domingo, 9 de dezembro de 2012

Torquato volta, de novo


Livros inéditos de Torquato Neto lançados em Teresina

Durvalino Filho(*)

 

Os amantes e leitores de poesia podem comemorar uma boa notícia: dois livros inéditos do poeta tropicalista Torquato Neto acabam de ser lançados em Teresina. São eles Juvenílias e O Fato e a Coisa – e reúnem novíssimos poemas que Torquato desenvolveu a partir dos 16 anos, de 1961 a 64, quando saiu de Teresina para estudar no Colégio Marista, em Salvador e depois seguiu para morar no Rio de Janeiro. 

A inquietação criadora do piauiense Torquato Neto já se manifestava, e seus poemas nessa idade carregam uma força estranha e espantosa, ao abordar temas sempre recorrentes à poesia de todos os tempos, como o amor, o sexo, a morte, a angústia da existência e o poder ambíguo da linguagem poética.

Para mim foi uma surpresa mágica ver que o poeta, em tão precoce idade, já deixava antever nestas criações a sua genial veia poética, que veio a explodir logo a seguir, quando eclodiu o movimento tropicalista do qual participou ativamente, sendo o seu mais engajado poeta e teórico.

O primeiro desses livros – O Fato e a Coisacontempla o leitor com poemas de inegável beleza, precisão e densidade formal.  Para o jornalista e crítico paulista Aderval Borges, que o prefacia, “trata-se do único livro de poesias de Torquato Neto concebido como tal. E que livro! Escrito entre 1962 e 1964, nele já se anunciam os principais recursos que caracterizariam sua produção futura: a agres­sividade mordaz, a precisão vocabular, a utilização enfática (porém controlada) das figuras de lin­guagem, a ironia, a metalinguagem, as quebras de sintaxe, o experimentalismo de vanguarda e versos precisos quanto à escolha dos timbres fonêmicos e marcação rítmica, qualidade que o levaria para o terreno da melopeia e faria dele um dos mais requintados letristas da música popular.”

O segundo livro – Juvenílias – reúne poemas esparsos que Torquato deixou datilografados e organizados em pastas que chegaram a Teresina enviadas pela sua viúva, a artista gráfica Ana Duarte. O espólio destes inéditos caiu nas mãos do economista e publicitário George Mendes, que também é primo direto do poeta. Os papéis amarelecidos estavam lá”, diz George, “mal dobrados, mal guardados, mas es­tavam lá. Li, reli, aprendi, conversei sobre o assunto, resolvi editá-los. Dadas as circunstâncias de vida e morte do Torquato, o mínimo que poderia fazer era homenagear sua memória. Qualquer rabisco de um grande artista é docu­mento que informa, se não pela estética, ao menos pelo lado histórico”.

A partir do momento que Torquato deixou o Piauí para estudar em Salvador, lá ele teve um contato mais estreito com as obras de poetas que não constavam dos livros didáticos de então. Assim, Torquato mergulhou com encanto nos poemas de Drummond, Bandeira, João Cabral, Jorge de Lima e tantos outros além do piauiense Mário Faustino, que veio a morrer no ano seguinte num acidente aéreo. Nestas Juvenílias, Torquato parodia o famoso poema da pedra de Drummond, encontrando uma metáfora absolutamente nova para o mesmo tema:

 

faço que chuto as pedras do caminho

mas sei que elas persistem ou se adiantam

e vão me esperar na frente

para que eu novamente faça que as chuto.

ou chuto mesmo?

as pedras que eu chuto

(chuto?)

me encontram no caminho

e nunca me saúdam

ou dizem adeus”

 

É sempre um risco, mas pode-se afirmar que no contexto da poesia de invenção no Brasil (principalmente pós-concretismo) Torquato Neto é o poeta mais significativo, e talvez apenas Paulo Leminski e Waly Salomão se situem a seu lado. Como diz ainda Aderval Borges, taxativo em seu prefácio: “Talvez somente o francês Antonin Artaud tenha exibido seus tormentos de forma tão brutal e explícita. (...) A imagem do tsunami existencial não corresponde ao que o poeta idealizou (com todo rigor das escolhas) e realizou. O conjunto de suas ideias e produção, por quaisquer dos extremos – ‘de fora’ e ‘de dentro’ – revela um lado paradoxal: foi um dos artistas inventores mais centrados no que se propôs.”

Mesmo em suas Juvenílias, o Anjo Torto (como ficou conhecido pós-suicídio) já passeia com surpreendente desenvoltura em poemas que se destacam pelo rigor formal e grande beleza alicerçada em ricas fanopeias (um dos modos retóricos que Ezra Pound definiu em seu ABC of Reading como sendo aquele recurso poético que traduz o poder visual das imagens suscitadas). É o caso do poema “Do alto, ao entardecer”, que Torquato escreveu quando tinha não mais que 17 anos, depois de, menino, vagar como gostava pelas ruas do Rio de Janeiro:

Espiar a cidade que se acende

é deixar que o pensamento saia na procura

incansada

pelo desespero dos irmãos do norte

pela alegria dos irmãos do sul

pelo sorriso da pessoa amada – que todos estão

passando em procissão

enquanto acendem-se as luzes da cidade.

Reparar a cidade que se acende

é reparar também se se acendem as ilusões da noite

para que se possa sair ao seu encontro

e abraçá-las desesperançadamente

e afagá-las por instantes até que nasça o dia

e tudo passe.

Reparar a cidade que se acende

é inclusive reparar os mirabolantes mundos

que também se acendem

ao redor das cabeças que fervilham nos passeios

e nas filas.

Compreender a cidade que se acende

é saber deduzir as coisas que se apagam

ao mesmo tempo

em que aparecem os anúncios de neon

os jornais luminosos

os incansáveis burburinhos deste mundo.

Alô, idiotas. Para os amantes da poesia fica esta novidade – Torquato Neto volta a ocupar espaço na Geleia Geral brasileira, já sem Jornal do Brasil nem carne seca na janela. Os organizadores dos dois livros, capitaneados pelo publicitário George Mendes, avisam que, para os curiosos do resto do Brasil, os novos livros do poeta podem ser adquiridos através do telefone (86) 3233-5011.

É a mesma dança, meu boi!
 
(*) DURVALINO COUTO FILHO é poeta, músico e publicitário piauiense, e participou da equipe organizadora, revisora e editora dos dois livros de Torquato.


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NOTA:
Sobre a edição destes livros, Ana Duarte, em contato com esta folha, esclarece que o material fornecido ao publicitário George Mendes destinava-se a catalogação e guarda, não estando às edições autorizadas pelos herdeiros. Ana acredita que todo o material da lavra de Torquato foi trabalhado por Paulo Roberto Pires na edição de “Torquatália”. E nada mais havia a dizer.

Mas a nossa ligação atávica ao poeta não o deixa quieto. “Ê Pacatuba, êh São João!”.  
(Edmar)
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UM MENINO DA SÃO JOÃO

p/Torquato Neto

O poeta desfralda a poesia
Deixa a vida lhe escorrer pelas veias
Até sangrar a última frase do verso
O poeta às vezes é um menino triste




(Climério Ferreira)
 
 

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Irmãos e irmãzinhas: no 40º ano do silência de Torquato Neto, George Mendes,por sua conta e risco, resolveu publicar dois livros inéditos do poeta: O Fato e a Coisa e Juvenílias. São poemas da adolescência que, naturalmente, apenas apontam o Poeta que já estava a caminho.Vale a pena conferir. Uma semana luminosa para todos. (Cinéas Santos)



VIA CRUCIS
abriu-se a porta este meu ser entrou
desajeitado e tonto
verificados os lábios que sangravam
e as mãos que não se retorciam
meu eu assinou a ficha inicial e na parede marcou
exatamente
o tempo.
dormiam-se nas covas do silêncio
as quatro musas que nunca invocarei.

(Torquato Neto – O Fato e a Coisa – 2012)

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