domingo, 8 de maio de 2016

CARNE SECA NA JANELA



Carne de Sol de Campo Maior. Abaixo: baião de dois, maria izabel com colorau, arroz de carreeteiro, paçoca com cheiro verde e manteiga de garrafa.


(Edmar Oliveira)

Carne de sol é por excelência um dos maiores ingredientes da culinária nordestina. Foi a fórmula encontrada para conservar a carne após a morte da bezerra, que não foi inteiramente consumida. E um acompanhamento nutritivo para vaqueiros que campeavam gado por semanas, alimentando-se da carne seca com rapadura. Fontes da glicose e proteína que o organismo precisa.

A carne de sol ainda é vista em comércios na periferia de Teresina em mantas de gado, carneiro ou bode a secar no tempo e no sol. Penduradas nas meias-águas. Que nem precisam do sol intenso, ficando ao calor do dia. As carnes são salgadas e espichadas com talos de coqueiros flexíveis para não deixar a superfície embolar e garantir a secagem por igual no inclemente calor. No município de Campo Maior, o maior produtor de carne de sol do Estado, são várias barracas com as mantas dependuradas, que o freguês pode escolher e mandar fazer na hora. Servida com macaxeira e manteiga de garrafa, baião de dois, paçoca, maria izabel, farofa amarela e salada de verduras, é de se apreciar e comer até “dá na fraqueza”.

Vamos aos termos regionais traduzido do piauiês: macaxeira por aqui se chama de aipim; o nosso baião de dois é “risoto de feijão” sequinho e soltinho. Com feijão de corda, sem queijo (já estão fazendo um baião molhadinho e com queijo, tipo italiano, mas isso não é a receita original). Existe também um baião de dois com feijão verde. O de corda fica moreninho. O verde, branquinho. Mas os dois são sequinhos e soltinhos (tanto o arroz quanto o feijão). Paçoca é uma mistura de carne de sol misturada com farinha pisada em pilão de madeira, geralmente por duas cabrochas a suar. Hoje já se faz paçoca no processador, mas não é o original. Maria Izabel é um “risoto de carne de sol”, mas também com a carne e o arroz soltinhos e sequinhos (já se faz uma imitação molhada do italiano, com arroz preguento. Nada a ver com o original). Com colorau ele fica amarelo parecendo açafrão (alguns restaurantes já usam o açafrão). Farofa amarela é farinha de mandioca amarelada na manteiga de garrafa e torrada. Salada de verdura é apenas tomate ainda amadurecendo (diz-se divês), alface, pimentão e cebola com cheiro verde e coentro, que antigamente eram as “verduras” que davam no quintal. Manteiga de garrafa é uma manteiga de nata que fica derretida no calor do sertão (aqui, no inverno, fica massenta e não sai da garrafa). Dá na fraqueza é uma expressão bem piauiense que significa que matando a fome e indo um pouco além se pode matar a fraqueza que a acompanhava. Mas tem o paradoxo de “dá na fraqueza” e deixar o cabra imobilizado de tão saciado que fica. Fica mole que parece tá fraco.  

A carne de sol é uma espécie de carne seca. O charque é uma carne seca feita diferente da carne de sol, processo conhecido como charqueado: a desidratação da carne é feita apenas pelo sal, com várias trocas, durante o tempo de uma semana. Depois, já completamente desidratada pelo sal a carne é lavada e posta num processo de secagem ao ar livre (aqui o sol pode não fazer parte). Por isso o charque é o processo do sul e a carne de sol o tipo comum de carne seca do nordeste. Tem um charque avermelhado que você encontra no supermercado, mas esse é feito na indústria com conservantes artificiais, além do sal.

Chama-se manta, tanto no sul como no norte, porque os peões e vaqueiros tinham uma forma primitiva de secagem. A carne fresca, aberta, era colocada entre a sela e o pelo do cavalo, onde secava na prensa do peso do cavaleiro e salgava no suor do animal. Daí o termo manta: a carne substituía a manta da montaria que fica entre a sela e o cavalo. Do charque, o arroz de carreteiro gaúcho é o prato mais conhecido, com feijão e charque, quase uma mistura do nosso baião de dois com maria isabel. Estamos mais perto do que se imagina. Mas o que é distante o carioca juntou num prato que é a cara do Rio: carne seca com abóbora. O charque vem do sul e a abóbora do nordeste. Coisa de carioca.

Depois da refrigeração os restaurantes inventaram uma carne de sereno: que é salgar à noite, ser exposta ao ar livre na noite quente e depois guardada em geladeira. É uma falsa carne de sol, que fica mais saborosa, porque não tão seca é mais suculenta e com cor mais agradável. Mas é falsa. Só resiste na geladeira. A garne de sol, assim como o charque, dura por muito tempo ao relento.

A carne seca é tão entranhada na nossa cultura que Torquato Neto fez dela poesia:
Carne seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade, jardim”

Aqui em Geléia Geral, com Gilberto Gil. Doutra feita, com Carlos Pinto, em Dia D, numa frase memorável, que também é título da biografia que lhe fez Kenard Kruel:
“há urubus no telhado
e a carne seca é servida
um escorpião enterrado
na sua própria ferida
não escapa, só escapo
pela porta da saída
todo dia é o mesmo dia
de amar-te, amor-te, morrer
todo dia menos dia
mais dia é dia D







1000TON







PIPOCA NUMA HORA DESSAS?



desenho: Zepa Ferrer



Algo inacreditável acontece com a justiça neste país. A nação espera há quase seis meses que o STF abra inquérito contra as inúmeras acusações que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, é portador sabido e provado e suas excelências da Suprema Corte acham por bem debater se se pode comprar pipoca do pipoqueiro da esquina para entrar no cinema ou se essa atividade é uma exclusividade dos megaempresários das casas de diversão. Pipoca numa hora dessas?

Parece inacreditável: o país em desgoverno, com um parlamento golpista – no sentido mais torpe da palavra – e o judiciário ignora. Provocado há quase seis meses sobre as falcatruas do notório bandido que preside a Câmara dos Deputados, suas excelências adiam sua decisão, talvez por achar os direitos sobre a pipoca no cinema mais importante de todas as querelas que atravessam a nossa jovem democracia.

Talvez as “forças ocultas” queiram dizer que a nossa democracia foi de milho a pipoca num estalar de dedos e lavagem de mãos. Talvez o pipoqueiro da esquina faça uma concorrência desleal à pipoca do cinema – que custa mais caro que o ingresso – e isso é a maior fonte de renda do nosso empresário da diversão. Sem ela podemos ficar sem o bendito cinema de todas as tardes. E o pipoqueiro e seu carrinho estão livres para aparecerem onde se junta qualquer multidão e devem deixar a concorrência desleal que fazem na porta do cinema. Talvez eu não tenha entendido a crucial importância do caso dado por “suas excelências”.

O fato é que a ladroagem do Cunhão continua impune. Nossa democracia sofre apenas um arranhão para que os quarenta ladrões coloquem nossa economia nos trilhos e prendam Ali Baba que ousou tocar no tesouro dos ladrões. O fato é que viveremos mil e uma noites no inferno.
Mas “suas excelências” preferem se preocupar com a pipoca do cinema e tão se lixando para que o milho da nossa jovem democracia exploda. 

(Edmar) 


O afastamento de Cunha na quinta feira, depois do artigo escrito, foi a vera ou de brincadeira?

Gervásio



O Teori ficou com medo da charge do Gervásio? Ou também tá de brincadeira?





Estória de uma árvore



(Geraldo Borges)


            Eu sou uma arvore que aprendeu a ler e escrever, depois que vim morar na cidade. Estou na flor da juventude, e, vivo na floresta, por enquanto. De manha quando o sol amanhece, tudo é encanto  e canto de pássaros  nos galhos das árvores, o  fervilhar de insetos no solo. Eu sou um ipê amarelo, também conhecido como pau d’ arco Por isso mesmo não posso me esconder dos olhos cobiçosos dos homens insensíveis que só pensam em dinheiro. E não vêem a minha beleza natural.

            Quando escuto o som sinistro das serras elétricas dos madeireiros, mudar de cor. Já presenciei a morte de muitas das minhas vizinhas ao lado, sei que as árvores morrem de pé. Mas, só quem já viu o tombo de uma árvore sabe o tanto que isso  nos entristece.  Por um triz escapei até agora.

            Estou pensando em me mudar para a cidade. Não sei se me mudo para  uma capital ou para um singela cidade do interior, e fico fazendo sombra e colorido no meio de uma praça.

 Os homens inventaram até o dia da árvore, o nosso dia, no mês  de setembro para a gente comemorar. Dizem:  quem planta uma árvore enriquece. Mas,  quem está enriquecendo, são os madeireiros devastando o nosso território florestal. Não sabem eles que todas as florestas são encantadas, e se forem destruídas, adeus o seu encanto, onde vamos encontrar os duendes, os gnomos, e outros bichos mitológicos.

Vou fugir daqui o quanto antes, senão eles vão fazer carvão de minha seiva, caixão de defunto, canoa, barco, cadeira, mesa, armário, ou, até mesmo, santo de pau oco, o que não me consola, nem me alivia. Quero é viver e dar sombra aos peregrinos, e ouvir em minha fronte o canto dos passarinhos, e o zumbido as abelhas a procura do néctar das minhas flores.

Estou ouvindo o matraquear de uma serra elétrica. Se eu não for sacrificada desta vez. Amanha mesmo me mandarei para a cidade. Escapei mais uma vez. Não posso esperar outro dia.

Eu já estou em Teresina, cidade a beira do rio Poti e Parnaíba chamada cidade verde, e também Chapada do Corisco. Dizem que já foi mais verde ainda: um imenso pomar com  quintais cheios de plantações.Eu gostaria de ter nascido  aqui nesse tempo.

Viajei a noite  e amanheci na Praça da Bandeira. Avistei o rio que nesse inverno está bem cheio. Reconheci por perto alguns pés de juás e pés de angico. Notei que  as pessoas começaram a olhar para mim com estranheza, se perguntando: eu nunca tinha visto essa arvore aqui. Como ela apareceu aqui eu não sei. Eu respondi: são os mistérios da natureza. Claro que o transeunte não entende a minha linguagem vegetal. Bom. Eu começava a chamar a atenção da cidade. Não demorou muito a prefeitura veio podar  minha fronte a corte de tesoura e me registrar, botou uma espécie de chapa de cobre com números no meu tronco. Apropriou-se de mim, fez-me um patrimônio historio e cultural. Pelo menos eu estava garantida, burocraticamente garantida.

 Notei logo a mudança de clima. Fazia calor. Mas esse clima era o menos. O clima pior era a ausência de silencio. Onde eu estava no meio da praça ficava no caminho do Mercado Velho. E por ali passava muita gente;  a algaravia  era enorme.

Para falar a verdade me passou pela cabeça a vontade de voltar para a floresta. Mas foi apenas um instante de fraqueza. Reafirmei o meu propósito, e disse: é aqui mesmo que tenho de ficar. Tive que aturar os bandos buliçosos de pombos que arrulhavam em meus galhos e borrava  tudo com a sua sujeira. Mas é assim mesmo. Nada é perfeito. Pelo menos aqui eu estou garantida pelo povo que se diz amante da cidade. Certo que não sou uma árvore nativa no sentido que não tenho uma estória ligada à cidade. Embora, pelo que ouço falar, existem  muitos ipês espalhados pelos bairros.  Hoje choveu forte. Uma tormenta. Muito trovão e relâmpago Fiquei atemorizada. Vai que um raio me parte pelo meio.

As pessoas estão me olhando com simpatia. Gozando da minha sombra; até um casal de namorados já tirou uma foto minha no meio de uma revoada de pombos. Na realidade, estou sendo curtida. A cidade já me considera uma fonte de referência. Pessoas dizem: vamos nos encontrar debaixo do pé de ipê. Sim, vamos. Confirmam. Fiz muito bem em ter me mudado. Já estou me acostumando. Uma turma de turistas me fotografaram de vários ângulos Estou dando um ar pitoresco a cidade. Noto que muita gente vem me contemplar. Na floresta eu era apenas mais uma árvore no meio de milhares. Nem sei esmo como escapei Foi milagre.   
               
Com certeza, se tivesse ficado lá dentro do mato, já estaria sido derrubada, levada para as serrarias, virado tábuas. E não estaria aqui contando a minha estória. Que continua assim; sonhei. Pois é, arvore também sonha. Até pedra sonha. Todo sonha e soa. A vida é um sonho. Sonho que volto às vezes à terra onde nasci. Lembro – me de meu tempo de semente. O pequeno broto rompendo da terra úmida, procurando  o sol, crescendo, verticalizando-se  até atingir a idade adulta.Vendo o meu vulto virar sombra no chão, os passarinhos  cantando na minha copa, os besouros, os beija flores, as abelhas, ate que começaram chegar os madeireiros. Aí apareceu  o pesadelo, e eu acordei.

Esse foi o meu primeiro sonho depois que cheguei á Teresina. Depois sonhei que um rancho  de crianças estavam fazendo um convescote  debaixo de minha fronde. Fiquei muito contente com isso. Comecei a sonhar quase toda a noite. Sonhei que alguns meninos de rua tinham construído uma casa em cima da minha copa. Mas que só durou o tempo do sonho. A prefeitura mandou destruí-la. 

            Sonhei que um grande temporal   caía sobre a cidade e um raio  me abatia. Não gostei do sonho. O tempo está bonito para chover, como eles dizem aqui. Choveu. E para a minha infelicidade o sonho se concretizou. Escapei da fúria dos homens. Mas não pude escapar da fúria dos céus.






Mão Santa por Dino Alves






A PRÉ-HISTÓRIA AGORA!





Pesquisadores acharam fósseis animais de mais de 250 milhões de anos no Piauí. São animais existentes antes da era dos dinossauros. O gancho para o início da pesquisa foram os troncos petrificados da floresta fóssil do Rio Poty, agora transformada em parque. No meu romance “Terra do Fogo” essa floresta é um “personagem geográfico” do romance. Quando menino ia passear no bosque de pedra lá pras bandas do bairro da Ilhota.

O que me encanta no Piauí são as surpresas. Passei minha juventude caminhando para o Parque de Sete Cidades, onde há registro de inscrições rupestre do homem pré-histórico. Fizemos lá um filme Super-8 chamado “O Guru de Sete Cidades”, onde Pierre Baiano tinha os olhos arrancados num filme meio de terror, que eu não lembro mais da historinha. Sei que eu e Durvalino compramos um ketchup pra servir de sangue e não vimos que era apimentado. Baiano chorou lágrimas de verdade no cinema. Mesmo nesses acampamentos ripongas, com muita cerva, xarope e erva, tínhamos o maior respeito pelas inscrições do homem pré-histórico, que na época não eram protegidas por lei.

Niède Guidon fundou e cuidou do Parque da Serra da Capivara, construindo o fabuloso Museu do Homem Americano, onde juntou as provas de que o homem não veio pelo estreito de Bering e sim pelas ilhas do Pacífico, o que faz o nosso índio ser mais parecido com o asiático amarelado que ao índio pele vermelha americano. Todo o trabalho da antropóloga corre perigo, por falta de verba, e o Piauí pode jogar sua pré-história, que é a pré-história das Américas na lata de lixo da história.
Agora, bem perto de nós, na capital mesma – como em Huaca Plucllana em Lima, Peru – Teresina nos apresenta dentro da Floresta Fóssil animais de antes dos dinossauros. Lá depois do Parnaíba – no Maranhão, mas ainda na Grande Teresina – foi encontrado uma enguia que recebeu o nome de Thimona, já que devia habitar lagos de água doce ali em Timon. Li que os pesquisadores estão à procura de um mamífero, que mudaria o curso da história do próprio homem.

Sei não, mas esse governo falso que se forma agora tem uns descendentes piauienses dessa descoberta. O Gato Angorá – apelido dado a Moreira Franco por Brizola – pode ser um remanescente daquela descoberta. O Heráclito Fortes, com aquela estranha boca cheia de línguas, com certeza é. Mão Santa respira entre as frases como um batráquio pré-histórico e acho que é um anfíbio que respira na água. Na terra tem muita gente feia que pode ser descendente da descoberta - inclusive eu. Mas tô falando do pessoal do mal. Eu sou do bem, pelo Cabeça de Cuia!

Mas se essa descoberta no Piauí apenas reflete o que pode acontecer em todo o país? Teremos um golpe pré-histórico. O Temer parece um descendente de morcego, das cavernas mais profundas da pré-história. O Bolsonaro parece um elo que se perdeu e não alcançou a humanização. Cunha, não tenho dúvida, uma ratazana com orelha de rato, focinho de rato, rabo de rato, preside o congresso por culpa de uns juízes que não conhecem a antropologia. 

(Edmar)