Livros inéditos de
Torquato Neto lançados em Teresina
Durvalino Filho(*)
Os amantes e leitores de poesia podem
comemorar uma boa notícia: dois livros inéditos do poeta tropicalista Torquato
Neto acabam de ser lançados em Teresina. São eles Juvenílias e O Fato e a Coisa – e reúnem novíssimos
poemas que Torquato desenvolveu a partir dos 16 anos, de 1961 a 64, quando saiu
de Teresina para estudar no Colégio Marista, em Salvador e depois seguiu para
morar no Rio de Janeiro.
A inquietação criadora do piauiense Torquato
Neto já se manifestava, e seus poemas nessa idade carregam uma força estranha e
espantosa, ao abordar temas sempre recorrentes à poesia de todos os tempos,
como o amor, o sexo, a morte, a angústia da existência e o poder ambíguo da linguagem poética.
Para mim foi uma
surpresa mágica ver que o poeta, em tão precoce idade, já deixava antever
nestas criações a sua genial veia poética, que veio a explodir logo a seguir,
quando eclodiu o movimento tropicalista do qual participou ativamente, sendo o
seu mais engajado poeta e teórico.
O primeiro desses
livros – O Fato e a Coisa – contempla o leitor com poemas de inegável beleza, precisão e densidade formal. Para o jornalista e crítico paulista Aderval
Borges, que o prefacia, “trata-se do único livro de poesias de Torquato Neto concebido como tal.
E que livro! Escrito entre 1962 e 1964, nele já se anunciam os principais
recursos que caracterizariam sua produção futura: a agressividade mordaz, a
precisão vocabular, a utilização enfática (porém controlada) das figuras de linguagem,
a ironia, a metalinguagem, as quebras de sintaxe, o experimentalismo de
vanguarda e versos precisos quanto à escolha dos timbres fonêmicos e marcação
rítmica, qualidade que o levaria para o terreno da melopeia e faria dele um dos
mais requintados letristas da música popular.”
O segundo livro – Juvenílias –
reúne poemas esparsos que Torquato deixou datilografados e organizados em
pastas que chegaram a Teresina enviadas pela sua viúva, a artista gráfica Ana
Duarte. O espólio destes inéditos caiu nas mãos do economista e publicitário
George Mendes, que também é primo direto do poeta. “Os papéis amarelecidos estavam lá”,
diz George, “mal dobrados, mal guardados, mas estavam lá. Li, reli, aprendi,
conversei sobre o assunto, resolvi editá-los. Dadas as circunstâncias de vida e
morte do Torquato, o mínimo que poderia fazer era homenagear sua memória.
Qualquer rabisco de um grande artista é documento que informa, se não pela
estética, ao menos pelo lado histórico”.
A partir do
momento que Torquato deixou o Piauí para estudar em Salvador, lá ele teve um
contato mais estreito com as obras de poetas que não constavam dos livros
didáticos de então. Assim, Torquato mergulhou com encanto nos poemas de
Drummond, Bandeira, João Cabral, Jorge de Lima e tantos outros além do
piauiense Mário Faustino, que veio a morrer no ano seguinte num acidente aéreo.
Nestas Juvenílias, Torquato parodia o
famoso poema da pedra de Drummond, encontrando uma metáfora absolutamente nova
para o mesmo tema:
“faço
que chuto as pedras do caminho
mas
sei que elas persistem ou se adiantam
e vão
me esperar na frente
para
que eu novamente faça que as chuto.
ou chuto mesmo?
as pedras que eu chuto
(chuto?)
me encontram no caminho
e nunca me saúdam
ou
dizem adeus”
É sempre um risco, mas pode-se afirmar
que no contexto da poesia de invenção no Brasil (principalmente
pós-concretismo) Torquato Neto é o poeta mais significativo, e talvez apenas
Paulo Leminski e Waly Salomão se situem a seu lado. Como diz ainda Aderval
Borges, taxativo em seu prefácio: “Talvez somente o francês Antonin Artaud
tenha exibido seus tormentos de forma tão brutal e explícita. (...) A imagem do
tsunami existencial não corresponde ao que o poeta idealizou (com todo rigor
das escolhas) e realizou. O conjunto de suas ideias e produção, por quaisquer
dos extremos – ‘de fora’ e ‘de dentro’ – revela um lado paradoxal: foi um dos
artistas inventores mais centrados no que se propôs.”
Mesmo em suas Juvenílias, o Anjo Torto (como ficou conhecido pós-suicídio) já passeia
com surpreendente desenvoltura em poemas que se destacam pelo rigor formal e
grande beleza alicerçada em ricas fanopeias (um dos modos retóricos que Ezra
Pound definiu em seu ABC of Reading como
sendo aquele recurso poético que traduz o poder visual das imagens suscitadas).
É o caso do poema “Do alto, ao
entardecer”, que Torquato escreveu quando tinha não mais que 17 anos,
depois de, menino, vagar como gostava pelas ruas do Rio de Janeiro:
Espiar a cidade que se acende
é deixar que o pensamento saia na procura
incansada
pelo desespero dos irmãos do norte
pela alegria dos irmãos do sul
pelo sorriso da pessoa amada – que todos estão
passando em procissão
enquanto acendem-se as luzes da cidade.
Reparar a cidade que se acende
é reparar também se se acendem as ilusões da noite
para que se possa sair ao seu encontro
e abraçá-las desesperançadamente
e afagá-las por instantes até que nasça o dia
e tudo passe.
Reparar a cidade que se acende
é inclusive reparar os mirabolantes mundos
que também se acendem
ao redor das cabeças que fervilham nos passeios
e nas filas.
Compreender a cidade que se acende
é saber deduzir as coisas que se apagam
ao mesmo tempo
em que aparecem os anúncios de neon
os jornais luminosos
os
incansáveis burburinhos deste mundo.
Alô, idiotas. Para os amantes da
poesia fica esta novidade – Torquato Neto volta a ocupar espaço na Geleia Geral
brasileira, já sem Jornal do Brasil nem carne seca na janela. Os organizadores
dos dois livros, capitaneados pelo publicitário George Mendes, avisam que, para
os curiosos do resto do Brasil, os novos livros do poeta podem ser adquiridos
através do telefone (86) 3233-5011.
É a mesma dança, meu boi!
(*) DURVALINO
COUTO FILHO é poeta, músico e
publicitário piauiense, e participou da equipe organizadora, revisora e editora
dos dois livros de Torquato.
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NOTA:
Sobre a edição destes livros, Ana Duarte, em contato com
esta folha, esclarece que o material fornecido ao publicitário George Mendes
destinava-se a catalogação e guarda, não estando às edições autorizadas pelos
herdeiros. Ana acredita que todo o material da lavra de Torquato foi trabalhado
por Paulo Roberto Pires na edição de “Torquatália”. E nada mais havia a dizer.
Mas a nossa ligação atávica ao poeta não o deixa quieto. “Ê
Pacatuba, êh São João!”.
(Edmar)
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Irmãos e irmãzinhas: no 40º ano do silência de Torquato Neto, George Mendes,por sua conta e risco, resolveu publicar dois livros inéditos do poeta: O Fato e a Coisa e Juvenílias. São poemas da adolescência que, naturalmente, apenas apontam o Poeta que já estava a caminho.Vale a pena conferir. Uma semana luminosa para todos. (Cinéas Santos)
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UM MENINO DA SÃO JOÃO
p/Torquato Neto
O poeta desfralda a poesia
Deixa a vida lhe escorrer pelas veias
Até sangrar a última frase do verso
O poeta às vezes é um menino triste
(Climério Ferreira)
___________________________________Irmãos e irmãzinhas: no 40º ano do silência de Torquato Neto, George Mendes,por sua conta e risco, resolveu publicar dois livros inéditos do poeta: O Fato e a Coisa e Juvenílias. São poemas da adolescência que, naturalmente, apenas apontam o Poeta que já estava a caminho.Vale a pena conferir. Uma semana luminosa para todos. (Cinéas Santos)
VIA CRUCIS
abriu-se a porta este meu ser entrou
desajeitado e tonto
verificados os lábios que sangravam
e as mãos que não se retorciam
meu eu assinou a ficha inicial e na parede marcou
exatamente
o tempo.
dormiam-se nas covas do silêncio
as quatro musas que nunca invocarei.
(Torquato Neto – O Fato e a Coisa – 2012)
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