domingo, 23 de junho de 2013

Infância afogada



(Edmar Oliveira)
 
Deu no Diário Oficial do Piauí: o IBAMA concedeu licença para a construção da barragem de Castelhano no Rio Parnaíba. Já tem construtora licitada e prazo de três anos e poucos meses para a obra. Recebi a notícia impactado. Significa que grande parte de minha Palmeirais, da vizinha Amarante e até de Parnarama, no Maranhão, serão inundadas pelo lago da barragem.

Castelhano é um povoado onde fica a casa de meu tio-avô Valmir Soares, que nasceu naquele lugar e ali passou toda sua existência. O lugar mais longe que já foi foi a Teresina e só ia no centro de Palmeirais quando ainda tinha visão. Já cego, beirando aos cem anos, deseja ser enterrado naquele pedaço de chão onde habitou. Pensei cá comigo: ele tem muito pouco tempo para morrer e realizar o desejo. Se insistir em ficar vivo será retirado com sua família e mais 555 outras, segundo o Diário Oficial, para a construção da barragem que deve ser erguida na sua porta onde param os viajantes da estrada.

Destino também trágico tem o povoado de Riacho dos Negros, que será completamente inundado e desaparecerá no lago. O nome do riacho foi firmado na existência de um quilombo que habita aquelas terras por séculos sem fim e será tangido que nem boi para lá se sabe onde!

A notícia não informa que parte de Amarante será atingida, mas temo pelo afogamento de nosso poeta maior, Da Costa e Silva, que premonitoriamente cantou:
 
“(...) As águas crescem de repente / Avolumadas pela enchente.

Caudaloso, / Rumoroso, / Sem repouso, / Rolando as águas / Se arrasta o rio, rolando o peito / Nas areias e seixos do seu leito, / Talvez num desabafo insatisfeito / De incontidas paixões e recônditas mágoas...

Rugindo o rio repentinamente / Avulta, inchando, na expansão da enchente.

E ei-lo a correr, as margens distendendo / De quando em quando, / No seu contínuo e célere percurso, / Num conflito tremendo, / O solo a solapar, como querendo / Desviar o próprio curso, / Transbordando, / Inundando, / Avassalando...

(...) E o acento emocional, grandíloquo, eloquente / Da alma do rio vem ecoar na alma da gente, / Tumultuariamente, impetuosamente, / No horríssono rumor das águas pela enchente...”[1] 

Lendo o poeta sinto o trágico das águas represadas em que serão afogadas minhas lembranças e memórias de uma terna infância. É incômodo pensar que em pouco tempo, se até lá me permitir viver os Deuses, as minhas lembranças e afetos estarão no fundo de um lago em que se transformará meu rio, minha vida, meus guardados. E a minha cidade só existirá na memória... 

“A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra: / É um céu sobre outro céu tão límpido e tão brando, / Que eterno sonho azul parece estar sonhando / Sobre o vale natal, que o seio da luz descerra...”[2]




[1]Fragmentos do poema “Enchente” do livro “Zodíaco” (Oficina Tipográfica Apolo, Rio de Janeiro, 1917)
[2] Da Costa e Silva, poema Amarante,  no mesmo Zodíaco, seção Minha Terra.
Desenho luxuoso de Gervásio Castro

klöZ na peixaria por 1000TON


0,20


 
(Edmar Oliveira)
 
Aconteceu. Vinte centavos foi o preço que levou multidões às ruas. Mesmo quem marcha junto com a garotada tem dificuldade de entender o que aconteceu. Muitos procuram as razões que fez a gota d’água transbordar. Não é só pelos vinte centavos, concordamos. Então se procura pelas razões da marcha desenfreada que tomou conta das ruas com palavras de ordem para todos os gostos. Acho que a mais simbólica foi a cartolina de uma garota que dizia: “desculpem os transtornos, estamos mudando o Brasil”. Mudar o quê. Que querem esses moços? Ah, esses moços que eu fui!

O troco! Parece até a briga daquela música do Gonzaga: “Eu lhe dei vinte mil réis pra tirar três e trezentos, você tem que me voltar dezessete e setecentos”. É. Os meninos, como o velho Gonzaga, querem mais do que o troco de dezesseis e seiscentos dos réis de ontem ou dos vinte centavos dos reais de hoje. Mas o quê?

O Brasil cresceu, é respeitado em todo o mundo, melhorou a distribuição de renda, uma nova classe média apareceu, o desemprego diminuiu, então o que eles querem, perguntam os governantes atônitos.

Melhor seria entender o que eles não querem. Não querem só que o troco seja devolvido, como também não querem esse jeito de governar. A democracia se encerra nas eleições. Os eleitos acham que podem fazer o que quiserem sem consultar os cidadãos. E eles querem o exercício da cidadania. E o cidadão não quer aceitar que se faça o que se quiser em nome do povo sem falar com ele. A prova de que o país cresceu é que se faz uma Copa de primeiro mundo. Mas o cidadão tem transporte, segurança, saúde e educação da nação antiga subdesenvolvida. O que era para ser orgulho, os estádios da copa, virou escárnio. Afrontaram o cidadão sem consultar e parece que ele não queria assim. A Copa das Confederações perdeu público para as manifestações. As remoções de massas urbanas para que a nação desenvolvida se instale se faz sem ouvir o cidadão que é empurrado para longe da cidadania. A reforma agrária não pode levantar a voz para não atrapalhar o agronegócio do país exportador. Os índios são empurrados pelas hidrelétricas que geram o progresso do Brasil em obras. Até vão alagar a minha Palmeirais sem negociar onde fica a barragem para deixar os quilombolas e minhas lembranças em paz. Nos estádios de futebol a gente tem que torcer como os europeus, sem gritar palavrões e querem me colocar do lado de um flamenguista ou vascaíno, misturando os nossos espaços de fanatismo. Proibiram nossas bandeiras e nossas charangas. Os pedágios tomaram contas das estradas e no Rio de Janeiro tem um pedágio urbano para dificultar o suburbano chegar na Barra, num claro impedimento do ir e vir sem consultar os usuários. Um político evangélico e homofóbico se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos, propôs a cura gay e a Câmara Federal aprova a internação compulsória de usuários de drogas na contramão do mundo civilizado. Para construir aqui um país de primeiro mundo se faz alianças com políticos ladrões e reacionários fundamentalistas ferindo o estado laico. Perdem-se anéis para conservar os dedos no poder. E isso parece que quem está na rua não quer.

Enfim, as cidades são administradas como empresas que só favorece o morador que produz lucro. O poder público não se importa muito com o bem comum, com a cidadania de todos. Os governos estadual e federal aprofundam essa forma empresarial de governar numa ânsia de colocar a nação no primeiro mundo. As negociatas são feitas por políticos e empresários à luz do dia enriquecendo os dois lados tirando do cidadão parte preciosa dos seus impostos, num roubo praticado por uma classe intocável em seus privilégios. Vale tudo para que o desenvolvimento brote. Esquecem de que partiram o país e que a sua maior parte não usufrui desse progresso e desse primeiro mundo. E mesmo que queira participar do progresso tem que aceitar as condições dadas. Como, a gota d’água, aumentar as passagens além da inflação de um transporte insuficiente, precário e sucateado para o maior lucro do Brasil rico. E é isso que eu acho que eles não querem, que eu também não quero, e que as manifestações vão engrossar até que os governantes e os que almejam ser eleitos descubram que o cidadão precisa de cidadania e por isso não aceita todo esse estado de coisas e também não aceita pagar mais esses vinte centavos. E quer agora mais que esse troco seja devolvido. O saco encheu. 

Como se trata de uma reação meio que de forma espontânea, corre-se o risco de algum aventureiro meter a mão. Estamos todos confusos ainda com o que está acontecendo. Um amigo botafoguense lembrou o Carlito Rocha: "quem não está confuso, não está bem informado".

_________________________
Minha amiga Lelê Fernandes traduz esse sentimento na sua poesia:

 Revolta justa
Qualquer parecer
ainda é cedo
Pra onde vai
um vento sem direção?

       LelêEmoji  

 

PROFUSÕES DO...

 
Lázaro José de Paula
 
PROFUSÕES  DO  MEU   "  EU  "
CEGAM - ME  'A  TOA 
QUANDO   LAVO  AS  MÃOS  DE  PILATOS
QUE  SANTO  DE  CASA  NÃO  FAZ  MILAGRES
MAS  NEM  POR  ISSO  SOU  DESCARTAVEL
POIS  ESTOU  CARTANDO  ALTO  PRA  CARALHO
 
____________________________
FOTO: Paulo Tabatinga
 
NOITE NO ASFALTO
 
O brilho noturno do asfalto molhado
Dá a sensação de solidão e desterro
Lembra filme noir, coisa do passado
Triste como lembrar um antigo erro
 
Atravessar uma cidadezinha adormecida
Na luz pálida de um tempo sem futuro
A claridade da janela na ruela refletida
Iluminando fragilmente um velho muro
 
O carro atropela veloz o opaco da pista
A luz do farol bate na brumosa neblina
Provocando o frio que tolda a vista
Colando a visão noturna na retina
 
Os olhos dos bichos são pequenas tochas
A passear brilhantes pelas margens
Povoando árvores, contornando rochas
Num prenúncio inusitado das viagens
 
(Climério Ferreira)

Salgado Maranhão

0 azul e as farpas
 
Sigo a sangrar, do peito ao vão das unhas,
os dardos do amor: o que há sido e o que há.
Naufragado ao vento de um cais sem mar
o que serei se alia ao que me opunha.
As farpas do desejo – esse tear
das aranhas da dor e sua alcunha
– fazem da luz do dia uma calúnia,
cravam no azul da tarde o zen do azar.
Tento amarrar o tempo e a corda é curta,
tento medir o nada e nada ajusta.
(Meus nervos tocam para os inimigos
que chegam sob o som de uma mazurca.)
 Resta a mó do destino – o desabrigo
– a devolver meu pão de volta ao trigo.
Salgado rondando o mundo com sua palavra

Poema numeral

 
Graça Vilhena
.
 
meu coração

em sua mágica unidade

recusa o humano cálculo

de ser metade de dois

 .

prefere multiplicar-se

e voar em migração

sozinho mas sendo tantos

que bebem da mesma água

no breve instante da sede

FERVOR DAS VANGUARDAS


(Luiz Horácio)
 
Excetuando Mário de Andrade, praticamente nunca saíu do país, e Jorge Luís Borges, viveu na Suíça e na Espanha  a modernidade latina "sempre se deixou seduzir pela medusa parisiense", diz Jorge Schwartz  em Fervor das Vanguardas - Arte e Literatura na América Latina.  O livro de Schartz é um road movie, Brasil, Uruguai e Argentina integram esse roteiro pelas décadas de 1920 e 1930. O objetivo: apresentar os pontos em comum entre essas culturas.   Seriam tão próximos, artisticamente bien sûr,  Tarsila do Amaral, os argentinos Xul Solar e Horacio Coppola, o uruguaio Joaquín Torres García? Fervor das Vanguardas -Arte e Literatura na América Latina tratará de responder. Concordar ou não é outra conversa.

Percebe-se que o termo “vanguarda”  como o X no mapa , o sinal que identifica onde está escondido o tesouro. E vanguarda, arguto leitor, é cada vez mais uma “peça de museu”, requer muita escavação. E o professor, com rara delicadeza e conhecimento de causa, escava.
Escava e apresenta o resultado de seu trabalho: acima de tudo o diálogo cultural com nossos vizinhos e a inevitável influência européia.
Apresenta Mário de Andrade, o primeiro a escrever sobre Borges em nosso país em 1920.Junto com Borges traz à tona outro argentino, o poeta Oliverio Girondo. No entender de Schwartz.

 Girondo representava a  "vanguarda no sentido mais tradicional e histórico do termo e em praticamente todas as etapas de produção".  Artista plástico além de poeta, seguia os passos de Baudelaire. Aqui deixo a pergunta: como um vanguardista segue ou reproduz, senão a obra as intenções de outro artista?
Sem desfazer do valor da obra, em suas variadas vertentes, mas deixemos de lado o termo vanguarda.
Em Fervor das Vanguardas  o professor Schwartz apresenta seus estudos sobre vários artistas. O argentino Horácio Coppola é um deles e também dos mais instigantes, capaz de explorar com elegância e sensibilidade o construtivismo europeu e o barroco brasileiro, mais precisamente o barroco mineiro.
Coppola tinha 105 anos ao morrer e sua obra, pelo menos na visão deste aprendiz que visitou sua exposição Visões de Buenos Aires,  no IMS do Rio de Janeiro, não pode ser dita popular.
  Luz, cedro e pedra- esculturas de Aleijadinho. Registros feitos pelo fotógrafo Coppola em 1945, essa visitei no IMS de São Paulo, inesquecível o contraste que se estabelece entre esses dois momentos do fotógrafo.
Mas a fama desse argentino é resultado das fotos de Buenos Aires, sua atenção a geometria da capital. E o vanguardista Coppola estudou na Bauhaus, escola alemã fundada pelo arquiteto Walter Gropius. Os aspectos geométricos destacados por Coppola resultam da escola alemã.E outra pergunta, atento leitor, vanguarda na Bauhaus ou na utilização da sua influência via Coppola?
As fotos do argentino ilustraram com imagens do subúrbio o livro Evaristo Carriego (1930) de Jorge Luis Borges. No  primeiro livro de poemas de Borges, Fervor de Buenos Aires (1923), a ausência de seres humanos deixa a capital com ares de cidade fantasma. As fotos de Coppola  acentuam o aspecto de solidão, de fim, destaca alguns detalhes de Buenos Aires  dentro desse desamparo , "em que o grande personagem é a cidade".
A análise de Schwartz faz um contraponto com a melancolia de Borges, vê nas fotos de Coppola

"um vínculo do olhar moderno com a arquitetura que marcou a carreira de alguns gigantes da fotografia moderna, como Atget, Brassaï e Kertész".
Ainda sobre Coppola ."O seu era um olhar geométrico, da cidade que se verticaliza, um olhar moderno e antípoda ao de Borges, fixado no barrio".
Importante ressaltar, entre vários aspectos apresentados nesses belos estudos do prof. Schwartz, é o fato de todos os vanguardistas citados não “pecarem”pela originalidade. Seria o ônus de pertencerem a periferia artística?
O professor mostra a influência do primitivo/moderno, caracteristica marcante das vanguardas européias no início do séc.XX. O uruguaio Joaquín Torres Garcia é um exemplo entre os   “grandes artistas da modernidade periférica sul-americana” . O Abaporu, de Tarsila do Amaral, é outro exemplo.
Garcia é considerado o pintor Uruguaio mais importante do século XX, construtivista, grande parte de sua produção pode ser vista  no Museu  Torres García em  Montevidéu. Um dos mais instigantes, emocionantes e ao mesmo tempo didático estudo de Fervor das Vanguardas é sobre este pintor, escultor, escritor,desenhista e professor; Un flâneur em Montevidéu: La ciudad sin nombre, de Joaquín Torres García.
Vale o livro.
Voltando ao primitivo/moderno, a leitura de Lasar Segall: um ponto de confluência de um itinerário afro-latino-americano nos anos 1920.
“A vanguarda parisiense deu ao negro o status de modernidade, a partir do forte impacto que representou para as artes Les Demoiselles d’Avignon (1907), de picasso, em que pelo menos três das cinco prostitutas  no famoso quadro  têm como rosto máscaras africanas. Mas por que  o primitivo se converteu em sinônimo do moderno?”
Aqui interrompo para deixar ao leitor o prazer da leitura deste fascinante Fervor das Vanguardas-Arte e Literatura na América Latina.
Mas se até aqui este aprendiz citou quase que exclusivamente a riqueza dos textos acerca das artes plásticas, não se deixe iludir. O livro tem mais, muito mais e a Literatura é investigada, analisada, meticulosamente pelo professor Schwartz. Um exemplo é Quem o Espantapájaros espanta?
Não se percebe excessos tampouco ausências na obra de Jorge Schwartz.
Que não se perceba sua omissão, curioso leitor.
 

TRECHO

Das várias definições que Coppola escolheu para a fotografia, “imagema”é o conceito que melhor a representa: “Da minha janela - vendo com ânsia e maravilha - olho o real iluminado: encontro - de um ponto de vista dado - uma imagem, por assim dizer, de meu mundo próprio”(grifos do autor). A alusão à janela pode ser no sentido mais literal do termo, mas no sentido figurado representaria seu olhar e seu encontro com o mundo, subjetivo através da lente  da câmera fotográfica. Esse mesmo olhar também pode atravessar, a partir de dentro, o vidro de uma janela ou de uma porta. Vemo-lo, por exemplo, na magnífica fotografia do Hipódromo de La Plata, praticamente inédita, com o elegante casal que frequenta o hipódromo, de costas, vestindo os símbolos da classe abastada, de uma época que reproduz a moda européia, olhando para fora do grande vidro. A divisão da janela faz  desse fotograma um transparente triptíco vertical. Esse mesmo movimento, de dentro para fora, repete-se nas luzes da cidade focalizadas a  partir  de interiores, em outras fotos de Coppola.

Um movimento contrário, ou seja, o olhar pela janela de fora para dentro, ocorre na sequência das vitrines, cujo valor ideológico foi magistralmente estudado por Walter Benjamin, ao analisar as passagens de Paris, no final do século XX.

OBS: O trecho está na pg. 200 e lá consta  final do século XX.

 

AUTOR

Jorge Schwartz nasceu em 1944. Graduado  em estudos latino-americanos  e inglês pela Universidade Hebraica de Jerusalém, obteve mestrado e doutorado em teoria literária e literatura comparada pela USP, onde é professor titular de literatura hispano-americana.

Mocinha do cântaro


 
Mocinha do cântaro e d'agua do poço,
que deixa a caneca cheinha pra sede
e vive entre tantas, e dorme de rede,
reserve um pouquinho de amor pr’este moço!...
 

Seu rosto festivo que um riso me cede
deixou sua imagem no fundo do poço...
reserve um pouquinho de amor pr’este moço
que, agora sem sede, o encanto lhe pede!
 

A agua da fonte tem vez e tem vida,
dum pingo de chuva à sua acolhida,
dum veio nascente à sua moringa...
 

Você, que lha busca, resguarda e consome,
faç’isso comigo, usando o meu nome –
se passe por dona da minha restinga!
 
(Juarez Montenegro)
 
__________________________


Paulo Moura


domingo, 9 de junho de 2013

Lugar do Encantado


(Edmar Oliveira)
 
Estive recentemente na Teresina, por um curto período, e tive a sensação de que a cidade tá se encantando em outra quando atravessa o Poty. Feito a Floresta de Pedra na Ilhotas que se encantou no meio do rio e deu nome ao bairro.

Teresina nasceu na beira do rio Parnaíba e fez a cidade entre os dois rios, desde o encontro das águas até para além da Curva de São Paulo, Poty acima. Por isso a cidade só tinha dois pontos cardeais: a zona norte que vai da Avenida Frei Serafim até o encontro das águas e a zona sul, que ia da mesma Avenida até a cancela separando a zona urbana da estrada de Palmeirais. A oeste estava o Maranhão. Ao leste o além-Poty das chácaras dos abastados até a estrada se bifurcar para Altos e União.

Pois ocorreu na minha ausência: a cidade se mudou toda para o outro lado do Poty e a cidade velha foi abandonada. Alguns moradores resistem, mas a maioria se encantou lá na cidade nova e eu não vejo mais. Como representantes dos habitantes que não se encantaram e continuam nas ruas da velha Teresina posso encontrar, dos velhos conhecidos de outrora, Assai Campelo, representante honorário da velha cidade, Paulo Moura, Tabatinga, Cícero Mafuá, Chagas Vale, Wilsim, os Galvões, Maiobinha e Maiobão, entre outros nativos que permaneceram na geografia antiga. Mas até o Cinéas, que resiste com sua Oficina da Palavra na Benjamim Constant, hora por outra se encanta do lado de lá e eu não consigo achá-lo. Durvalino, Xico Wilson, Tadeu, Cabeção, Paraguaio e outros confrades do Conciliábulo do Bar do Chicão se reúnem na sede da Coelho de Resende nos finais de semana. Durante a semana ficam no encantamento do outro lado do Poty e não é possível serem encontrados.

E não é que eu não procure, mas do lado de lá (além-Poty) eu não conheço mais ninguém, tá todo mundo encantado, foi o que pude imaginar procurando a Floresta de Pedra que também não achei. Dessa vez na cidade nova consegui ver o Bicudo, velho colega do Colégio Batista, que se materializou num bar da zona leste. Não perguntei se ainda mora na cidade velha. Mas como não estava encantado, presumo que sim.

E não é que noutro dia encontrei a filha do “Seu” Veloso, dono de uma grande mercearia e botequim lá do grotão do Barrocão! Encontrei é modo de dizer, me asseguram que era ela. Mas a minha antiga conhecida tinha sido a Secretária de Saúde (até trabalhei um tempo com ela sem lhe descobrir a identidade). É a Primeira-dama do Estado no governo atual e ainda é Conselheira do Tribunal de Contas do Estado. Juraram que era a filha do “Seu” Veloso, mas no encantamento não teve quem fizesse eu reconhecer a moça... O Assaí jura que é! Isso é que é um encantamento dos grandes.

Por isso é que eu não conheço quase ninguém em Teresina. Se encantaram lá do outro lado do Poty!   

Marinha


 
Seria  a sereia
Um drama no mar
Ou seria a sereia
Uma dama do mar
Ou seria apenas
As penas de Ulisses
A Navegar?
 
(Geraldo Borges)

Órfãos do Maraca


(Edmar Oliveira)
 
Desde que começaram a quebrar a marretadas aquela cobertura de concreto, o maior vão livre do mundo, com mais de sessenta anos de idade que eu fiquei contra a destruição do Maracanã. E para botar uma lona que não durou cinco anos no Engenhão e já vazou água na Fonte Nova. O Maracanã era um monumento que tinha que ter sido tombado. O dinheiro que usaram (e abusaram) para a reforma daria para fazer um novo estádio em outro lugar, deixando o Maracanã e sua história em paz.

Mas não. O prazer do moderno é destruir o antigo. E, depois de alguns anos e muito dinheiro (sempre os aditivos contratuais) inaugurou-se o que se teima de chamar Novo Maracanã. Não tem nada de Maracanã no estádio novo. Derrubaram o Maracanã e construíram um estádio novo, moderno, igual aos europeus, bonito, iluminado, colorido, de cúpula transparente e cheia de luzes, conforto nos assentos, camarotes de luxo, painéis incandescentes. Penduricalhos que disputam a atenção com o futebol no gramado impecável. Mas nada, nada mesmo, tem do velho Maraca e sua arquibancada de cimento, a geral e seu fosso. O Maraca era lugar das emoções, das bandeiras desfraldadas, das torcidas separadas, da mãe do juiz sendo xingada, dos palavrões que acompanhavam um ataque ou que zoavam uma defesa.

Nem precisei ir lá. Vi na TV. Aquela torcida homogênea segurando ridículos balõezinhos distribuídos na entrada. Não eram os torcedores que frequentavam o Maracanã os que estavam no novo estádio. Estádio não, agora eles se chamam arenas. Sem se perceber que o jogo é no gramado e não na areia que justificava o nome romano.

Lembram dos torcedores do Maraca? É só assistir a um canal 100. Os desdentados geraldinos tentando roer as unhas de uma mão enquanto a outra colava um radinho de pilha no ouvido para ampliar a visão do jogo. O fosso era necessário para evitar que os palavrões e xingamentos aos adversários (o principal deles era o juiz) se transformassem em atos de guerra para onde as emoções os empurravam. O fosso era o impedimento da ação. O catalizador do grito do torcedor fanático. Emoções que faziam a única diversão do suburbano que superlotava o vagão do trem da Central. Os que podiam pagar mais tinham na arquibancada de cimento a sua poltrona. Que quase não tem serventia para quem se emociona e levanta, grita e pula acompanhando o ataque do seu time ou fecha os olhos e emudece sentado quando o adversário encurrala o torcedor contrário num belo gol. O outro lado enlouquecia, as bandeiras coloriam e os fogos pipocavam para falar mais altos que os gritos e os tambores exaltados. Nós não somos europeus. Era assim que torcíamos. O novo estádio vendido ao Eike não quer esses fanáticos.

Esse torcedor está órfão. O Maracanã acabou para eles.

klöZ venuziano por 1000TON


ENCANTO E CONTRASTES

 
Lázaro José de Paula
 
ENCANTO  E  CONTRASTE
IRREGULARIDADES  NOS RELACIONAMENTOS
MEU  AMOR  MORREU  AINDA  JOVEM
COM  DESPEDIDA  VIOLENTA
ENQUANTO   ISSO  O  ARTISTA   COLORE  AS  RUAS  
DO  SEU  BAIRRO  E  UM A  LEI   FURIOSA
USA    O  SISTEMA   ANDROIDE 
E   MADONA  LIDERA  AS  DOAÇÕES    
EM  ALGUMA  TENDENCIA   UNIVERSAL
MAS  APENAS   POR   ENQUANTO   "   EU    "

1 verso

 
OS DO PIAUÍ
 
O querer piauiense às vezes é seco
A fala é lenta, arrastada, preguiçosa
A rua em que moram é quase um beco
E a frase, quando dita, é amorosa
 
A mansidão por um nada vira guerra
As amizades são verdadeiros pactos
A paixão maior deles é pela terra
Essas almas têm espinhos feito cactos
 
(Climério Ferreira)

Contículos Paranóicos IV

Caninos

Os vizinhos ainda se perguntavam sobre todo aquele sangue pelo asfalto. Davam suas versões, estupefatos. Há pouco, uma ambulância o resgatara no quintal. Coberto de sangue, dava a impressão de estar muito ferido, mas logo perceberam que o sangue era das cadelas estripadas no estacionamento. Contam que ao vê-las brincando, exaltou-se quando emendaram uma relação lésbica. As duas cadelas alternavam-se nos papéis ativo e passivo. Segurou-as pelo pescoço e sumiu com elas no quintal. Ouviram apenas os ganidos finais das cachorrinhas e ele, satisfeito com o resultado, uivando, uivando.
 
(Léo Almeida)

O aprendizado do menino

 
(Geraldo Borges)
 
             O menino estava na escola, o murmúrio de falas infantis prendo trinado de passarinhos pairava abaixo do teto. A professora escrevia no quadro negro, de perfil. Às vezes ficava de frente para a turma e explicava a matéria; O menino com os cotovelos fincados na sua carteira, cochilava de leve. Às vezes, ate sonhava com os olhos embaçados, relembrava as luzes da madrugada, e a penumbra do quarto quando seu pai aos gritos lhe tirava da cama  para levá-lo para o trabalho. Era uma criança ainda. Mas tinha de ajudar o pai no cabo da enxada. Ele admirava os passarinhos que cantavam nos galhos das árvores enquanto  caminhava para a roça. O menino começava a suar cedo. Ele sentia a caneta quando ia escrever as anotações da professora tão pesada quanto o peso da enxada. O pai não lhe dava uma trégua. Achava que estudar e trabalhar eram a mesma coisa.

                Justino. Falou a professora. Tá na hora da merenda. Acorda menino. Uma mosca zumbiu no seu ouvido. O menino passou a mão na orelha. E voltou do sonho, à realidade, que parecia mais um pesadelo. Os seus colegas riram.

                A professora não sabia de sua história. O que sabia era  que o seu boletim escolar estava péssimo. A única nota razoável, era o comportamento, até mesmo porque vivia cansado, e quase não tinha coragem para brincar, nem rir das brincadeiras dos colegas.

                O primeiro  semestre se passou. Os pais do menino viram que as suas notas não estavam boas. Era preciso melhorar. Mas de que jeito. Com certeza, seria tirar o menino do trabalho. O pai  reagiu.  Não acreditava que o trabalho de cada dia, o ganha pão estivesse prejudicando-o.

               Veio o segundo semestre. O menino continuou cochilando na classe, os cotovelos enfiados na cadeira, a mosca zumbindo na orelha, a professora escrevendo na lousa, de perfil, sujando sua roupa de giz  a caneta da criança pesando tanto quando a enxada. As notas do menino  diminuindo de valor, os meninos sorrindo quando ele acordava do sonho embaçado. Às vezes criava um pouco de ânimo depois da merenda escolar.

               Fim de ano, o menino trouxe o boletim com as suas notas para casa. Resultado. Não passou. Uma irmã menor, mais nova  que não  estava sujeita ao regime de trabalho do pai,  e estudava na mesma escola, passou. E alcançou a  classe do irmão, que, além da reprovação, ainda pegou uma sova do pai.

atalho de Paulo Tabatinga


Ponto Final

 
 
A história sem começo
nem meio chegou ao fim?
Uma chuva de cristais molhou 
os meus olhos
Reflexo das estrelas
Essa minha mania de acreditar
na eternidade das coisas...
Bem que a lua ontem estava linda
E eu nem olhei pra ela
Dói tanto ainda

              LelêEmojiFernandes