O calor do meio dia naquela trincheira era insuportável.
A farda ficava molhada de suor que lhe tirava o
claro cáqui para justo parecer a cor escura do inimigo. As
gotas de suor da testa escorriam para os olhos lacrimejarem
uma visão borrada do horizonte. Horizonte já distorcido
pelo calor, que evaporava um resto de umidade da terra
ressecada da caatinga após uma chuva orvalhada. De dia
o inimigo não dava sinal de vida, o silêncio era quebrado
pelo voo da juriti ou o canto da rolinha naquela cantiga
borbulhante de um “fogo-pagô”. Os galhos da vegetação
esturricada não se mexiam por falta de um vento que
diminuísse aquele calorão. Isso todos os dias. Mas
exatamente nesse tinha chovido de manhã e o céu nublado
apresentava um mormaço que esquentava mais que o sol.
A ordem era não conversar com o colega de trincheira,
porque tinha que aumentar a voz e revelar-se ao inimigo.
Mas cadê inimigo que não via e a vontade o fazia mirar
a arma numa rolinha, com o dedo coçando para abater a
penosa, quando a barriga começava a roncar. Já era hora da
Ceiça trazer o “de comer” que a fome já esfriava o suor que
escorria na barriga. Ceiça assoviava pela retaguarda no mais
tardar onze e meia. Pelo horário da fome já marcava mais
de meio dia. Bem acabou de pensar, escutou o assobio que
sabia ser de Ceiça e começou a olhar a retaguarda sem deixar
de reparar na possibilidade de o inimigo sair da folhagem
ressecada. Ela vinha abaixada, quase engatinhando entre os
gravetos secos da vegetação rasteira. Estava grávida, mas
a barriga inda não atrapalhava os movimentos de gatinho.
Teodoro distinguiu a roupa da cor de barro, que se confundia
com a terra recém-molhada. Percebeu Ceiça misturada na
paisagem, mas já se fazendo notar. Ela chegava guiada
pelo mandacaru, quase em forma de cruz, que marcava o
lugar na trincheira onde Teodoro ficava, desde as dez horas,
esperando a boia. As rolinhas e juritis fizeram um alvoroço
na aproximação de Ceiça. Ela se aproximou rápido, beijou a
testa suada do marido e entregou o “de comer” num prato de
barro amarrado com o pano de prato. Teodoro desamarrou
o nó do pano e desvirou o prato metendo a mão e pegando
uma coxa da galinha, sem nem esperar a colher que Ceiça
procurava no embornal. Ela já sabia que tinha de falar
baixinho e quase segredou:
“Ontem o povo correu da missa do galo, quando
começou o tiroteio”.
Teodoro, só naquele momento, percebeu que estava
passando o Natal dentro daquela trincheira e jamais se
esqueceria da data que aconteceu em 1925. E como sempre
acontecia no Natal, chovia na manhã e o céu ficava encoberto.
Todo natal amanhecia assim, não sabia como não tinha
lembrado a data até a Ceiça dizer. À noite os revoltosos
atiraram muito na escuridão e ele tinha respondido umas
tantas vezes, não muito mais de dez, segundo contou pela
manhã os cartuchos gastos de sua arma. Lá pelas nove horas,
no respingo de uma chuva rala, engatinhou até onde estivera
o inimigo à noite. Sabia que eles não estavam mais ali, muito
antes da barra do dia os tiros pararam do lado dos revoltosos
e já tinha dado dois tiros sem escutar resposta. Procurou e
encontrou uma boa quantidade de cartuchos das armas dos
revoltosos. Ceiça perguntou pelos cartuchos e Teodoro fez um
movimento de lábio para indicar onde estavam os cartuchos
no fundo da trincheira. Ceiça saltou pra dentro e encontrou
uma boa quantidade de cartuchos usados que guardava,
como se tivesse encontrado um tesouro, no matulão. Dentre
eles tinha três balas intactas que Teodoro comparou com a
dele, para dizer que era do inimigo. Teodoro mastigava uma
cabeça do osso da coxa daquela saborosa galinha e já tinha
comido todo o feijão e arroz do prato fundo – quase uma
travessa – trazido por Ceiça.
“Quanto acha que o Geraldo vai dar nesses cartuchos”?
– perguntou à mulher, mas ressaltando antes de esperar a
resposta – “Tem de valorizar, são os tiros do Natal”.
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