fazer era homenagear sua memória. Qualquer rabisco de um grande artista é docu­mento que informa, se não pela estética, ao menos pelo lado histórico”.

A partir do momento que Torquato deixou o Piauí para estudar em Salvador, lá ele teve um contato mais estreito com as obras de poetas que não constavam dos livros didáticos de então. Assim, Torquato mergulhou com encanto nos poemas de Drummond, Bandeira, João Cabral, Jorge de Lima e tantos outros além do piauiense Mário Faustino, que veio a morrer no ano seguinte num acidente aéreo. Nestas Juvenílias, Torquato parodia o famoso poema da pedra de Drummond, encontrando uma metáfora absolutamente nova para o mesmo tema:

 

faço que chuto as pedras do caminho

mas sei que elas persistem ou se adiantam

e vão me esperar na frente

para que eu novamente faça que as chuto.

ou chuto mesmo?

as pedras que eu chuto

(chuto?)

me encontram no caminho

e nunca me saúdam

ou dizem adeus”

 

É sempre um risco, mas pode-se afirmar que no contexto da poesia de invenção no Brasil (principalmente pós-concretismo) Torquato Neto é o poeta mais significativo, e talvez apenas Paulo Leminski e Waly Salomão se situem a seu lado. Como diz ainda Aderval Borges, taxativo em seu prefácio: “Talvez somente o francês Antonin Artaud tenha exibido seus tormentos de forma tão brutal e explícita. (...) A imagem do tsunami existencial não corresponde ao que o poeta idealizou (com todo rigor das escolhas) e realizou. O conjunto de suas ideias e produção, por quaisquer dos extremos – ‘de fora’ e ‘de dentro’ – revela um lado paradoxal: foi um dos artistas inventores mais centrados no que se propôs.”

Mesmo em suas Juvenílias, o Anjo Torto (como ficou conhecido pós-suicídio) já passeia com surpreendente desenvoltura em poemas que se destacam pelo rigor formal e grande beleza alicerçada em ricas fanopeias (um dos modos retóricos que Ezra Pound definiu em seu ABC of Reading como sendo aquele recurso poético que traduz o poder visual das imagens suscitadas). É o caso do poema “Do alto, ao entardecer”, que Torquato escreveu quando tinha não mais que 17 anos, depois de, menino, vagar como gostava pelas ruas do Rio de Janeiro:

Espiar a cidade que se acende

é deixar que o pensamento saia na procura

incansada

pelo desespero dos irmãos do norte

pela alegria dos irmãos do sul

pelo sorriso da pessoa amada – que todos estão

passando em procissão

enquanto acendem-se as luzes da cidade.

Reparar a cidade que se acende

é reparar também se se acendem as ilusões da noite

para que se possa sair ao seu encontro

e abraçá-las desesperançadamente

e afagá-las por instantes até que nasça o dia

e tudo passe.

Reparar a cidade que se acende

é inclusive reparar os mirabolantes mundos

que também se acendem

ao redor das cabeças que fervilham nos passeios

e nas filas.

Compreender a cidade que se acende

é saber deduzir as coisas que se apagam

ao mesmo tempo

em que aparecem os anúncios de neon

os jornais luminosos

os incansáveis burburinhos deste mundo.

Alô, idiotas. Para os amantes da poesia fica esta novidade – Torquato Neto volta a ocupar espaço na Geleia Geral brasileira, já sem Jornal do Brasil nem carne seca na janela. Os organizadores dos dois livros, capitaneados pelo publicitário George Mendes, avisam que, para os curiosos do resto do Brasil, os novos livros do poeta podem ser adquiridos através do telefone (86) 3233-5011.

É a mesma dança, meu boi!
 
(*) DURVALINO COUTO FILHO é poeta, músico e publicitário piauiense, e participou da equipe organizadora, revisora e editora dos dois livros de Torquato.


__________________________________

NOTA:
Sobre a edição destes livros, Ana Duarte, em contato com esta folha, esclarece que o material fornecido ao publicitário George Mendes destinava-se a catalogação e guarda, não estando às edições autorizadas pelos herdeiros. Ana acredita que todo o material da lavra de Torquato foi trabalhado por Paulo Roberto Pires na edição de “Torquatália”. E nada mais havia a dizer.

Mas a nossa ligação atávica ao poeta não o deixa quieto. “Ê Pacatuba, êh São João!”.  
(Edmar)
__________________________________

UM MENINO DA SÃO JOÃO

p/Torquato Neto

O poeta desfralda a poesia
Deixa a vida lhe escorrer pelas veias
Até sangrar a última frase do verso
O poeta às vezes é um menino triste




(Climério Ferreira)
 
 

___________________________________
Irmãos e irmãzinhas: no 40º ano do silência de Torquato Neto, George Mendes,por sua conta e risco, resolveu publicar dois livros inéditos do poeta: O Fato e a Coisa e Juvenílias. São poemas da adolescência que, naturalmente, apenas apontam o Poeta que já estava a caminho.Vale a pena conferir. Uma semana luminosa para todos. (Cinéas Santos)



VIA CRUCIS
abriu-se a porta este meu ser entrou
desajeitado e tonto
verificados os lábios que sangravam
e as mãos que não se retorciam
meu eu assinou a ficha inicial e na parede marcou
exatamente
o tempo.
dormiam-se nas covas do silêncio
as quatro musas que nunca invocarei.

(Torquato Neto – O Fato e a Coisa – 2012)

Litorânea

 
Lázaro José de Paula
 
VOCE ROUBA A CENA
ZOOM DE TESÃO GENTIL GIRASSOL
DOCE AÇUCENA AURORA MORENA
CAMBIOU PRA VERMELHO
TUA PENUGEM NO ESPELHO
TATUAGENS DE PAVÃO
RENTE A VIRILHA , E EM FRENTE AO JOELHO
SURFOU MEU CORAÇAO
PRA TODAS ILHAS
FEROZ MARAVILHA
ONDE O AMOR ENTRE COQUEIROS
SÃO COLARES, BEIJOS BANZEIROS
DE INCANDESCENTE SIMPATIA
NA SOBERBA PAISAGEM
QUE GUARDA IMAGENS
DE UMA SÓ VEZ
ARMAZEM GERAL
QUEM SUSPEITA , DESCONFIA
QUE O PARAISO TÁ NESSE CORAL
TÁ NESSE PARDAL
COM TUAS ESCAMAS NA VOZ SEM PELEJA
QUE O MAR SE ENAMORA SE ENGALANA ALMEJA

brasilianas


SQN 312

 

Lembro-me de Cláuber já doente sentado na escadaria do bloco

Eu, Clodo, Clésio e Zeca Bahia tramando futuras canções no F

Luiz Amorim sonhando um açougue cultural

Gera de Castro armando um show coletivo

 

Clodo e Petrucio Maia compondo Cebola Cortada no Cavalo Negro

Fagner mostrando em primeira mão o arranjo de Hermeto pra Cebola

O som do pandeiro de Pernambuco percutindo pela quadra

Enquanto Vicente do Rego Monteiro pintava figuras gordas

A 312 era o Vietnam do Norte
 






 

 

SQN 209

 

Umas frutinhas no Oba

Leitura na quadra de esporte

Guido Heleno na lotérica

Bené Fonteles caminhando

Paulo José Cunha no Sinhá Moça

Fausto e Manoel todo sábado

Eu & Helô no Mineiro

Sobremesa na Rappel

O traço de Lúcio Costa não previa tudo isso

 

 

 

 

 

CLN 408

 

Mulheres saem com saias bonitas e coloridas da Oficina da Moda

Homens cansados traçam o tira-gosto do espetinho da esquina

No Café da Rua 8 (dizem que fechou)shows musicais

De Aloisio Brandão, Afonso Gadelha, Liga-Tripa

 

Pois era ali que Julinho do Samba encontrava o Marechal

E trocavam figurinhas sobre o carnaval do próximo ano

Os jornalistas sempre preferiram o Godofredo

E os estudantes fazem algazarra no Pôr do Sol

Ia esquecendo: lá tem um armarinho que parece a feira de Caruaru


 

 

 

 

CNL 415

 

Ao longe passa Nika Macedo devagar

Certamente vai soltar solfejos nordestinos num bar da quadra

Passa pela Churrascaria de carne importada da Argentina

Pela pizzaria da grife Dona Lenha

Cruza com a juventude no Divino Suco

Com o pessoal mais maduro do Som do Vinil

 

Reza a lenda que nesta quadra, numa kit verde,

Matias Monteiro deu início à sua fantástica produção

De Arte Contemporânea.

 

 

 

 

VISTA AÉREA

 

A cidade dorme

As ruelas mal iluminadas riscam a vista aérea

Penso nos habitantes

Nos dramas que agasalham em seus travesseiros

Nos planos desfeitos que lhes despertam o sono

Nas esperas ansiosas dos primeiros raios

E eu além das nuvens lendo poesia

 

(Climério Ferreira)