domingo, 27 de julho de 2014

NESTE JULHO COMEÇOU AGOSTO


(Edmar Oliveira)


Nesse julho começou agosto, que aqui pra nós sempre teve uma carga de desgostos desde o suicídio de Vargas e a comoção nacional. Mas nesse julho ainda estávamos vivendo um resto de copa do mundo quando caiu sobre nós o desastre da goleada alemã. Neste fatídico dia nos deixava Plínio de Arruda Sampaio carregando os sonhos de um socialismo por quem tanto lutou e morreu derrotado tentando recriar um novo partido em que coubessem suas utopias. Senti tristeza pela luta de Plínio e pela sua morte.

No jogo final da copa morria Nadine Gordimer, ativista e escritora sul-africana ganhadora do Prêmio Nobel de 1991. O esporte mesmo perdia Di Stéfano um dia antes de Plínio e o controverso árbitro Armando Marques, três dias depois da final. Estava de mau agouro uma copa no Brasil acabando no dia 13. As notas tristes de blues do albino Johnny Winter nos deixava no dezessete. O mês já era um agosto desesperado pra quem era vivo em tempos de Woodstock.
Téo e Ubaldo: Zecamunista no meio

No dia seguinte foi a vez do desaparecimento do inventor do Sargento Getúlio. Ubaldo ficou tão marcado em mim nesse romance de 1971, que mesmo “Viva o povo brasileiro” ou outra obra posterior (todas imensas de boas) não conseguiram calar o monólogo do sargento que tinha a alma impressa nas páginas daquele romance. Além disso, João Ubaldo tinha apresentado ao meu amigo Téo (que me provou com uma fotografia que publico aqui) o seu personagem Zecamunista. Como ele, outros personagens do Ubaldo que têm vida real foram forçados a viver as peripécias inventadas pelo escritor. No Bar de Espanha, na Ilha de Itaparica, personagens reais foram parar nas suas crônicas e hoje juram terem vivido as invencionices do Ubaldo. E os botecos do Leblon ficaram mais tristes e no domingo não tem mais a crônica, que eu lia nem que fosse pra discordar e discutir com meus amigos da política. Que eu sempre defendi que a arte não se marca pela ideologia, mas pela estética e a ética. E o Ubaldo desaparece assim deixando um vazio num copo do boteco do Leblon, onde ele bebia um whisky cowboy escondido com a cumplicidade do garçom.

Mas que esse julho era agosto no outro dia seguinte foi provado no silêncio do Rubem Alves. Psicanalista, educador e escritor, fino cronista que tinha a paciência de nos ensinar temas espinhosos como filosofia e ciência. Toda a nossa geração de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas bebemos nos seus escritos. E agora Rubem está morto. Logo ele que escreveu tão bem sobre a morte (a crônica está publicada nesta edição).
desenho de 1000TON

No dia 23 encantou-se a Pedra do Reino. Quem melhor conhecia a alma nordestina. Quem nos representava nas nossas contradições. Deitado no saguão dos aeroportos (tinha medo de avião, deitava no chão pra relaxar, e ficava bravo se ouvisse a palavra inglesa hall para nomear seu saguão. Até tolerava vestíbulo, hall nunca), ou dando aulas que eram verdadeiros espetáculos, Suassuna tinha o porte dos nobres nordestinos até no vozeirão. Escreveu um clássico do teatro brasileiro, reverenciado pela Barbara Heliodora (o que não é pouca coisa). O “Auto da Compadecida” é um texto aparentemente ingênuo, como às vezes são os nordestinos, mas consegue dissecar a nossa alma, naquilo que nos constitui humano, que, como bem diz Rubem Alves, não se pode explicar pela biologia. Ariano Suassuna fez do Romance da Pedra do Reino a constituição dos valores nordestinos marcados pela herança oral da península ibérica e a guerra dos cristãos com os mouros. Eu mesmo, menino no interior do Piauí e ouvindo as histórias da minha avó, achava que os mouros moravam no Maranhão e vinham atravessando o rio Parnaíba para roubar nossas princesas. Só muito depois encontrei em Ariano o sossego de um sebastianismo que minha alma não entendia. Mas eu tenho medo que em vez de esperar a volta de D. Sebastião, o cavaleiro perdido na África, passe a ficar esperando D. Suassuna, o cavaleiro do sertão. É muito triste perder o velho abusado de terno de linho claro.

Nesse julho começou agosto e muitos bons nos deixaram. A bruxa tá tão solta neste julho meio agosto que aviões estão caindo às pencas. Sem falar que a banalização do mal massacra cruelmente os palestinos também neste julho...    
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desenho: Suassuna por 1000TON 

  

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