domingo, 27 de julho de 2014

NESTE JULHO COMEÇOU AGOSTO


(Edmar Oliveira)


Nesse julho começou agosto, que aqui pra nós sempre teve uma carga de desgostos desde o suicídio de Vargas e a comoção nacional. Mas nesse julho ainda estávamos vivendo um resto de copa do mundo quando caiu sobre nós o desastre da goleada alemã. Neste fatídico dia nos deixava Plínio de Arruda Sampaio carregando os sonhos de um socialismo por quem tanto lutou e morreu derrotado tentando recriar um novo partido em que coubessem suas utopias. Senti tristeza pela luta de Plínio e pela sua morte.

No jogo final da copa morria Nadine Gordimer, ativista e escritora sul-africana ganhadora do Prêmio Nobel de 1991. O esporte mesmo perdia Di Stéfano um dia antes de Plínio e o controverso árbitro Armando Marques, três dias depois da final. Estava de mau agouro uma copa no Brasil acabando no dia 13. As notas tristes de blues do albino Johnny Winter nos deixava no dezessete. O mês já era um agosto desesperado pra quem era vivo em tempos de Woodstock.
Téo e Ubaldo: Zecamunista no meio

No dia seguinte foi a vez do desaparecimento do inventor do Sargento Getúlio. Ubaldo ficou tão marcado em mim nesse romance de 1971, que mesmo “Viva o povo brasileiro” ou outra obra posterior (todas imensas de boas) não conseguiram calar o monólogo do sargento que tinha a alma impressa nas páginas daquele romance. Além disso, João Ubaldo tinha apresentado ao meu amigo Téo (que me provou com uma fotografia que publico aqui) o seu personagem Zecamunista. Como ele, outros personagens do Ubaldo que têm vida real foram forçados a viver as peripécias inventadas pelo escritor. No Bar de Espanha, na Ilha de Itaparica, personagens reais foram parar nas suas crônicas e hoje juram terem vivido as invencionices do Ubaldo. E os botecos do Leblon ficaram mais tristes e no domingo não tem mais a crônica, que eu lia nem que fosse pra discordar e discutir com meus amigos da política. Que eu sempre defendi que a arte não se marca pela ideologia, mas pela estética e a ética. E o Ubaldo desaparece assim deixando um vazio num copo do boteco do Leblon, onde ele bebia um whisky cowboy escondido com a cumplicidade do garçom.

Mas que esse julho era agosto no outro dia seguinte foi provado no silêncio do Rubem Alves. Psicanalista, educador e escritor, fino cronista que tinha a paciência de nos ensinar temas espinhosos como filosofia e ciência. Toda a nossa geração de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas bebemos nos seus escritos. E agora Rubem está morto. Logo ele que escreveu tão bem sobre a morte (a crônica está publicada nesta edição).
desenho de 1000TON

No dia 23 encantou-se a Pedra do Reino. Quem melhor conhecia a alma nordestina. Quem nos representava nas nossas contradições. Deitado no saguão dos aeroportos (tinha medo de avião, deitava no chão pra relaxar, e ficava bravo se ouvisse a palavra inglesa hall para nomear seu saguão. Até tolerava vestíbulo, hall nunca), ou dando aulas que eram verdadeiros espetáculos, Suassuna tinha o porte dos nobres nordestinos até no vozeirão. Escreveu um clássico do teatro brasileiro, reverenciado pela Barbara Heliodora (o que não é pouca coisa). O “Auto da Compadecida” é um texto aparentemente ingênuo, como às vezes são os nordestinos, mas consegue dissecar a nossa alma, naquilo que nos constitui humano, que, como bem diz Rubem Alves, não se pode explicar pela biologia. Ariano Suassuna fez do Romance da Pedra do Reino a constituição dos valores nordestinos marcados pela herança oral da península ibérica e a guerra dos cristãos com os mouros. Eu mesmo, menino no interior do Piauí e ouvindo as histórias da minha avó, achava que os mouros moravam no Maranhão e vinham atravessando o rio Parnaíba para roubar nossas princesas. Só muito depois encontrei em Ariano o sossego de um sebastianismo que minha alma não entendia. Mas eu tenho medo que em vez de esperar a volta de D. Sebastião, o cavaleiro perdido na África, passe a ficar esperando D. Suassuna, o cavaleiro do sertão. É muito triste perder o velho abusado de terno de linho claro.

Nesse julho começou agosto e muitos bons nos deixaram. A bruxa tá tão solta neste julho meio agosto que aviões estão caindo às pencas. Sem falar que a banalização do mal massacra cruelmente os palestinos também neste julho...    
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desenho: Suassuna por 1000TON 

  

Sobre a morte e o morrer

(Rubem Alves)


Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora... Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade. Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...” Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...” Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza. Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?". Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética. Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final. Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais? Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia. Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me". Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento. Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.

Texto publicado no jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do dia 12-10-03. fls 3.

CANTARÃO MINHA GLÓRIA


(Bráulio Tavares)

No Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna há um belíssimo verso que sempre admirei e que sempre me inquietou, por conter um aparente paradoxo que nunca me dei o trabalho de explorar até o fim. Tentarei fazê-lo agora. O verso aparece no Folheto LIV, “A Parada dos Fidalgos Sertanejos”, e ocorre num desafio de cavalhada entre cristãos e mouros, nas ruas de Taperoá. Respondendo à provocação do Rei Mouro, o Rei Cristão diz: 

“Esta é a nossa batalha, 
sangrenta, macha e tirana! 
Minha espada, a Durindana, 
não amostra uma só falha! 
Na forja desta Fornalha 
eu ganharei a Vitória! 
Mas ficarão na Memória 
meus malfeitos e perigos, 
e os Cantadores antigos 
cantarão a minha Glória!”

Perceberam a sutileza? Os cantadores antigos (mesmo já mortos e mudos) cantarão a minha glória. Não é “cantaram”: é “cantarão”. Neste verso, Ariano retoma aquela subcorrente mística que cerca todas as profecias, todos os movimentos messiânicos. Dias atrás eu estava assistindo A Vida de Brian, o filme do grupo Monty Python sobre um sujeito trapalhão que nasceu no mesmo dia de Jesus e acaba sendo confundido com o Messias. Arranja sem querer uma multidão de seguidores que vêem em cada gesto dele um Sinal, e de nada adianta ele dizer aos berros que não é o Messias. Quando alguém faz uma profecia com a ênfase adequada, poderosas forças do inconsciente coletivo começam a se mobilizar para fazer com que aquilo aconteça. Vai acabar acontecendo; é o que em inglês chamam de “self-fulfilling prophecy”, as profecias que forçam o próprio cumprimento.

Um Profeta não é um sujeito que teve um vislumbre do que vai acontecer no Futuro e transmite para nós essa visão; ele não “prevê o que vai acontecer”. O Profeta é alguém que deseja ardentemente, misticamente, obcecadamente, que algo aconteça, e passa a vida convencendo as multidões de que esse algo acontecerá. Impressiona tanto que, como diz o especialista Paulo Coelho, “o Universo inteiro passa a conspirar a favor dessa idéia”.

Quanto o Rei Cristão da Pedra diz que “os Cantadores antigos cantarão a minha glória”, ele implica que no futuro os versos dos cantadores antigos sofrerão uma releitura em função das façanhas que ele, o Rei, levou a cabo. Onde quer que haja um verso antigo celebrando os feitos de um herói, esses versos serão desconstruídos e reconstruídos para adaptar-se a ele, como se se tratassem apenas de uma previsão, um texto preparatório para a existência daquele herói específico. No Passado os cantadores “cantaram” uma glória abstrata, mas no Futuro “cantarão” as glórias de Fulano de Tal, porque serão lidos de uma maneira diferente. A História pode ser reformatada ao ser relida. O Passado é tão mutável quanto o Futuro. O Presente modifica o Passado, e pode fazer com que mudemos radicalmente a maneira como lemos os textos produzidos pelo Passado. O que os Profetas e os Cantadores antigos disseram ainda não terminou de acontecer.
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texto em: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/03/0887-cantarao-minha-gloria-1912006.html

LIVROS E ILUSTRAÇÕES




(Geraldo Borges)
 
Cresci lendo revistas em quadrinho, produto americano. E romance de cordel, produto nordestino. O primeiro em prosa, uma prosa mais dialogada do que narrada, o segundo em verso, a gente lia cantando. Durante esse período devo ter manuseado alguns livros ilustrados, adaptações de grandes obras clássicas. Não me lembro.

Pulei do cordel e das revistas em quadrinho (minha mãe queimou todas) para os romances volumosos, tijolos: Conde de Monte Cristo, Os três Mosquiteiros. Ficava imaginando como seria as feições de Edmond Dantès  com a sua cara de homem vingativo, e os semblantes dos mosquiteiros, coisa que vim conhecer muito depois no cinema.

Um dia, na minha jornada de leitor, encontrei alguns belos livros ilustrados, que me impressionara loucamente. O primeiro foi o Pequeno Príncipe  de Antoine De Saint-Exupéry, e que começa com o famoso desenho, aquarela do autor, de uma serpente digerindo um elefante, e que o leitor desavisado, apressado, jura que é um chapéu. E por aí vai. Depois aparecem os traços do Pequeno Príncipe, o carneiro. O livro é uma obra infantil  mas conquistou os adultos, e ninguém poderá imaginá-la sem ilustrações. Até mesmo porque os desenhos do livro estão visceralmente conjugados as narrativas.

Depois do Pequeno Príncipe eis que chegou  as minhas mãos Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. Maravilho. Um clássico dos clássicos. Uma obra para crianças que os poetas adoram. Um sonho Lewis Carroll, além de grande escritor era fotografo. Engraçado, o livro começa  quando Alice está ao lado da irmã que lê um livro sem figura. Aquilo a entedia. Quando de repente passa um coelho consultando as horas. E Alice corre atrás dele. Daí para  frente começa  o enredo. Tudo é surpresa agora. Vale a pena transcrever o inicio do livro:

“Alice começou a enfadar-se de estar sentada no barranco junto à irmã e não ter nada que fazer: uma ou duas vezes  espiara furtivamente o livro que ela estava lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, ‘e de que serve um livro’ pensou Alice , ‘ sem figuras nem diálogos.’

Não demorou muito tempo  li  O Engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, com belíssimas ilustrações de Doré. Todo leitor de Cervantes conhece a estalagem que virou Castelo, e Dulcinéia que virou princesa, e os moinhos de vento que viraram monstros, na imaginação delirante do Cavaleiro de triste figura, leitor faminto dos romances de cavalaria. O romance agrada a gregos e baianos.

Depois de Dom Quixote outro grande livro ilustrado que tive a aventura de ler chama-se a Divina Comédia de Dante Alighieri. Desenhos de Doré. Inferno. Purgatório. Paraíso. Uma viagem trágica nel mezzo Del cammin di nostra vita. Repleto de figuras retorcidas e sem esperança. Nenhum leitor por mais sensível que seja imaginaria tanta dor e desespero naqueles personagens.

Também ilustrado por Doré li Gargantua de Rabelais, onde o leitor pode ver figuras gigantescas, descomunais, atolada nos banquetes da gula e no sabor do vinho. O livro é uma saga  satirizando a vida dos frades da França Feudal.

Afora a leitura de livros estrangeiros, deparei-me com um conto de Leminski- A Guerra dentro da Gente. O conto é de uma elegância exemplar, os desenhos de uma expressividade tão nítida que o leitor sente que os personagens estão se materializando, dando um pulo, fora da página. Considero-o uma obra prima da literatura  brasileira.

Mas, para ser sincero, prefiro a leitura de livros sem ilustrações. Na verdade, as letras já são uma espécie de ilustração do pensamento. Tudo bem, uma capa, bem desenhada, sugestiva, junto com o titulo, dá certa personalidade ao livro.

 Acredito que no mundo do espetáculo em que vivemos hoje a ilustração corre o risco de virar uma redundância. Eu particularmente prefiro imaginar o cenário que o autor descreve juntamente com seus personagens, sem precisar da colaboração dos ilustradores. Mas o mercado é quem decide e dá a palavra final.

1000TON e o Novo Personagem


ESTAÇÃO TERESINA - o trem do cotidiano


(Edmar Oliveira)
 
Meu amigo Geraldo Borges editou seu segundo livro pela Nova Aliança, editora do Leonardo Dias que muito vem fazendo pela edição de autores piauienses. É um alento ver tantos escritores tendo a possibilidade de editar seus livros na nação Piauí. Mas vamos ao livro do meu grande amigo.

Estação Teresina, contos e crônicas deliciosas, nos conduz no labirinto de um trem da memória de Geraldo, que, na ficção dos contos ou fazendo a sua realidade nas crônicas, puxa o fio das recordações de quem viveu em Teresina de ontem. Deixa o nosso trem de lembranças esmaecidas desembestar, lembrando histórias que tomam contorno na janela da memória. É que o autor faz o nosso trem parar em cada estação perdida no passado. De banalidades, como na crônica “Aprendendo a andar de bicicleta” (onde ele não deveria dar um freio de contra-pedal na crônica e em nossas aventuras comuns de se estabanar em tombos necessários ao aprendizado daqueles tempos), ou na precisão magistral de “A crônica de uma vida” (que nos faz acreditar que qualquer história comum pode se transformar em um romance inusitado). Histórias de barbeiros, de alfaiates, de briga de galos e canários, de gostosuras culinárias, tudo no contexto da recuperação de memórias que foram perdidas numa cidade que mudou de lugar, ficando sem futuro e perdendo o passado.

É disso que trata o Borges da minha terra: como um costureiro alinhava com os fios da memória as lembranças que não pertencem só a ele, mas a todos nós que vivemos a cidade que não mais existe. Mesmo que Geraldo declare numa de suas crônicas que tirou sua barba para “estar fugindo do espelho do meu passado”, em todo o livro eu o vejo de barba negra ou me recordo desejando uma barba no meu rosto ainda imberbe. Porque todos nós cultivamos uma barba naqueles tempos em que o trem do cotidiano apita lá na curva nos chamando a ver o passado perdido no labirinto de outras ocupações de nossa memória.

É disso que o nosso Borges se ocupa: de refazer em cada estação da lembrança as histórias que existiram numa cidade que não mais existe. Para os conterrâneos, leitura obrigatória. Mas para os que não conheceram a Teresina do título do livro é provável que o trem do cotidiano do passado de cada um possa desviar o trem da estação do título e leva-lo a sua cidade imaginária. Pois, no fundo, o que o Geraldo insiste nas páginas do livro é o cerzir da memória, ela mesma ameaçada pelo esquecimento, como ele revela num prólogo em que cita Buñuel. Nesse sentido cada leitor, independente de por onde trilha o trem de sua memória, pode ser um companheiro da viagem de Geraldo. E um passageiro privilegiado.

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OBS: para adquirir o livro (e outros de escritores piauienses, inclusive os meus) entre no site:

http://www.entrelivroslivraria.com.br/

O VENTO DAS HORAS

 
Nada de novo molha a madrugada
Ela é o que sempre foi

Queremos que o amor perdure
Sobre todas as perdas que sofremos

O tremor do nosso temor
Durou mais de vinte anos de escuridão e medo...

Abra seu coração e deixe entrar o vento das horas

(Climério Ferreira)
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ilustração de Amaral

TUDO MENTIRA


Seu Liberato, 80 anos de idade, cego, bastante doente, me chamou: "Cineso, quero falar com você". Pode falar, pai. "Num tem ninguém por perto?". Não, senhor. "Olhe direito". Já olhei,pai. "Você, que tem estudo, me esclareça: tão dizendo que o homem foi na lua. Tenho pra mim que não foi,não. Pra mim, isso é coisa de cinema. Me diga francamente: foi ou é tudo mentira?" Olhei para o que... restara de seu Liberato, meu pai: um velho em ruínas, com uma dúvida que o consumia: saber se efetivamente o homem chegara à lua. Sem titubear, declarei em tom professoral: Tudo mentira, seu Liba.Não foi, nem poderia ir. Na lua só quem pisa é São Jorge. O velho esboçou um sorriso de vitória e declarou: "Eu já sabia". Poucos dias depois, partiu em paz.

(Cinéas Santos)

o rio de Graça Vilhena

 
O rio de Graça  Vilhena
É o rio de minha aldeia
Nasce de fonte serena
E brilha na lua cheia..
 
Pasto e água de beber
Não falta na   sua bacia
E quando para de chover
Se banha ao sol todo dia.
 
O rio de Graça Vilhena
Banha lhe o corpo de poesia
É um rio que vale a pena
Navegar em sua companhia.

 

Lição, de Carlos Nascimento


domingo, 13 de julho de 2014

MINEIREICH!


MINEIREICH


(Edmar Oliveira) 
Barbosa, o goleiro da seleção de 1950 morreu marcado não pelo orgulho que tinha de ser vice-campeão mundial, mas por ser culpado da maior vergonha nacional de termos perdido do Uruguai em pleno Maracanã inaugurado para a festa. No maior estádio do mundo, à época, acontecia a derrota conhecida por Maracanazo. Nem as cinco vezes que fomos campeões mundiais apagou o trauma e culpa colocada nos ombros de Barbosa, para diminuir o mérito uruguaio e aumentar a nossa derrota.

Após sessenta e quatro anos a Copa volta a ser disputada no Brasil e o Maracanã foi refeito na esperança de sepultarmos a tragédia, ganhando o hexacampeonato dentro de casa. Quando escrevo esta crônica, não sei ainda o que acontecerá no Maracanã entre Alemanha e Argentina. Nós, como ainda não queremos acreditar, caímos nas semifinais no Mineirão. Numa tragédia em que não podemos culpar um Barbosa, mas os onze Barbosas em campo e o Barbosão, que não soube fazer uma formação ou substituições que detivesse o massacre alemão. O Barbosão ficou impactado, como todos nós, com uma quantidade de gols em seis minutos, que mais pareciam ser um repeteco diferente do mesmo gol. Os alemães também não acreditavam na facilidade de penetrar no espaço brasileiro. Todos ficamos sem ação diante de algo que parecia inacreditável. Mas a tragédia do MINEIREICH propiciou o esquecimento do Maracanazo e libertamos a boa alma do generoso Barbosa. Não pela vitória, como queríamos, mas por uma derrota vexatória sem paralelo na história de todas as Copas.

O que teria acontecido naquele 7 a 1? Eu fico estarrecido com os comentaristas de futebol e a velocidade com que mudam de ideia para acompanhar o que se apresenta da caixinha de surpresas do futebol. Comentaristas que antes do jogo concordavam com as alterações propostas pelo técnico, logo após o resultado mudaram os seus argumentos para achar um novo Barbosa. Desta vez está difícil. Houve um apagão em campo, que não foi modificado pelo técnico. E que a nossa seleção era ruim, todos concordamos agora que Inês é morta.

Mas naquela terça-feira fatídica acordamos todos otimistas. Mesmo os que desconfiavam da seleção acreditaram na força da camisa amarela, no hino à capela, na camisa doze da torcida, na vingança de jogar por Neymar (tirado do time por uma entrada desleal do último inimigo vencido), na raça dos nossos guerreiros, que naquele dia finalmente o Fred ia jogar (apesar de que já era considerado o pior centroavante de todas as nossas seleções), entre outras esperanças e ilusões que o futebol nos proporciona. Não contávamos com a astúcia alemã e, como diria Garrincha, não combinamos com os gringos que teríamos que vencer. E a sensação é que tivemos um pesadelo e ainda não jogamos com os alemães. De fato não jogamos. Eles jogaram sozinhos.

Como não sou do ramo, e mesmo me considero um péssimo analista de futebol, prefiro acreditar na magia do futebol, suas alegrias e tristezas. E até compreendo mais as tristezas por ser um bom botafoguense. Mas a magia do futebol é a sua incompreensão, o seu fenômeno que a todos ilude. E força as discursões mais apaixonadas e incompreensíveis. O futebol é fenomenal. Um mesmo time que joga por música pode desarranjar na lógica.  E quando desarranja nada dá certo... A Alemanha jogou nos nossos erros. São melhores, mas podia ser o contrário. Vão dizer que não, teorizar. E aí fica mais fenomenal!

Eu só não sei é quando vai ser superado o Mineireich. Mas o Barbosa do Maracanazo agora descansa em paz!   

Aos meninos do Brasil

(Antônio Amaral, texto e desenho)

não acredito em muita coisa que vem de fora do meu país
nosso jeito não cabe naquele mapa cartesiano
nosso jogo é o do índio funiô nas peladas de pau grande
sou de uma aldeia onde o vencedor da batalha perdeu as calças, as armas e a guerra.
felicidade é jogar bola
placar é redundância

Vamos acabar com esta folga


O negócio aconteceu num café. Tinha uma porção de sujeitos, sentados nesse café, tomando umas e outras. Havia brasileiros, portugueses, franceses, argelinos, alemães, o diabo....

De repente, um alemão forte pra cachorro levantou e gritou que não via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial, motivada pela provocação e logo um turco, tão forte como o alemão, levantou-se de lá e perguntou:

— Isso é comigo?

— Pode ser com você também — respondeu o alemão.

Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma traulitada tão segura que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu que não havia homem ali dentro pra ele. Queimou-se então um português que era maior ainda do que o turco. Queimou-se e não conversou. Partiu para cima do alemão e não teve outra sorte. Levou um murro debaixo dos queixos e caiu sem sentidos.

O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez ver aos presentes que o que dizia era certo. Não havia homem para ele ali naquele café. Levantou-se então um inglês troncudo pra cachorro e também entrou bem. E depois do inglês foi a vez de um francês, depois de um norueguês etc. etc. Até que, lá do canto do café levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de picardia para perguntar, como os outros:

— Isso é comigo?

O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu um sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado do alemão. Parou perto, balançou o corpo e... pimba! O alemão deu-lhe uma porrada na cabeça com tanta força que quase desmonta o brasileiro.

Como, minha senhora? Qual é o fim da história? Pois a história termina aí, madame. Termina aí que é pros brasileiros perderem essa mania de pisar macio e pensar que são mais malandros do que os outros.


(Texto de Stanislaw Ponte Preta)
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(Um texto curto, extraído do livro "O Melhor da Crônica Brasileira - 1", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 71, nos faz recordar o humor de Stanislaw (Sérgio Porto) e pensar na falta que ele nos faz. Pesquisado por Cinéas Santos) 

A VIDA & SEUS ACASOS

 
A vida nos aplica seus golpes
Nos momentos mais inesperados
É preciso que fiquemos atentos
Pois em nada disso temos culpa
O correr dos dias vai montando
Aleatoriamente seus enredos
E a única coisa que podemos fazer
É embarcar na roda gigante do acaso...
Ri nosso o riso e chorar o nosso choro

(Climério Ferreira)
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desenho: Amaral

João Cabral

 
Bola de futebol...é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção 
dando aos pés astúcias de mãos.
 
(João Cabral de Mello Neto)

Brasil, campeão dos campeões


          Se, formos estudar, com carinho, a derrota do Brasil para  Alemanha, concluiremos, que, ainda, temos panos para as mangas. É só dar uma olhada na cronologia da Copa do Mundo e ver que a Alemanha é tri campeã. Mesmo a Alemanha ganhando a Copa chegará apenas ao tetra. Caso seja a Holanda será a primeira vez. Já a Argentina seria tri. Nós somos penta. Claro que gostaríamos de ser hexa, incorporar mais um étimo grego em nossa cultura popular. Não deu. Paciência. Vai para depois.

Quem sabe na distante Rússia. Pois ficou comprovado que temos o costume de perder Copa do Mundo em casa. O raio caiu duas vezes no mesmo lugar. Um viaduto caiu, Neymar caiu. E mesmo não fica bem o anfitrião bater nos convidados. O que eles diriam ao voltar para casa? Como palpiteiro acho que Alemanha vai ganhar a Copa, e os brasileiros vão ficar satisfeitos por ver a Argentina fora do páreo. E a Holanda de novo será mais uma vez vice. Será?

(Geraldo Borges)

Tabatinga

 
Segundo Paulo Tabatinga o cara deu sorte desta vez

No começo foi assim:


Futebol é paixão1
Nelson Rodrigues
Amigos, falemos ainda do Brasil. O triunfo, na Suécia, em 58, foi para nós tão importante como a Primeira Missa. Começava o Brasil. Nós nos inaugurávamos. Tudo o que ficava para trás era o pré-Brasil. E basta comparar. Até 58, o brasileiro não ganhava nem cuspe à distância. O sujeito dormia enrolado na derrota como num cobertor. Ninguém acreditava no Brasil, nem o Brasil acreditava em si mesmo.
E, por isso, eu lhes digo que A Primeira Missa, de Portinari, é inexata. Aqueles índios de biquine, o umbigo à mostra, não deviam estar na tela, ou por outra: — podiam estar, mas de calções, chuteiras e camisa amarela. Lapso de Portinari não pôr o Feola, sem boné e contrito, com aqueles pernões monumentais e aquela barriga tão plástica. O principal papel do escrete de 58 foi o de profeta do grande Brasil.
Para quem soubesse ver nas entrelinhas da vitória, a Jules Rimet anunciava também várias coisas, inclusive — seriamente — o triunfo d’O pagador de promessas. Amigos, só os imbecis não percebem o parentesco de uma coisa e outra: — da Suécia e de Cannes, da Jules Rimet e da Palma de Ouro. É uma relação nítida, taxativa, e eu quase dizia: — é uma cínica relação. O pagador ganhou em Cannes porque o escrete ganhou na Suécia. E digo mais: — o escrete vai ganhar no Chile porque O pagador ganhou no festival.
Antes de 58, o Brasil não tiraria a Palma nem de Madureira. E o que nos dá vontade de cantar o Hino Nacional é o seguinte: — a apoteose do cinema brasileiro, amigos, do nosso humilhadíssimo cinema. Vocês estão lembrados. Um filme patrício era uma vergonha nacional, e insisto: — uma vergonha nacional só comparável à de Canudos. E o sujeito que via um dos nossos celuloides saía neurótico do cinema.
E, de repente, há o estalo rutilante. O Brasil vai a Cannes com um descaro suicida, e para perder, claro, para perder. Eu disse “descaro” e explico: — o cinema brasileiro não podia ganhar. Porque não tem tostão e vive, e sobrevive, na base da cara e da coragem. O cinema brasileiro ainda anda de taioba. E ganhamos. Há 15 minutos, não tínhamos diretores, nem artistas, nem escritores, nada. De repente, aparece tudo, aos borbotões.
É o Brasil. Há, na vida dos povos, um momento de tal euforia que os idiotas somem, os imbecis desaparecem. O próprio Anselmo Duarte. Não era nada, ou por outra: — era um canastrão chapado, um canastrão da cabeça aos sapatos. E, uma noite, Anselmo foi dormir um e acordou outro. Aí está o sortilégio do Brasil: — o canastrão da véspera pode ser o gênio do dia seguinte. Imediatamente os conhecidos, os vizinhos notaram a diferença física. Perguntavam: — “O que é que há contigo?” Para ser honesto, ele teria de responder com modéstia triunfal: — “É o gênio! O gênio!”
De fato, o gênio que venta por todo o Brasil. E é um gênio gratuito e geral, que não se apoia, ou por outra: — que se apoia na cara e coragem de cada um. O que Anselmo gastou com O pagador é uma vergonha. O capital empatado não dá para comprar uma sandália da Elizabeth Taylor na Cleópatra.
Pero Vaz de Caminha diria que, nesta terra, até os paralelepípedos dão flor, até as zebras estão florindo. E outra coisa: — outrora, o que matava o brasileiro era o subdesenvolvimento pessoal. Sim, cada um de nós era, individualmente, um falido do sentimento, um falido da paixão, um falido da esperança. Depois de 58, o país continua subdesenvolvido, ao passo que cada brasileiro, pessoalmente, está investido de uma imensa potencialidade criadora.
Alguém dirá que o Paulo Francis continua amargo. Explica-se: — o conhecido crítico é um analfabeto obsessivo, que precisa ver analfabetos por toda a parte. Mas o próprio Paulo Francis, que não passou d’O conde de Monte Cristo, não escreve, não tem uma coluna? É outro milagre do Brasil. Hoje em dia, qualquer jumento nosso tem um charme de puro-sangue.
Mas estejam certos. O pagador de promessas é o profeta do bicampeonato.
O Globo, 25/5/1962
(1) Título sugerido pela edição do livro Brasil em campo (Nova Fronteira, 2012). A crônica foi publicada originalmente na coluna “Futebol é paixão” sem título. (N.E.)
 

 
 

GERVÁSIO


Transcrevo, abaixo, texto publicado na página oficial do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, protagonista na luta pela democratização da comunicação. Na ilustração, uma das inúmeras formações do PiG (Partido da Imprensa Golpista) Futebol Clube, eliminado no começo da Copa, após vergonhosa atuação! (Gervásio)
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 "A grande vergonha do Brasil nesta Copa do Mundo foi o papel jogado pela mídia. Mentir...am para todo o planeta, venderam o caos sobre um evento que tem sido considerado o melhor de toda a história.
Caos aéreo, trânsito impeditivo, rebelião nas ruas, violência contra turistas, surto de dengue, estádios incompletos, tudo isso foi apregoado pela mídia familiar brasileira e reverberado pela mídia de fora. Fora que nos preparativos ajudaram a confundir a opinião pública brasileira, misturando financiamento com orçamento, investimento público com privado.
Deram a entender falsamente que os recursos investidos em uma Copa do Mundo seriam suficientes para resolver todos os problemas da educação e da saúde pública brasileira.
Com a chegada de correspondentes estrangeiros ao país, e com o bom funcionamento do evento, a mentira desabou aos olhos de todos. Uma vergonha. Tudo feito para criar uma expectativa negativa sobre o país, para estimular o antigo complexo de vira-latas.
Um momento que serve de aprendizado para as pessoas honestas e de bem do país. A grande mídia ser desmascarada pela vida, pelos fatos, mostrando claramente a que e a quem servem. Mais uma clara demonstração de que a democratização da mídia é uma exigência da modernidade".