domingo, 17 de setembro de 2017

Cap I tx

O calor do meio dia naquela trincheira era insuportável.
A farda ficava molhada de suor que lhe tirava o
claro cáqui para justo parecer a cor escura do inimigo. As
gotas de suor da testa escorriam para os olhos lacrimejarem
uma visão borrada do horizonte. Horizonte já distorcido
pelo calor, que evaporava um resto de umidade da terra
ressecada da caatinga após uma chuva orvalhada. De dia
o inimigo não dava sinal de vida, o silêncio era quebrado
pelo voo da juriti ou o canto da rolinha naquela cantiga
borbulhante de um “fogo-pagô”. Os galhos da vegetação
esturricada não se mexiam por falta de um vento que
diminuísse aquele calorão. Isso todos os dias. Mas
exatamente nesse tinha chovido de manhã e o céu nublado
apresentava um mormaço que esquentava mais que o sol.

A ordem era não conversar com o colega de trincheira,
porque tinha que aumentar a voz e revelar-se ao inimigo.
Mas cadê inimigo que não via e a vontade o fazia mirar
a arma numa rolinha, com o dedo coçando para abater a
penosa, quando a barriga começava a roncar. Já era hora da
Ceiça trazer o “de comer” que a fome já esfriava o suor que
escorria na barriga. Ceiça assoviava pela retaguarda no mais
tardar onze e meia. Pelo horário da fome já marcava mais
de meio dia. Bem acabou de pensar, escutou o assobio que
sabia ser de Ceiça e começou a olhar a retaguarda sem deixar
de reparar na possibilidade de o inimigo sair da folhagem
ressecada. Ela vinha abaixada, quase engatinhando entre os
gravetos secos da vegetação rasteira. Estava grávida, mas
a barriga inda não atrapalhava os movimentos de gatinho.

Teodoro distinguiu a roupa da cor de barro, que se confundia
com a terra recém-molhada. Percebeu Ceiça misturada na
paisagem, mas já se fazendo notar. Ela chegava guiada
pelo mandacaru, quase em forma de cruz, que marcava o
lugar na trincheira onde Teodoro ficava, desde as dez horas,
esperando a boia. As rolinhas e juritis fizeram um alvoroço
na aproximação de Ceiça. Ela se aproximou rápido, beijou a
testa suada do marido e entregou o “de comer” num prato de
barro amarrado com o pano de prato. Teodoro desamarrou
o nó do pano e desvirou o prato metendo a mão e pegando
uma coxa da galinha, sem nem esperar a colher que Ceiça
procurava no embornal. Ela já sabia que tinha de falar
baixinho e quase segredou:

“Ontem o povo correu da missa do galo, quando
começou o tiroteio”.

Teodoro, só naquele momento, percebeu que estava
passando o Natal dentro daquela trincheira e jamais se
esqueceria da data que aconteceu em 1925. E como sempre
acontecia no Natal, chovia na manhã e o céu ficava encoberto.
Todo natal amanhecia assim, não sabia como não tinha
lembrado a data até a Ceiça dizer. À noite os revoltosos
atiraram muito na escuridão e ele tinha respondido umas
tantas vezes, não muito mais de dez, segundo contou pela
manhã os cartuchos gastos de sua arma. Lá pelas nove horas,
no respingo de uma chuva rala, engatinhou até onde estivera
o inimigo à noite. Sabia que eles não estavam mais ali, muito
antes da barra do dia os tiros pararam do lado dos revoltosos
e já tinha dado dois tiros sem escutar resposta. Procurou e
encontrou uma boa quantidade de cartuchos das armas dos
revoltosos. Ceiça perguntou pelos cartuchos e Teodoro fez um
movimento de lábio para indicar onde estavam os cartuchos
no fundo da trincheira. Ceiça saltou pra dentro e encontrou
uma boa quantidade de cartuchos usados que guardava,
como se tivesse encontrado um tesouro, no matulão. Dentre
eles tinha três balas intactas que Teodoro comparou com a
dele, para dizer que era do inimigo. Teodoro mastigava uma
cabeça do osso da coxa daquela saborosa galinha e já tinha
comido todo o feijão e arroz do prato fundo – quase uma
travessa – trazido por Ceiça.

“Quanto acha que o Geraldo vai dar nesses cartuchos”?
– perguntou à mulher, mas ressaltando antes de esperar a
resposta – “Tem de valorizar, são os tiros do Natal”.


Cap III


domingo, 3 de setembro de 2017

O TECIDO DA HISTÓRIA



Leo Almeida


De que tecido é composta a História? Qual a matéria que forma os ídolos, os grandes eventos, as lendas? Enfim, de quantas pequenas e grandes mentiras é feita a verdade da História?  Em “Sitiado” (Editora Chiado, 2017, 210 p.), o escritor Edmar Oliveira toca nessas questões com grande elegância, criatividade e humor. Seu romance constitui-se de uma urdidura ficcional que permeia os fatos históricos que marcam a passagem, pelo Nordeste, da Coluna Prestes. Na verdade, o romance focaliza o cerco empreendido pelos colunistas à capital do Piauí, Teresina, cidade onde formou-se o escritor. A estratégia narrativa privilegia os diversos pontos de vistas dos personagens/testemunhas do evento histórico, pondo em destaque aqueles que sempre são meros coadjuvantes, pequenas engrenagens do carro da História. O olhar quixotesco de Teodoro, um pequeno proletário cheio de sonhos e fantasias, que, enviesado, confunde as histórias dos Pares de França, do clássico texto de cordel, com a situação histórica da qual participa ativamente. É pelo olhar de Teodoro que o autor se permite desarmar a versão oficial, abrindo possibilidades outras para a explicação de determinados eventos históricos. Nesse sentido, guardadas as devidas proporções, “Sitiado” é um texto irmão de “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro. O intertexto, ferramenta fundamental na construção de “Sitiado”, configura-se na adoção, por analogia, das narrativas de cordel de autoria de Leandro Gomes de Barros, especialmente a história de Carlos Magno e “A história da donzela Teodora”, de onde o autor extrai as epígrafes de cada capítulo. As narrativas populares encontram eco na visão de mundo do matuto Teodoro e tornam a leitura de “Sitiado” num pequeno jogo de aproximações. Depreende-se dessa leitura que, no fim das contas, não existem fatos, mas versões de fatos. A História, podemos entender, é uma espécie de literatura de ficção que se quer absolutamente verdadeira, sem poder sê-la, pois a visão do historiador é sempre um recorte da realidade, assim como a versão das testemunhas trazem sempre seu ponto de vista. Se para Teodoro, o cidadão piauiense, suas leituras demandam o intertexto de cordel, outro personagem importante na narrativa, o imigrante de origem libanesa Abdon, incorpora os contos/causos do popular personagem turco Nasrudin. Em contraponto às diversas situações por que se depara o personagem, as narrativas do quase folclórico Nasrudin costuram humor e crítica refinados. Abdon, assim como Teodoro, ingressa na Coluna Prestes cheio de sonhos. O primeiro, pragmaticamente, vê-se colunista como forma de resolver um problema financeiro com o patrão. Julgando-se explorado, acredita que a Coluna trará um mundo melhor e aposta nessa possibilidade, ingressando em suas fileiras. Teodoro por sua vez, contaminado pelas fantasias cavaleirescas e pela sincera intenção de mudar sua situação de vida, abandona a farda e segue ao encontro de seu Carlos Magno. Esses dois personagens poderiam sustentar, sozinhos, toda a trama, e o fazem com coerência e substância a partir da construção literária empreendida por Edmar Oliveira que, não se contentando com isso, ainda nos traz a figura emblemática do Lenine do Maranhão, figura interessantíssima que, por si só, seria capaz de compor uma grande história. O personagem, baseado numa figura histórica real, atravessa a narrativa como um relâmpago. De revolucionário político torna-se ao final da vida um místico, cumprindo uma trajetória no mínimo peculiar de alguém que parte de Lênin para tornar-se Antonio Conselheiro. Curioso lembrar que sua vida nos remete à lembrança do processo de mudança em Tolstói que também, na velhice, abandona sua vida mundana e foge para a morte em seu misticismo. A galeria de personagens nos traz a figura de Geraldo, articulador político silencioso. Os personagens femininos são construções que ideologicamente se afastam: por um lado, Donana, mulher empreendedora e romântica, paradoxo que se resolve com a sua decisão de mudar de cidade por sugestão de um novo amor. Do outro lado, Ceiça, humilde e simplória. A primeira, dona de uma pensão, apaixonada pelo libanês Abdon, persegue seu desejo. A segunda, parideira, submissa ao marido, Teodoro, segue sua sina de parir filhos e sofrer ao lado do marido. Ceiça tem um quê de Sinhá Vitória, mas não tem a garra do personagem de Graciliano.

Os personagens Históricos se apresentam na narrativa a partir dos pontos de vistas dos personagens construídos por Edmar Oliveira. Assim, Juarez Távora surge como o prisioneiro garboso e poderoso que se entrega às forças legalistas e Prestes, como um fantasma, atravessa o texto sempre em fuga. “Sitiado” é uma grande coluna arrastando-se em nossas retinas, levando de roldão as gentes que fazem a História, mesmo quando dela não participam.
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SITIADO teve pré-lançamento na Bienal do Rio, sexta-feira.
Lançamento no Rio: Livraria Folha Seca, Rua do Ouvidor, Beco do Samba, dia 23 de setembro, sábado, das 14 as 16 h.
Aguardando data para lançamento em Teresina, Brasília e Recife.

Gervásio