domingo, 23 de junho de 2013

0,20


 
(Edmar Oliveira)
 
Aconteceu. Vinte centavos foi o preço que levou multidões às ruas. Mesmo quem marcha junto com a garotada tem dificuldade de entender o que aconteceu. Muitos procuram as razões que fez a gota d’água transbordar. Não é só pelos vinte centavos, concordamos. Então se procura pelas razões da marcha desenfreada que tomou conta das ruas com palavras de ordem para todos os gostos. Acho que a mais simbólica foi a cartolina de uma garota que dizia: “desculpem os transtornos, estamos mudando o Brasil”. Mudar o quê. Que querem esses moços? Ah, esses moços que eu fui!

O troco! Parece até a briga daquela música do Gonzaga: “Eu lhe dei vinte mil réis pra tirar três e trezentos, você tem que me voltar dezessete e setecentos”. É. Os meninos, como o velho Gonzaga, querem mais do que o troco de dezesseis e seiscentos dos réis de ontem ou dos vinte centavos dos reais de hoje. Mas o quê?

O Brasil cresceu, é respeitado em todo o mundo, melhorou a distribuição de renda, uma nova classe média apareceu, o desemprego diminuiu, então o que eles querem, perguntam os governantes atônitos.

Melhor seria entender o que eles não querem. Não querem só que o troco seja devolvido, como também não querem esse jeito de governar. A democracia se encerra nas eleições. Os eleitos acham que podem fazer o que quiserem sem consultar os cidadãos. E eles querem o exercício da cidadania. E o cidadão não quer aceitar que se faça o que se quiser em nome do povo sem falar com ele. A prova de que o país cresceu é que se faz uma Copa de primeiro mundo. Mas o cidadão tem transporte, segurança, saúde e educação da nação antiga subdesenvolvida. O que era para ser orgulho, os estádios da copa, virou escárnio. Afrontaram o cidadão sem consultar e parece que ele não queria assim. A Copa das Confederações perdeu público para as manifestações. As remoções de massas urbanas para que a nação desenvolvida se instale se faz sem ouvir o cidadão que é empurrado para longe da cidadania. A reforma agrária não pode levantar a voz para não atrapalhar o agronegócio do país exportador. Os índios são empurrados pelas hidrelétricas que geram o progresso do Brasil em obras. Até vão alagar a minha Palmeirais sem negociar onde fica a barragem para deixar os quilombolas e minhas lembranças em paz. Nos estádios de futebol a gente tem que torcer como os europeus, sem gritar palavrões e querem me colocar do lado de um flamenguista ou vascaíno, misturando os nossos espaços de fanatismo. Proibiram nossas bandeiras e nossas charangas. Os pedágios tomaram contas das estradas e no Rio de Janeiro tem um pedágio urbano para dificultar o suburbano chegar na Barra, num claro impedimento do ir e vir sem consultar os usuários. Um político evangélico e homofóbico se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos, propôs a cura gay e a Câmara Federal aprova a internação compulsória de usuários de drogas na contramão do mundo civilizado. Para construir aqui um país de primeiro mundo se faz alianças com políticos ladrões e reacionários fundamentalistas ferindo o estado laico. Perdem-se anéis para conservar os dedos no poder. E isso parece que quem está na rua não quer.

Enfim, as cidades são administradas como empresas que só favorece o morador que produz lucro. O poder público não se importa muito com o bem comum, com a cidadania de todos. Os governos estadual e federal aprofundam essa forma empresarial de governar numa ânsia de colocar a nação no primeiro mundo. As negociatas são feitas por políticos e empresários à luz do dia enriquecendo os dois lados tirando do cidadão parte preciosa dos seus impostos, num roubo praticado por uma classe intocável em seus privilégios. Vale tudo para que o desenvolvimento brote. Esquecem de que partiram o país e que a sua maior parte não usufrui desse progresso e desse primeiro mundo. E mesmo que queira participar do progresso tem que aceitar as condições dadas. Como, a gota d’água, aumentar as passagens além da inflação de um transporte insuficiente, precário e sucateado para o maior lucro do Brasil rico. E é isso que eu acho que eles não querem, que eu também não quero, e que as manifestações vão engrossar até que os governantes e os que almejam ser eleitos descubram que o cidadão precisa de cidadania e por isso não aceita todo esse estado de coisas e também não aceita pagar mais esses vinte centavos. E quer agora mais que esse troco seja devolvido. O saco encheu. 

Como se trata de uma reação meio que de forma espontânea, corre-se o risco de algum aventureiro meter a mão. Estamos todos confusos ainda com o que está acontecendo. Um amigo botafoguense lembrou o Carlito Rocha: "quem não está confuso, não está bem informado".

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Minha amiga Lelê Fernandes traduz esse sentimento na sua poesia:

 Revolta justa
Qualquer parecer
ainda é cedo
Pra onde vai
um vento sem direção?

       LelêEmoji  

 

Um comentário:

elena disse...

Essa reflexao : "esses jovens que eu fui" enternece e apavora. A semelhanca e a diferenca. Eu nao reconheco essa inocencia politica no nosso historico. Mas isso vai se ajeitando na rua. Quero q cheguem todos daqui a um ano falando de representacao democracia..voto. E que seja um aprendizado sadio. Com pouca porrada eu espero.