Leo Almeida
De que tecido é
composta a História? Qual a matéria que forma os ídolos, os grandes eventos, as
lendas? Enfim, de quantas pequenas e grandes mentiras é feita a verdade da
História? Em “Sitiado” (Editora Chiado,
2017, 210 p.), o escritor Edmar Oliveira toca nessas questões com grande
elegância, criatividade e humor. Seu romance constitui-se de uma urdidura
ficcional que permeia os fatos históricos que marcam a passagem, pelo Nordeste,
da Coluna Prestes. Na verdade, o romance focaliza o cerco empreendido pelos
colunistas à capital do Piauí, Teresina, cidade onde formou-se o escritor. A
estratégia narrativa privilegia os diversos pontos de vistas dos personagens/testemunhas
do evento histórico, pondo em destaque aqueles que sempre são meros
coadjuvantes, pequenas engrenagens do carro da História. O olhar quixotesco de
Teodoro, um pequeno proletário cheio de sonhos e fantasias, que, enviesado,
confunde as histórias dos Pares de França, do clássico texto de cordel, com a
situação histórica da qual participa ativamente. É pelo olhar de Teodoro que o
autor se permite desarmar a versão oficial, abrindo possibilidades outras para
a explicação de determinados eventos históricos. Nesse sentido, guardadas as
devidas proporções, “Sitiado” é um texto irmão de “Viva o povo brasileiro”, de
João Ubaldo Ribeiro. O intertexto, ferramenta fundamental na construção de
“Sitiado”, configura-se na adoção, por analogia, das narrativas de cordel de
autoria de Leandro Gomes de Barros, especialmente a história de Carlos Magno e
“A história da donzela Teodora”, de onde o autor extrai as epígrafes de cada
capítulo. As narrativas populares encontram eco na visão de mundo do matuto
Teodoro e tornam a leitura de “Sitiado” num pequeno jogo de aproximações.
Depreende-se dessa leitura que, no fim das contas, não existem fatos, mas
versões de fatos. A História, podemos entender, é uma espécie de literatura de
ficção que se quer absolutamente verdadeira, sem poder sê-la, pois a visão do
historiador é sempre um recorte da realidade, assim como a versão das
testemunhas trazem sempre seu ponto de vista. Se para Teodoro, o cidadão
piauiense, suas leituras demandam o intertexto de cordel, outro personagem
importante na narrativa, o imigrante de origem libanesa Abdon, incorpora os
contos/causos do popular personagem turco Nasrudin. Em contraponto às diversas
situações por que se depara o personagem, as narrativas do quase folclórico
Nasrudin costuram humor e crítica refinados. Abdon, assim como Teodoro,
ingressa na Coluna Prestes cheio de sonhos. O primeiro, pragmaticamente, vê-se
colunista como forma de resolver um problema financeiro com o patrão.
Julgando-se explorado, acredita que a Coluna trará um mundo melhor e aposta
nessa possibilidade, ingressando em suas fileiras. Teodoro por sua vez,
contaminado pelas fantasias cavaleirescas e pela sincera intenção de mudar sua
situação de vida, abandona a farda e segue ao encontro de seu Carlos Magno.
Esses dois personagens poderiam sustentar, sozinhos, toda a trama, e o fazem
com coerência e substância a partir da construção literária empreendida por
Edmar Oliveira que, não se contentando com isso, ainda nos traz a figura
emblemática do Lenine do Maranhão, figura interessantíssima que, por si só,
seria capaz de compor uma grande história. O personagem, baseado numa figura
histórica real, atravessa a narrativa como um relâmpago. De revolucionário
político torna-se ao final da vida um místico, cumprindo uma trajetória no
mínimo peculiar de alguém que parte de Lênin para tornar-se Antonio
Conselheiro. Curioso lembrar que sua vida nos remete à lembrança do processo de
mudança em Tolstói que também, na velhice, abandona sua vida mundana e foge
para a morte em seu misticismo. A galeria de personagens nos traz a figura de
Geraldo, articulador político silencioso. Os personagens femininos são
construções que ideologicamente se afastam: por um lado, Donana, mulher
empreendedora e romântica, paradoxo que se resolve com a sua decisão de mudar
de cidade por sugestão de um novo amor. Do outro lado, Ceiça, humilde e
simplória. A primeira, dona de uma pensão, apaixonada pelo libanês Abdon,
persegue seu desejo. A segunda, parideira, submissa ao marido, Teodoro, segue
sua sina de parir filhos e sofrer ao lado do marido. Ceiça tem um quê de Sinhá
Vitória, mas não tem a garra do personagem de Graciliano.
Os personagens
Históricos se apresentam na narrativa a partir dos pontos de vistas dos
personagens construídos por Edmar Oliveira. Assim, Juarez Távora surge como o
prisioneiro garboso e poderoso que se entrega às forças legalistas e Prestes,
como um fantasma, atravessa o texto sempre em fuga. “Sitiado” é uma grande
coluna arrastando-se em nossas retinas, levando de roldão as gentes que fazem a
História, mesmo quando dela não participam.
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SITIADO teve pré-lançamento na Bienal do Rio, sexta-feira.
Lançamento no Rio: Livraria Folha Seca, Rua do Ouvidor, Beco do Samba, dia 23 de setembro, sábado, das 14 as 16 h.
Aguardando data para lançamento em Teresina, Brasília e Recife.
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