domingo, 26 de junho de 2016

DO PASSADO E DO FUTURO



 
Carro autodirigível, impressora 3D, painel solar, aplicativo e uma velha fotografia de papel.


Recebi um e-mail de um amigo com algo assustador. Falava que teremos em breve a 4ª Revolução Industrial e alertava para que a nova geração se preparasse para escolher profissões para o futuro.

Primeiro vinha uma constatação, facilmente entendida, de que a Kodak, em 1998, tinha 170.000 funcionários e comercializava cerca de 85% do papel fotográfico do planeta. Essa próspera empresa, três anos depois (no começo do século XXI), requereu falência e extinguiu várias profissões do ramo fotográfico após a popularização da fotografia digital. Ela, a digital, foi inventada em 1975 e vinha claudicando pela deficiência de pixels, que quando superada destronou a poderosa indústria fotográfica.

Alerta então, no que chama de 4ª Revolução, para ao crescimento exponencial da energia solar, que deixará obsoleta – por ser mais cara – a energia das hidrelétricas, as usinas atômicas e até mesmo os arremedos de cata-ventos da energia eólica. Quem viver verá.

Os aplicativos para smartphones, nas áreas do direito e medicina, deixará sem emprego advogados, enfermeiros e médicos generalistas. Nessas profissões só os super-especialistas sobreviverão. E atesta que já há aplicativos para saúde e para consultas em direito básico que erram muito menos que a consulta feita por humanos. Estarrecedor. Mas outras profissões, hoje essenciais, também serão extintas (arquitetura básica, engenharia de cálculo, circuito elétrico entre outras).

A indústria automobilística entrará em colapso com a expansão dos carros elétricos e auto dirigíveis. E estes carros serão alugados em locadoras, o que diminuirá os engarrafamentos de São Paulo e do centro do Rio (também os de meio dia em Teresina). Ufa! Você pegará um carro num ponto e entregará noutro (como já é realidade com as bicicletas). Decreta mesmo, para minha alegria, que os enormes estacionamentos virarão parques para diversões e piqueniques. E os carros auto dirigíveis serão tão seguros que os profissionais das seguradoras perderão o emprego. Não deixei de sorrir da desgraça do meu corretor que todo ano me cobra uma baba para que eu não perca o carro.

As impressoras 3D farão objetos do dia-a-dia de uso exclusivo: sapatos, camisetas, calças, vestidos. Além de peças de reposição de vários objetos. Imaginem a revolução. Os estilistas venderão programas, assim como a indústria de objetos para casa e escritório. Dá pra imaginar?

No fim danei a ri do e-mail do meu amigo. Hoje as redes sociais e os aplicativos de comunicação já deixaram obsoleto o velho e-mail. Pouca gente ainda usa. E esse meu amigo o usou para falar do futuro com uma invenção já obsoleta. Quiá, quá, quá!

Ri também porque fui pegar minha caixa de guardados das velhas fotografias reveladas em papel. Tinha até as belas fotos em preto e branco. E permanecem aqui comigo. Essas que a gente deleta não tenho muitas não. Elas vão pras redes sociais e se perdem nas nuvens e você fica sem passado. Não faça um álbum em fotografia de papel para lembrar do seu filho, que nasceu agora, pra descobrir no futuro que as fotos do menino se desmancharam na nuvem. Vou até postar minhas fotos de papel, escaneadas, nas redes sociais. Misturar meu passado com o presente. No futuro não estarei mais aqui...

(Edmar Oliveira) 








Jota A: imigração







EU


Sou das rodas e da feira
da tapioca e beiju
da lata d'água, peneira
nada mais, além de tu
e nem aquém

Sou loiceira
no barro, moldando a vida
farinha de mandioca
na oca, é minha comida

Entendo de linha torta
e de fazer despedida
portanto, entendo de asa
assim como de voar
- voar é voltar pra casa
que não se sabe onde está
mas ir, faz parte da ida
assim como o faz, ficar

(Socorro Lira, em "A pena secreta da asa", UK'A Editorial, 2015, SP)
desenho: Gabriel Archanjo

Do discurso




(Geraldo Borges)

            Minha vontade era aprender a falar em publico. Comecei o meu aprendizado muito cedo, nas festas de aniversario. Era péssimo. Depois coloquei pedras na boa a maneira de Demostenes, um aprendiz de orador, que se saiu bem. Comigo não deu certo. Ele era gago.

Folheei os alfarrábios de Rui Barbosa. Li Orações aos Moços. Fiquei sabendo que ele era o Águia de Haia. Voava alto demais. Sabia falar do alto da sua sinagoga.  Caso discurso valesse voto, com certeza, teria ganhado na sua eleição para presidente da república. Nada aprendi com Rui: a não ser a máxima de que um dia o cidadão brasileiro iria sentir vergonha de ser honesto.

Dei-me ao trabalho de ler os clássicos antigos, coisa que hoje raramente se faz, e reli Catão que durante as Guerras Púnicas dizia: “ Delenda est Cartago” no fim de todos os seus discursos. E também li Marcos Túlio Cícero, dando ênfase a sua celebre frase: “Ate quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?”

Ouvi os discursos de Fidel Castro, um exagero de retórica. O barbudo falava demais, por todos os poros, principalmente pela barba e pela fumaça do charuto.

Já os discursos de Jânio Quadros tinham apena bigode. Gaiola com ratos presos. Muitos gestos histriônicos.

Che Guevara, esse eu não me lembro de seus discursos, recordo-me apenas do som dos disparos de seu fuzil, e dos seus ruídos asmáticos.

 Também ouvi Dom Avelar eloquente e cardinalício do alto da marquise do cine Rex, falando para o seu rebanho de piauiense. O discurso religioso tem outro tom. As pessoas o escutam, principalmente, quando o pastor tem carisma. 

            Cada vez o meu aprendizado ficava mais difícil. Chegava a ouvir ate mesmo os discursos do Carlos Said o que não era verdadeiramente um discurso, mas um desabafo esportivo, que de certo modo enfraqueceu suas cordas vocais, que eram de aço.

            Abeberei-me no estudo de Shakespeare. Principalmente no discurso de Marco Antônio nos funerais de Cesar. “O mal que os homens fazem sobrevive-lhes, mas, o bem que o praticam, é sepultado com os seus próprios ossos, que assim seja com Cesar”. O discurso da Marcos Antônio era uma armadilha.

            Estava desistindo de ser um orador; comecei a desvalorizar o discurso; esta peça retórica pela qual os políticos enganam os ingênuos eleitores.

Nessa busca de aprender a falar em publico um dia presenciei o discurso de um camelô, no seu ponto comercial, na praça do Mercado Velho. Ele chegou, abriu a sua mala tirou uma cobra e mais outros instrumentos de trabalho. O povo começou a se aproximar, em circulo. A platéia estava formada. Ele abriu o verbo. E começou a vender o seu peixe para o nosso povo tão mal informado. Para tal camelô chegar a deputado bastava um partido e um bom patrocinador. Se ele tem estudo, isto é o de menos. Sabe discursar. E pronto.

Desisto de aprender a discursar. Mas tenho certeza, a essa altura, se subisse ao palco, representando um parlamentar, conseguiria me sair bem, no seu papel, até mesmo porque ninguém se dignifica a prestar atenção no que eles estão falando. Por isso mesmo reafirmo a minha desilusão com o discurso. Prefiro mergulhar no silencio da meditação e da reflexão, e evitar o máximo possível o alarido das rãs coaxando. Principalmente agora que fiquei sabendo que o discurso é uma coisa abominável, pela crônica de Paulo Mendes Campos. ”Discurso em geral, mas, notadamente, os empolados e compridos.”

Mosca na sopa de 1000TON








HISTÓRIAS DE UM CONTADOR DE HISTÓRIAS






Chamado para as comemorações de aniversário do CAPS Torquato Neto, convidei o produtor cultural e cineasta Marcus Fernando que está terminando de co-dirigir um filme sobre o Anjo Torto. Achamos que os usuários e técnicos do CAPS podiam ouvir mais sobre seu patrono. A fala do Marquinhos foi interessante, inclusive pra mim, e ele ofereceu o filme, quando pronto, para uma sessão no CAPS.

E eu me descubro como um guerreiro quixotesco destruidor dos hospícios onde Torquato esteve internado: na tentativa do Engenho de Dentro no Rio e no efetivo desmonte do Sanatório Meduna em Teresina. Torquato, que foi um amigo de juventude e me fez seu álter ego no “Terror da Vermelha” (filme em super-8 de 1972) foi hóspede dos hospícios que coube a mim lutar contra as masmorras manicomiais. Sobre o primeiro escrevi “Ouvindo Vozes” (casa ed. Vieira & Lent, 2009, Rio) e sobre o segundo escrevi “von Meduna” (Oficina da Palavra, 2011, Teresina).

Algumas historinhas de como Torquato enfrentou por dentro o monstro manicomial de então:

1. Internado numa enfermaria tradicional do Engenho de Dentro e submetido aos “sossega-leões” da época, foge após poucos dias de internação. No dia seguinte encontra com o grande médico antimanicomial da época – Dr. Oswaldo dos Santos, figura a quem devemos um reconhecimento histórico e criador da Comunidade Terapêutica do Engenho de Dentro – que faz um bilhete solicitando que Torquato fosse internado desta vez em sua comunidade.

2. Mesmo nessa comunidade Torquato aponta as contradições manicomiais – nas quais a reforma iria combater muito lá na frente: “Aqui são todos negros, marginais, das classes C e D com quem vou me haver” (a citação é de memória e não corresponde ao original que não me dei ao trabalho de conferir) – com essa afirmação ele colocava a doença “entre parênteses” (com fez Basaglia) para denunciar a internação das camadas excluídas da população. Outra dele citado também de memória: “São loucos esses psiquiatras, não deixam a gente comer de garfo e faca, mas dão gilete pra gente fazer a barba”. Ou ainda checando o próprio médico transformador da época (porque todos nós temos contradições): “amanhã vou ter uma conversa séria com Dr. Osvaldo”.

3. No Meduna, tive a oportunidade de conferir o ensaio fotográfico que Antônio Noronha fez com Torquato para a revista Navelouca (número único, editada após a morte de Torquato por Wally Salomão). Numa internação voluntária vi um Torquato muito à vontade com os loucos, que carregavam sua máquina de escrever, mesinha e cadeira para onde ele queria ir (mudava de lugar para evitar o sol escaldante do Piauí, procurando a amenidade de uma sombra, que se deslocava com o movimento do sol). Diria mesmo, que naquele longínquo 1972 parecia estar assistindo um grupo terapêutico literário que tive a ousadia de cometer depois nas oficinas do Espaço Aberto ao Tempo.

Interessante como não tinha me dado conta de coisas tão coincidentes e tão evidentes que saltam aos olhos. Mas nossa mente é assim mesmo, o óbvio – às vezes – está muito oculto e custamos a perceber. Aqui lembro que só muito mais tarde, já na minha prática médica, pude entender o que o Torquato queria dizer quando o mato no filme de 1972. O personagem assassinando o autor – o que parece transparente agora – me foi incompreensível, talvez porque inaceitável, por muito tempo.
Por último, digo que a festa serviu mais a mim que aos seus organizadores. E talvez um fato tenha desencadeado essas associações.

Já que o Marcus Fernando iria falar do patrono, a mim coube apenas falar do nascimento daquele CAPS. Num certo momento lembrei que o nome do CAPS tinha surgido na versão que apresentei. Fui contestado veementemente porque vários técnicos daquela época tinham outra versão para o surgimento do nome. Acho que as versões rodeiam o fato, cada um com as razões de sua história.

Mas o certo é que não foi por um passe de mágica o surgimento desse CAPS na comunidade. Ele é um prolongamento de um Hospital Dia, que já tinha se esgotado, enquanto modelo, mas tinha muitas resistências dos técnicos antigos em saírem do hospício. Foi preciso mesmo tirar alguns, o que foi muito doloroso. Depois, se havia consenso com a estrutura da Coordenação de ampliarem-se os CAPS na cidade, o gestor maior não quer fazer uma mudança apenas de lugar (na verdade ele não entende a importância que tinha essa mudança de lugar). Foi necessária uma operação casada. Tínhamos que receber alguns pacientes da Casa Dr. Eiras de Paracambi para uma Casa de Passagem, antes deles irem para as Residências Terapêuticas em comunidade. Blefamos mais uma vez: dissemos que tinha o espaço, desde que o CAPS saísse – pois colocaríamos os pacientes de Paracambi na casa onde funcionava o Hospital Dia. E esse se transformaria em CAPS na comunidade. Foi feito a duras penas.

Falamos aqui “blefamos mais uma vez” porque o nosso Pronto Socorro Psiquiátrico vinha se deteriorando absurdamente e insistíamos para uma saída do PSP para um Hospital Geral (pensamos no Hospital Salgado Filho o que se realizou em Del Castilho). Houve um incêndio no PSP e tivemos que retirar em emergência os pacientes internados. Foi uma operação complicada que entrou noite a dentro, mas só um paciente evadiu. Transferimos todos os outros para as enfermarias. Ficamos sem Pronto Socorro e o do Engenho de Dentro era o maior da cidade. Deu problemas. Vieram correndo tentar consertar o que não fizeram em vários anos. Insistimos que podíamos reformar com menor custo uma ala do PAM Rodolfo Rocco em Del Castilho que já conhecíamos. Falar em menor custo é convencer gestor. Depois espalharam que eu tinha mandado tocar fogo no antigo Pronto Socorro. Não foi verdade, mas não me incomodei com a versão. Tinha o desejo grande de sair e este foi realizado. Essas histórias estão no meu livro “Ouvindo Vozes”.

Creio que se não tivesse escrito esses livros a história da nossa gestão já estaria esquecida e as versões construídas tomado o lugar do fato. Não digo que o que conto é o fato, mas uma versão de como me aproximei do fato. E todas são assim...

PS1. Manoel Olavo Teixeira tem um trabalho acadêmico sobre Oswaldo dos Santos que, creio, ainda não foi publicado em livro.

PS2. Para um aprofundamento da obra de Torquato Neto: Torquatália em dois vols. de Paulo Roberto Pires, Rocco, edição esgotada.
Tem "A carne seca é servida" de Kenard Kruel pela Zoadíca, saindo em nova edição.
E a polêmica biografia de Tonhinho Vaz em nova edição também.
"Terror da Vermelha" pode ser encontrado em partes no You Tube. A qualidade é bem ruim.
O filme de que falou o Marcus deve estar pronto em abril, maio de 2017.

(Edmar Oliveira)