quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Eclipse na Ponte




O Piauinauta vagueia na escuridão do eclipse do meio dia na ponte João Luís Ferreira. Se não botar um filme de Raio X, olhar pra luz cega. Mas este sol de cegar e de torrar os miolos não já é o de Todos os Dias? Mas tem um quê de saudade...


NATUREZA MORTA

Edmar Oliveira

Nunca entendi o gênero de pintura conhecido como Natureza Morta. As frutas, os vegetais, os legumes desses quadros, para mim, sempre me pareceram composições muito vivas. A definição escolástica pressupõe pinturas de objetos inanimados. Mas as fruteiras, os jarros estão sempre cheios de representantes do reino vegetal, de inquestionável vigor vital e animado. Como propõe uma moda de dieta atual. Dieta viva: vegetais sem cozimento, frescos, da feira à mesa. Não sei se vai fazer alguém mais magro, mas que é uma dieta viva, isso lá é verdade.


Portanto, voltando às naturezas das pinturas, nunca as considerei mortas. Monet pintou um quadro, concordando com a tese aqui defendida, que chamou de "Natureza morta com Melões". Era que os melões fatiados, tão apetitosos, se destacavam dos outros vegetais, de muito vivos que estavam! Dali, subvertendo a ordem das coisas – seu passatempo surreal – pinta o famoso quadro "Natureza-morta Viva", onde os objetos inanimados (pratos, facas, garrafa de vinho) junto com as frutas estão em movimento intenso sobre a mesa, enquanto um beija-flor – parado no vôo – fica inerte sobre um oceano estático. Coisa do Salvador Dali!


Mas foi divagando no oceano que fui encontrar a verdadeira Natureza Morta. Leio que o Ártico, pela primeira vez na história, derreteu completamente sua calota polar, tornando-se navegável. Os jornais noticiam que a camada de gelo que cobria o Ártico se encolheu pela metade. No oceano, que antigamente era um continente sólido de gelo, hoje flutuam pequenos icebergs numa fotografia denunciando o aquecimento global – verdadeira Natureza Morta.

A foto me conduz ao meu copo de uísque onde flutuam pedrinhas de gelo. Coloco outras pedras e mais uma dose para pensar que esta Natureza Morta pode fazer o aquecimento global matar os vegetais e os animais do planeta...

natureza morta 2


Natureza Morta com Melões, de Monet



Natureza-mota Viva, de Salvador Dali



Calota Polar degelada em 50%



Degelo Artico em meu copo de uísque


A Margem Oculta do Rio

Climério Ferreira

Todo rio tem uma margem que não há
Aonde a nossa lembrança vem se banhar
Quando o tempo nos distancia do lugar
Em que o rio solitário de nós segue a passar

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Climério Ferreira, piauinauta da beira do rio de Amarante, é poeta dos mais intensos que conheço. Com os irmãos Clodo e Clésio têem belas canções do cancioneiro do Piauí. Algumas tenho em vinil, que já devem tocar na mídia do cd. As que ainda estão no formato antigo (que guardo e ouço), deveriam (se ainda não foram) ter gravação em cd para os mais novos.
foto: Edmar

Lembranças do Beco





Alberoini,

Aqui em baixo tudo está diferente, vivemos em um novo século. O Beco, o velho Beco não tem mais aquela paisagem humana e urbana da qual você era uma presença constante, principalmente no Bar do Tião, onde uma vez por outra a gente se encontrava e tomava algumas doses de cachaça misturada com coca – cola , ou escoteira, mordendo, às vezes, um gomo de limão.

As figuras que você descreve no Beco, que lá transitaram contigo, quase todas já foram, possivelmente para o campo santo, estão, por aí em tua companhia. A Maria José tua companheira também já se encontra aí ao teu lado. Lembranças para ela. Fiquei sabendo da morte dela poucos dias depois que cheguei a Teresina, dois anos atrás. Fui a tua casa para dar as minhas condolências aos teus filhos. Falei apenas com Virginia, os outros não estavam em casa. Vi a empregada de vocês que se encontra lá deste que vocês se casaram. Vi também os jabutis. Aliás, estão lá desde que vocês se casaram. Tenho a impressão de que vão durar mil anos . Se houver mesmo reencarnação e caso vocês voltem ao seio da mesma família, com certeza, vão encontrar os velhos jabutis ainda vivos.

Em tempo:
Eu gostaria de avisar a você como é hoje a redação de um jornal, coisa de louco. Não tem mais este negócio de telex, não se ouve mais o batucar do teclado da máquina de escrever. Tudo é à base do computador, que está conectado com o planeta terra em todo grau de latitude e longitude. Agora sim, vivemos mesmo em uma aldeia global. Eu te imagino em frente a um computador abrindo janelas com um rato , sempre com aquela tua rapidez nervosa, ora apaziguada com um trago de cigarro. Só que não sei se terias direito de fumar na redação. Aqui a caça aos fumantes está um deus nos acuda.

Já que estou recordando nossos velhos tempos ainda lembras o teu projeto de escrever um romance? De repente você resolveu fazer uma experiência no mundo do romance, sair da reportagem nua e crua para o campo inventivo da narrativa. E não é que conseguiu. Em menos de quinze dias batucando em sua máquina de escrever você escreveu uma narrativa que não é das piores. E o dia que você chegou dizendo para mim que tinha entrado no Partido Comunista?

Estou me lembrando da nossa viagem a Campo Maior quando você me apresentou a tua noiva Maria José. Não demorou muito se casaram. Fui o padrinho do casamento. Deste – me de presente, como lembrança do acontecimento a caneta com a qual assinamos os termos de teu matrimonio. Meu caro amigo Alberoni, com certeza você está ai em cima no meio da poluição astronômica, e pouco se lixando de recordar coisas aqui da terra. Mas gente viva é bicho chato. E por isto mesmo insisto nas nossas lembranças. Veja esta. A comemoração dos quinze anos da tua querida filha Virginia. Você já estava doente numa luta de quebra de braço com a morte. A festa foi no terraço ajardinado de tua casa, lá no Barrocão, vizinho a casa do Arnaldo Albuquerque. Você me convidou. Tiramos uma foto juntos com a aniversariante. Tempos depois você me deu uma copia. Claro que você não se lembra mais de nada disto. Vocês aí do Beco estão todos morrendo de rir de mim. Ou melhor, já morreram.

Também me lembro de nossas partidas de xadrez. Você sempre levava a melhor nos seus lances incríveis. Eu era um pato. Meus peões, meus cavalos, minhas torres, meus bispos, minhas rainhas, não sabiam proteger o meu rei, e eu terminava ferrado com um cheque mate. E na dama e no bozó você era o diabo. E os livros que você me deu de presente, entre eles cito um clássico - A Cavalaria Vermelha de Isaac Babel, uma obra prima do conto russo. As lembranças são muitas. Mas vou ficar por aqui. Anexo vai um soneto para você e todas as personagens do Beco.

Do seu amigo
Geraldo de Almeida Borges


PS: O soneto:

O Beco

Alberoni o velho Beco esta mudado
Lá não transitam mais a mesma gente
Só ficaram passarinhos engaiolados
Há muito tempo morreu o Comandante.


Você foi um dos primeiro a ir embora
Deixando muita saudade em Teresina
Os outros devagar foram dando o fora
Seu Benedito dos tomates, a Osmarina.


O Beco ficou desbotado sem colorido
Perdeu toda sua festa e encantamento
Manhã tardes e noites nos botecos.


Mesmo assim jamais será esquecido
Suas personagens deram-lhe ornamento
E hoje entre nós vibram seus ecos.
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Há poucos dias o Piauinauta publicou o conto "O Beco" (é só procurar no índice) de Alberoni Lemos Filho, guardado por Geraldo Borges como relíquia.

Hoje Geraldinho presta essa bela homenagem ao grande Alberoni e o Piauinauta dedica este canto à Virgínia Lemos.

As fotos são do Arquivo Pessoal de Kenard Kruel.

Luiza Baldan



Da série "Tugúrios" em Luiza Baldan, fotógrafa. Lindo enquadre da imagem no cartão postal de uma janela abandonada.

Sergival na Casa Lima Barreto





Sergival em cena

Os Piauinautas Edmar Oliveira e Geraldo Borges assistiram ao show de Sergival na Casa de Lima Barreto neste último fim de semana. Sobre o show vamos deixar um dos bambas da Casa falar:

Sergival,
seguinte,
música é a minha cachaça, e sempre fui interessado em tudo quanto é tipo dela. Tenho em casa musica africana, asiática, de tudo quanto é genero, época... Sou um felizardo, pois tenho mais espaço pra ser feliz escutando a música boa. É indescritível poder misturar na mesma dispensa de qualidade o violeiro cearense Manassés de Souza, um Salif Keita (artista do Mali), um Jacques Bart (da Ilha de Guadalupe), o marroquino Khaled, as portuguesas Cristina Branco e Dulce Pontes, uma Rosa Passos (a mineirinha que é simplesmente nossa melhor cantora da atualidade), um Ivan Villela... um Monarco, uma Manacéa... um Roberto Silva... um Jackson do Pandeiro... um Manézinho Araújo... um Zé Côco do Riachão... e assim vamos... Por isso mesmo não tem nenhum ranço de xenofobia quando digo toda hora que a nossa música é a mais rica e poderosa, a mais bela e imbatível do planeta. Não tem pra ninguém, só a música carioca, com o samba e o choro, já empata com a melhor música americana, e ainda sobra um montão da melhor sonoridade, norte a sul, centro, nordeste, ..., que damos de lambuja. Nosso povo é rico, com uma elite que chega ao poder sempre pra provar que é uma merda. Governantes pobres de um povo rico, em sua cultura e criatividade.

Bem, o que quero dizer com isso, simples, é que pra mim foi um achado termos aberto o leque do "prata da casa" com a tua música, pela qualidade da música, pela seriedade da apresentação e por já começarmos com a maravilhosa música regional nordestina, ou melhor, a melhor música nordestina. Sim, pois sempre digo que não interessa se é gaúcha, mineira, nordestina, carioca, americana, francesa... o que a música precisa é ser BOA. E a sua é ótima, não só pela estética e feitura, mas, inclusive, pela sonoridade (grandes músicos).Por isso, agradeço. Por mim, e tenho a certeza que pela maioria da CLB, pois quebramos a "falsa cara", que nos reduz, de que somos uma "Casa de Samba", nosso negócio é a CULTURA, o meu pelo menos o é com certeza, e, mais, por nos ter proposto um patamar profissional de apresentacão, com a sua seriedade, e de seus músicos, com sua música e arte.Adorei tua apresentação e divido com vc minha alegria, meu irmão.Viva a melhor arte brasileira.Boa sorte e a mais infinita proteção do Deuses da Cultura.

Forte abraço, do mano

Carlinho Nascimento


Fezinha



DA PENHA – José Antonio Alves da Penha nasceu em 23/03/1949, no Rio de Janeiro. "É importante limpar a área dessa poeira conceitual e deixar nossos olhos serem raptados a uma viagem visual pela cultura do subúrbio, através de um trabalho que fala com carinho e integridade de quem viveu e vive tudo isso com muito amor…" e talento. Wilson Cardoso Jr.

Outros trabalhos de Da Penha podem ser vistos no site da Casa de Lima Barreto, ali no pé da página.

UM DESCANSO NA LOUCURA

Cineas Santos


Confesso, sem queixas, mágoas ou ressentimentos, que passei a infância e a adolescência convivendo com loucos de todo gênero. A lembrança mais antiga que guardo na memória é a de um pigmeu nordestino, com a barriguinha redonda e proeminente e os olhos roídos de tracoma. Era o Bertinho, um doido manso que falava aos arrancos e comia toda versidade de semovente, de ratazana a gambá. Em nossa casa, os doidos eram tantos que, pelo menos um deles, acabou incorporando-se à família. Edison do Ministério de Nossa Senhora apareceu lá em casa numa tarde qualquer de agosto, em meados da década de 60. Pediu água e farinha. Bebeu, comeu e dormiu como dormem os gatos e os justos. E foi ficando, ficando até tornar-se "o filho menos louco de dona Purcina". Viveu conosco por mais de trinta anos, até o dia em que a "indesejada das gentes" veio reclamar-lhe o corpo. Nunca se soube de onde veio ou para onde ia. Dir-se-ia um anjo tresmalhado e estúrdio que, bêbado de luz, errou a porteira do céu e pousou entre nós. Não por acaso, de gozação, eu costumava chamar dona Purcina de "a matriarca dos loucos". Ela os acolhia, alimentava, protegia e, principalmente, respeitava-os. Com ela aprendi que os limites que separam a sanidade da loucura são tão tênues que, não raro, tornam-se invisíveis. Quis o destino que ela própria, que parecia feita de lógica e certeza, aos 80 anos de idade, fosse seqüestrada pelo Alzheimer e passasse a habitar um mundo ensombrado onde não penetrávamos. Não podendo resgatar "seus loucos" para o mundo dos "normais", deixou-se levar pela correnteza da insanidade.

Essas reflexões me ocorrem quando leio no Portal do Sertão a notícia de que Oeiras está em ebulição por causa do "Bazar do Hermínio". Hermínio Antônio da Silva, para quem não sabe, era um ex-combatente que, atordoado pelos horrores da Segunda Guerra, regressou a Oeiras e começou a preparar-se para o pior: uma guerra ainda mais devastadora e prolongada. Para tanto, passou a juntar tudo o que lhe parecia necessário, de carvão vegetal a cera de abelha, passando por latas de conservas, facões, cordas, sanfonas, relógio sem ponteiros... Até aí, nada de extraordinário: os loucos, como se sabe, costumam transportar ou armazenar coisas sem serventia. Extraordinário, digo, deplorável é o fato de todas aquelas inutilidades armazenadas pelo infeliz terem sido vendidas por espertalhões de todos os estratos sociais. Ao descobrirem que seu Hermínio fazia jus a uma magra aposentadoria, passaram a explorá-lo sem o menor pudor. Vendiam-lhe tudo: de raízes amargas a carcaças de automóveis colhidas em ferro-velho. Sanguessugas, hienas e abutres sugavam-lhe o sangue, tiravam-lhe a carne, raspavam-lhe os ossos...

A convite do Dr. Carlos Rubem, experimentei a tristeza de visitá-lo. Ele, uma mulher triste e um rapaz "fronteiriço" ocupavam um exíguo espaço da velha casa de adobe, visto estar o restante do imóvel entulhado de trastes. Fui informado de que os três passavam privações, já que os caraminguás do velho destinavam-se à compra de lixo. Transformaram seu Hermínio em "celebridade", com direito a aparição na telinha e nas páginas dos jornais sensacionalistas, ou seja, em bicho de zoológico, exposto à curiosidade do mundo. Explica-se: num mundo onde tudo é espetáculo, nada mais "normal" do que "espetacularizar" a loucura.

Finalmente, um deus piedoso resolveu conceder-lhe algum descanso. Agora a cidade agita-se na tentativa de "arrematar" algum suvenir do "Bazar do Hermínio". Que tenham pelo menos a dignidade de comprar as inutilidades do espólio em liquidação pelo preço que as venderam ao infeliz. Que Deus se apiede da alma dessa gente honrada, caridosa e rezadeira. Amém.
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Cineas e o Ypê Branco que ele plantou na entrada da Universidade Federal por Netto de Deus. Caras de Teresina é uma exposição (a EXPOCUIA) que acontece na Oficina da Palavra em Teresina.

Velha a Tecer

1000ton

DESNACIONALIZAÇÃO LINGÜISTÍCA

Gisleno Feitosa

Mademoiselle “Silvá”
tem, no big bangalô,
um chic abajur grená,
design vip e retrô.
Maitre, garçom, garçonete,
com champagne e cocktail,
servem a soçaite coquete,
que vê “cirque du soleil”.
Se falta no toilelette
o rouge ou o batom.
dá bofete no bufete
causando o maior frisson.
O stress da socialite
é tratado no divã,
com Chivas ou Black-White,
só de panties e sutiã.
A night, curte num pub:
um michê, um petit gâteau,
e go back to Jockey Club,
pra amansar o “pierrot”.

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O Piauinauta recebe o piauinauta Gisleno Feitosa, leitor da folha e homem das letras. O cabra assim se apresenta:"Caro Edmar: sou cearense dos Inhamuns (falando nisso esta sua foto parece com o Correa Lima), sou cidadão Barrense e Piauiense. Estas são da minha safra (ou sofra?)." Guardei outras pra mais tarde.
Endereço do missiva: gislenoffeitosa@uol.com.br

Uma Cerveja com Waldick, em Plena Amazônia


Paulo José Cunha

Uma vez, no final dos anos 70, tomei uma cerveja com ele. Estava em Itaituba, interior do Pará, a cidade do ouro, em visita a parentes de minha mulher na época. Meu cunhado tinha um bar, chamado Maracangalha, às margens do Tapajós. Fui lá tomar alguma coisa quando dei de cara com ele, sentado numa mesa, sozinho, uma garrafa de cerveja à frente. Fazia um calor danado, calor amazônico, úmido, forte. Mesmo assim, lembro muito bem, usava camisa preta de mangas compridas.
Aproximei-me, apresentei-me como repórter do Jornal do Brasil. Convidou-me para sentar e me ofereceu um copo.
Durante uma meia hora ou mais, conversamos distraidamente. Falamos de tudo, menos de música. Falamos principalmente de mulheres, a paixão da vida dele. Dizia que ia morrer sem entendê-las, mas mesmo assim continuaria a vida toda fascinado por elas. Dizia que eram a razão de sua existência. E ria, ria muito, descansado. À noite faria um show numa festa, fora contratado por um garimpeiro rico. Contei que uma vez, na Rádio Nacional, em Brasília, onde trabalhei no início da carreira ao lado de Waldyr Azevedo (autor de "Brasileirinho"), havia feito um programa especial sobre ele. Os dados biográficos, obtivera de uma publicação da Abril, que na época vendia em fascículos nas bancas de revista um bolachão médio com uma síntese da obra de cada personagem enfocado. A narração do especial eu havia confiado a um locutor que terminaria sendo apresentador do Jornal Nacional - Celso Freitas, com aquele vozeirão maravilhoso. Perguntou onde poderia conseguir uma cópia do especial, comentando que pouca gente o homenageava dessa forma, pois sempre era alvo de gozação ou de crítica por ser considerado brega. Eu não soube dizer, já fazia tanto tempo. (Eu tinha sido demitido da Rádio Nacional por causa de minhas ligações com o Partido Comunista. Quando trabalhei lá estávamos em pleno governo Médici, auge da repressão).
Despedimo-nos, ele fez questão de pagar a conta, pegou o conhecido chapéu preto, os óculos enormes, e foi embora, sozinho. Não contei a ele, seria uma tremenda descortesia, mas fiz o especial porque queria provocar os militares, botando pra rodar duas vezes no programa a música "Tortura de Amor", que a censura imbecil da época havia proibido só pelo título, um ato falho destamanho. A partir daquela data, passei a vê-lo de outra forma. Até hoje gosto muito de "Tortura de Amor" ("Hoje que a noite está calma/ e que minh'alma esperava por ti/ apareceste afinal/ torturando este ser que te adora..."). É uma canção belíssima. Falam que pode até ter sido escrita por Tom Jobim. Dizem que ele não teria competência para compor uma música tão bonita, e que deve ter comprado de alguém.

Se compôs, parabéns efusivos pra ele. Se comprou, Waldick Soriano tinha um gosto ótimo.

Histórias de Waldick (2)


Caro Piauinauta,

Mando-te esta de Antonio Cavalcante, cujo pai era dono de uma vidraçaria na rua Bela, perto da Praça Pedro II.
Ass: Nacif Elias Hidd


Chico Rosa, um afro-descendente de cabeça seca, atualmente com mais de um século, ainda em atividade carnavalesca, era baterista de um conjunto regional em Teresina lá pela metade dos 60s. Trabalhava na vidraçaria do velho meu pai.
Contou-me:“Nosso conjunto foi para Caxias contratado pelo Valdick que faria um show no clube daquela cidade. Fomos num pé redondo e o Valdick seguiria mais tarde num asa dura (Caxias fica a cerca de 50 quilômetros de Teresina). Quando o Soriano chegou, à noite, no “aeroporto”, não encontrou ninguém para recepcioná-lo. Puto, seguiu para a cidade, encontrou-nos, perguntou a um passante onde ficava a zona e pra lá nos mandamos. No maior cabaré dacidade organizaram um canto e, sentado no chão, com um litro de uísque, começou um show de arromba. O macharal que estava no clube foi informado e todo mundo se mandou pra zona esvaziando a festa patrocinada pela prefeitura. Mais tarde chega o prefeito aflito: você tem um contrato a cumprir!Pega o dinheiro e o contrato e... some daqui. A farra foi até o clarear da barra.”

Você não é cachorro não, mas eu sou Waldick sim, com muito orgulho

Xico Sá



Morreu, digo, partiu desta para uma melhor, o cantor e compositor Waldick Soriano, o nosso Johnny Cash baiano, como diz o escriba e amigo Zé Teles. A imagem que fica é o seu chapéu preto voando em uma noite fria de São Paulo, mas precisamente na porta do cabaré do viejo Charles Bronson, ali na rua Avanhandava. Foi a última vez que estive com o ídolo, finalzinho do ano passado. Inesquecível a conversa molhada por duplos uiscões inspiradores. Nós, cuja educação sentimental, aí incluindo os bons pares de chifres, devemos a WS, o homenageamos com esta crônica que segue, e que a terra e todas as dores de amores lhes sejam leves...
No cinquentário da bossa-nova, sinto muito pelos bons modos jazzisticos que tanto agradaram a classe média do Sr. João Gilberto, mas ninguém me disse mais coisas do que esse homem que cantava Dostoievski para as putas e para as nossas mães ao mesmo tempo:
"Hoje, que a noite está calma/ E que minha alma esperava por ti/Apareceste afinal/ Torturando este ser que te adora..."
Cuba libre e uma canção de Waldick Soriano, quem há de resistir?
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XICO SÁ, nasceu em 1963, jornalista e escritor, nasceu no Cariri, foi criado no Recife e vive em São Paulo. Escreve para a revista Folha, Trip, Tpm, entre outras publicações.Arte: Nettocampomaior – PICINEZ (de onde este texto e ilustração foram subtraidos)

Virgulino e Benjamim


Illmo Sr. Bejamim Abrahão

Saudações

Venho lhi afirmar que foi a primeira peçoa que conceguiu filmar eu com todos os meus peçoal cangaceiros, filmando assim todos us muvimento da noça vida nas catingas dus sertões nordestinos.
Outra peçoa não conciguiu nem conciguirá nem mesmo eu consintirei mais.

Sem mais do amigo

Capm Virgulino Ferreira da Silva
Vulgo Capm Lampião

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Bilhete escrito por Lampião para Benjamim Abraão, que fotografou e filmou o bando de cangaceiros com autorização de Virgulino. O filme caseiro, feio pro Abraão , deu origem a Filme Baile Perfumado, do pernambucano Lírio Ferreira. O Abraão é o único que não está vestido de cangaceiro na foto.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Nos céus de Codó


Codó, no Maranhão, é uma cidade pequena, porém formosa que fica à margem do rio Itapecurú. O rio nasce em Caxias, perto de Teresina e atravessa todo o Maranhão, para o norte, desembocando na baía de São Marcos, onde fica São Luís. O Piauinauta observa o passado.
Nessa igrejinha, que lhe parecia enorme, fez as aulas da primeira comunhão. Um garoto, menino Pereira, jamais perdoou o astronauta que lhe garantiu não existir o Papai Noel. O Piauinauta se penitencia aqui pela responsabilidade de destruir um sonho. Mas por frequentar a dobra do tempo ele não percebeu onde estava e pede sinceras desculpas ao Pereirinha, um moleque do Brasil.

AS TÁBUAS DA LEI

Edmar Oliveira


Sou uma criatura que não tem muita fé no Criador. Não acredito nele e creio que o homem veio de uma linhagem de macacos não darwiniana. Como neóteno, acredito mais que o tal de ser humano é descendente de uma evolução de macacos que não se completou. Os outros macacos tão dentro da natureza, nós estamos fora dela. Somos seres que não deram certos na ordem da natureza. Portanto, para suportar essa perda, tivemos que criar uma segunda natureza que é essa tal de cultura. Mas não é nada disso que quero desenvolver nesta crônica ordinária, mesmo que isso sirva à sua introdução.


Quero tecer um pequeno comentário sobre as Tábuas da Lei, que Moisés recebeu do próprio Deus no monte Sinai. Segundo o Livro do Êxodo, e repetido no Livro do Deuteronômio, as leis serviram para organizar o povo que seguia Moisés em busca da Terra Prometida. E Deus, num movimento que não consegui entender até hoje, fez o cajado de Moisés achar água e seguindo a ordem dada pessoalmente a ele, conduzir o povo hebreu, abrindo o mar Vermelho, para Israel. Se tivesse o cajado de Moisés achado petróleo, e se ele fosse em outra direção, a história seria outra...

Pois bem, foi com as leis cravadas na pedra que Moisés conseguiu organizar a nação hebraica como um Estado. Esta segunda Constituição dos judeus, a primeira Moisés quebrou e ninguém sabe em que diferia da segunda, serviu para organização do Estado do povo de Deus. A religião cristã, fundada em cima do livro judaico, adaptou os mandamentos como sendo também do povo de Cristo. Como se a medida provisória apresentada por Deus fosse aprovada no congresso cristão (que o presidente não me ouça).


Mas desde as aulas do catecismo que cismo com as Tábuas da Lei. É pecado mortal desobedecer aos mandamentos e leva o crente para o fogo dos infernos. Eu sempre achei dois mandamentos completamente diferentes do grau de severidade dos outros. Quando acreditava em Deus era fácil seguir os mandamentos que ordenavam sua adoração. Não matar, não roubar, não cobiçar coisas alheias, não levantar falsos testemunhos. Nesses mandamentos me era claro o grau de responsabilidade exigido ao povo de Deus ou do Cristo, seu filho salvador. Agora, não pecar contra a castidade (em palavras ou obras) e não cobiçar a mulher do próximo não é um pouco demais? E as inevitáveis saliências que praticávamos crianças? Acho que minha fé ficou abalada ali nas aulas de catecismo: a professora era casada, muito bonita, e eu me pegava cobiçando a moça. E em vez de me preparar para a primeira comunhão com o Criador tava lá eu desejando a moça e me preparando para o fogo dos infernos... Depois de certa idade já não tem perigo o da castidade. Mas não desejar a mulher do próximo (principalmente quando ele estiver longe) é um mandamento muito difícil de cumprir...


Expulsos do Paraíso

1000ton


O Faquir, a Onça e o Elefante



Geraldo Borges

Por aqui, em minha cidade, passou um faquir. Era um homem forte e bonito. Tinha a cabeleira parecida com a juba de um leão. O faquir ficou deitado dentro de uma caixa de vidro, em uma cama de ferro, com um leito de prego. Passou ali quase um mês. Eu fui olha o faquir. A cidade toda pagou para ver. Só se falava a respeito deste homem. Muitas pessoas até esqueceram que passavam fome e que as mercadorias da cesta básica estavam caras. Eu ficava admirado, de boca aberta. Como é que uma pessoa podia passar aquele tempo todo sem comer. Ele era forte e não comia. E muito esquisito continuava com o mesmo calibre.

Depois que passou vinte e sete dias em jejum o faquir foi tirado de dentro da caixa de vidro e ofereceram-lhe um banquete. Não tinha um aranhão. A pele estava lisa e corada. Não me lembro se ele lavou a burra nesse dia. Quer dizer, descontou o atrasado. Tirou a barriga da miséria. Só me lembro que ele estava muito risonho e animado e apertando a mão de todo mundo, com firmeza. Pensei comigo Será que ele existe mesmo, ou estou vendo um fantasma como os que deliram de fome?
A passagem do faquir por minha cidade foi um acontecimento maravilhoso, só ultrapassado pelo Zepelim e pelo hidro – avião.

Toda vez que eu sentava à mesa, em casa, desde que o faquir foi embora, eu me perguntava. Haverá necessidade mesmo de se comer todo santo dia? A gente bem que podia ser faquir um dia e outro não. Com estes pensamentos tentei de minha parte fazer um esforço de faquir para diminuir o apetite. Fui aos poucos diminuindo a comida. Notei logo que para isso era preciso muita concentração. Acresce que nesse tempo eu estava em plena adolescência, em fase de crescimento. E ainda por cima havia descoberto conversando com o faquir, que há três coisas importantes na terra: comer, em primeiro lugar, morrer pela pátria quando se é jovem, e mulher na cama. Não morri pela pátria quando era jovem, não tive tantas mulheres, mas a fome continua. Adeus vontade de ser faquir.

Por isso mesmo comecei a admirar os elefantes dos circos que chegavam na cidade. Aquelas montanhas de carne se movendo. Monstruosos ratos de tromba. Os empregados do Circo traziam montes de capim da beira do rio e os empilhavam em sua frente. E eles os devoravam com a maior paciência paquidérmica do mundo. A tromba como um guindaste flexível ia e vinha ao monte de capim, até que o chão ficava limpo. No outro dia estavam lá os elefantes comendo de novo.

Certa vez foi uma onça que trouxeram para a minha cidade: onça preta. Instalaram o felino em uma casa, no centro. As pessoas ficavam em fila para comprar ingresso a fim de ver a onça. Eu como não tinha grana permanecia ao lado da porta perto do porteiro, com os olhos compridos para dentro do recinto onde a onça estava engaiolada. Não via a onça, Mas confesso que sentia o seu cheiro selvagem de bicho carnívoro. Já pensou uma onça sendo votada em uma assembléia de bichos a virar faquir. Digo isso porque pelo tempo que passei plantado lá na porta nunca vi ninguém entrando com passadio para a onça.

Todo dia eu ia para a porta da casa onde estava a onça, no centro da cidade. O porteiro já estava me conhecendo até demais. Terminou um dia me perguntando se eu era filho de um coronel fulano de tal. Como uma das qualidade do ser humano quando é menino é mentir, eu disse que era. O porteiro sorridente mandou que eu entrasse para ver a onça preta. Matei a minha curiosidade mórbida. A onça fedia. Não sei se de fome, de barriga cheia, ou de raiva.

Saí da toca da onça odiando secretamente o porteiro por ter me achado parecido com o filho de um coronel fulano de tal.

Não sei se estas coisas me aconteceram realmente ou se não passaram de alucinações de um faminto. Dei para beber agora sem regra e quando menos espero passo os limites do cotidiano e mergulho no fantástico. Enxergo coisas inacreditáveis. Como por exemplo. A onça saiu de sua jaula e comeu o faquir. Porém o faquir por sua vez já tinha comido o elefante. Mas isso já é outro delírio.

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Ilustração Wilmarx

O CIRCO


Edmar Oliveira


Quando o circo chegava na cidade era um alvoroço só. Uns vinham de trem, outros de caminhão e ônibus do próprio circo. E tinha a bicharada. Elefante, onça, macacos, cavalos. Era interessante ver a lona subir. Uma mágica. As cores vermelha, azul e branca da lona, enfeitada com bandeiras, se impunha na praça do mercado. Um cercado, o carro da bilheteria, as tabuletas. O que acontecia lá dentro era um mistério que só seria desvendado na noite de estréia. No dia D o palhaço comandava a trupe: bailarinas, trapezistas, equilibristas saiam nas ruas anunciando o espetáculo. Um coro de crianças seguia o cortejo respondendo ao que o palhaço gritava no megafone:

- Hoje tem espetáculo?
- Tem, sim senhor.
- E o palhaço. O quê é?
- Ladrão de mulher.

E por aí íamos nós respondendo o que fora ensaiado rapidamente. Quando retornávamos da maratona, seguindo o palhaço em suas pernas de pau, recebíamos um carimbo de tinta azul no braço. Era a garantia de entrar de graça à noite. O maior desafio era tomar o banho sem tirar a tinta do braço. Sem ela não tinha o passaporte da estréia. E aquela era uma noite importante.

A grande hora chegava com a noite. A bandinha na porta do circo, o pipoqueiro, o algodão doce. Lembro que entrei maravilhado depois de ter mostrado o meu carimbo. Lá dentro era a magia. Aquela lona azul com estrelas pintada era um céu de fantasia. As cordas, os trapézios, o picadeiro e o palco com a cortina fechada, já diziam que aconteceria o espetacular. Primeiro, o dono do circo, de fraque e cartola, anunciava o espetáculo. Dois palhaços já faziam uma cena pra chamar atenção e disfarçar a entrada do malabarista e da bailarina equilibrista. Quanta beleza nos gestos e perícia no equilíbrio. Os palhaços de novo. A gente ria das besteiras. O picadeiro recebia o leão e o domador dentro de uma jaula. Coragem do homem que, com um chicote, fazia o leão sentar e a onça atravessar um arco. A banda tocava uma música que anunciava a coragem e a tensão. Os palhaços voltavam enquanto o picadeiro era esvaziado. Os palhaços faziam a continuidade do espetáculo para não ter interrupção. O elefante entrava no picadeiro para se equilibrar numa pequena base sobre um cone. Depois sentava e fazia contas com as patas seguindo as ordens do domador. Os palhaços voltavam. Daí faziam um número maior com um calhambeque e macacos no palco e faziam estripulias de causar inveja ao equilibrista. Parecia que ele caprichava pra errar e pra ficar engraçado. Quando este número acabava, tambores anunciavam o momento de maior tensão. Os refletores se voltavam para o céu de lona. Os trapezistas já estavam a postos. A gente ficava com o coração pequeno nos saltos. E os olhos acompanhavam a trapezista que mudava de mãos dos trapezistas como se tivesse asas. A música aumentava a tensão e o duplo mortal acontecia no momento em que corações da platéia saltavam pela boca. Na emoção crescente que vinha acontecendo ficávamos aliviados com o intervalo.

A segunda parte do espetáculo era o que chamávamos de "Drama". Um teatro popular era dramatizado no palco pela bailarina, trapezistas e palhaços que viravam atores. O "Coração Materno" de Vicente Celestino foi pra mim um "Drama" inesquecível. Uma tragédia no palco em que o coração da mãe era oferecido à amada. Aquilo me marcou a alma. A magia tinha chegado ao ápice na tragédia. Fui pra casa e não dormi naquela noite.

No dia seguinte a vida seguia morna. Mas a convulsão do circo era inesquecível...

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Depois da postagem deste texto me chega a notícia da morte de Waldick Soriano. Na lembrança ficou o maior cantor brega da minha vida. Waldick morou em Timon e habitou os cabarés da minha adolescência. Cantou tanto na rua Paissandú (baixo meretrício teresinense), que faz parte da minha vida. Declaro-me fã incondicional do Soriano. Bonita homenagem fez Patrícia Pillar na gravação de um DVD antes do desaparecimento de Waldick. E ele sempre esteve nos circos... E eu o conheço desde Codó.

O Piauinauta em Codó

Nesta foto o Piauinauta ficou em dúvida se era a Estação de Trem de Matar ou Morrer. Mas não é cinema. Codó, no Maranhão, está hoje na igreja, no circo, na estação. "Lembrando do meu tempo de criança, meu amor vem na lembrança, que me faz chorar" (Jackson do Pandeiro).



Parada Obrigatória


CARLOS NASCIMENTO – Carlos Alberto Teixeira do Nascimento, carioca do subúrbio, nasceu em 27/10/1952. Auto-didata, trabalha o desenho. "As questões sociais e da alma humana são riscadas em papel com lápis de cor, e acima de tudo com emoção e reflexão. "O Homem e seus riscos", nome dado a uma das exposições dos desenhos de Carlos, carrega em seu jogo de palavras uma boa definição para a preocupação central e o traço marcante do artista."Valdir Ramos
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Carlinhos é membro diretor fundador da Casa de Lima Barreto. Outros trabalhos seus podem ser conferidos no site da casa alí no pé de página.

Brasilia




Geraldo Borges

De escrever Brasília no Planalto
Veio de bem longe a idéia genial
O alfanje na picada abriu o mato
E eis no solo erguida a catedral.

Páginas plantadas no concreto
Com o suor do povo brasileiro
Que do primeiro andar até o teto
Ainda não encontrou o seu roteiro.

Brasília muito mais do que uma idéia
Materializada por teu mestre de obra
És a edição de uma grande epopéia.

Porém ainda não tens porto seguro
Pois teus heróis temem matar a cobra
Ancorados escondidos sobre o muro.

Defunto Descartável

Deusdeth Nunes


No mandato de 1988 a 92, Gonçalinho era prefeito de Piracucura (PI), situada a 180 km de Teresina, com fama de ser uma das cidades que tem mais doidos no Estado. Ele mantinha um serviço de ambulâncias para transportar os munícipes doentes para a capital porque no interior o melhor médico é a ambulância.E com gasolina. O eleitor-doente não estava nada bem e com apenas dois dias no Hospital Getúlio Vargas,bateu as botas.

Naquele tempo estava deflagrada uma verdadeira guerra entre as mortuárias da capital. A mortuária "Mamãe está chamando" disputava pau a pau a preferência dos sobreviventes com a similar " Você será o próximo".

Doente morto e abotoado, só restava ao motorista da ambulância municipal piracuruquense trazer o corpo para as providências defuntárias. Foi aí que deu zebra. A imprensa havia denunciado a guerra das mortuárias, briga por defuntos, uns tirando quem já morreu de dentro dos caixões das outras. Por via disso, na "cancela", no posto policial, a PM destacava guarnição para evitar qualquer problema com os defuntos alheios. E lá sem vem a ambulância de Piracuruca com o defunto ainda fresquinho.Não passou no posto. Bronca do cabo de polícia. "Orde é orde e sem os documentos do falecido, atestado de "órbita" e assinatura do doutor, num passa aqui não". O motorista prefeitural enxugava o suor da testa. Fazer o quê ? Celular, a salvação. Ligou para o prefeito.Gonçalinho meio surdo. O homem tinha que gritar:

-O cabo num quer deixar eu levar o defunto não! Quer um tal de CPF e "dentidade".O que diabo é que eu faço,homi!!?Prefeito Gonçalinho, um poço de sabedoria, mandou que ele desse o telefone ao cabo de polícia. Fala alto que ele é surdo, disse entregando o celular ao PM.- Que qui houve, homi ?Esse rapaz que morreu era um homi direito, porque você quer prender ele ? - "Doutor, ordi é ordi. O carro pode passar mas o falecido sem documento num passa." Uma pausa para a sabedoria piracuruquense entrar em cena. Gonçalinho decide:

- Então façamos o seguinte. Se o carro tá com os documentos em orde, o carro vem e o defunto que num tem os documentos,fica aí.Tou precisando da ambulância para levar já outro, mestre !

O cabo foi rápido no gatilho:

- Prefeito é o seguinte.Dessa vez eu vou considerar o senhor.Pronto. O defunto tá liberado. Mas é só essa vez !

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Deusdeth Nunes, o Garrinha, o cronista que começamos a ler no "Prego na Chuteira", que todo piauinauta conhece. Quem não é do espaço sideral pode encontrar o Garrincha em "As Coisas do Piauí"

OS QUINTAIS DO MUNDO

Cineas Santos

Se o menino é o pai do homem, como queria o velho Bruxo, Climério foi um menino de olhos gulosos, olhos maiores que a barriga, para usar uma expressão bem piauiense. Enquanto corria atrás do dia por ruas empoeiradas, becos e quintais da pequena Angical, ia recolhendo tudo o que, aos olhos apressados, não tinha qualquer serventia.
Quanto partiu – um dia, todos partimos – levou no embornal da memória aquele cabedal de “inutilidades” e se fez sovina. Para evitar que alguma coisa se perdesse no chão das lonjuras, foi estreitando a fenda dos olhos até que se tornassem dois riscos de nanquim num rosto de lua cheia, réplica apurada de um velho chinês.
Com o tempo, aquele rebotalho foi-se decantando até tornar-se poesia, poesia em estado puro, límpida e cristalina como a água das fontes escondidas. Foi aí que Climério Ferreira percebeu que a sovinice já não tinha razão de ser: generosamente, abriu o baú da memória e nos convidou a compartilhar com ele o que, um dia fora de todos; depois só dele e, agora, do mundo. Memorial de Mim é bem mais que “as lembranças poéticas de um menino de Angical”; é o mundo transfigurado pelo poder mágico da poesia.

Piauiês




“PIAUIÊS” SERÁ LANÇADO PELA PRIMEIRA VEZ EM BRASÍLIA

A “Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês” – 3ª Edição (foto da capa em anexo), de autoria do jornalista, poeta e professor Paulo José Cunha será lançada no próximo dia 4 de setembro/2008, quinta-feira, a partir das 19h, durante a 27ª Feira do Livro de Brasília, no Shopping Pátio Brasil.
O livro reúne palavras e expressões tipicamente piauienses, com farta exemplificação do emprego de cada verbete, a partir da literatura, da publicidade e do jornalismo piauienses, além de exemplos recolhidos dos principais personagens da cena cultural e artística do estado. Foi escrito em linguagem bem humorada e depois de intensa pesquisa que alcançou os principais dicionários e grandes paremiologistas como Fontes Ibiapina e Leonardo Mota, entre outros, na tentativa de referenciar cada um dos termos. Apesar de a primeira edição ter sido lançada em 1995, até hoje não havia sido posta à venda nem tivera um lançamento em Brasília.
O autor gosta de brincar dizendo que Teresina “é a segunda maior cidade do Piauí, já que a primeira é Brasília”, tal o número de piauienses que residem na capital federal e suas satélites. “Já estava na hora de resgatar essa dívida com os amigos e conterrâneos que moram aqui”.

OBRA DE REFERÊNCIA DO HOUAISS

Paulo José Cunha se considera uma espécie de garimpeiro de palavras. Desde a primeira edição, em 1995, nunca mais teve sossego, seja pela cobrança de novas edições, seja pelo trabalho inesgotável de recolher, avaliar, fixar a grafia e a pronúncia de termos e expressões piauienses. A “Enciclopédia” se tornou tão popular que cada edição muitas pessoas enviam sugestões de novos verbetes. E muitos vêm sendo incorporados nessa trajetória de treze anos, a partir da primeira edição. Desde o nome jocosamente pomposo – “Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês” até o tom abertamente debochado – o livro é uma provocação à sisudez acadêmica. “Talvez derive dessa irreverência o seu sucesso” – comenta o autor. “Se fosse obra séria e bem educada talvez não passasse da primeira edição, e olhe lá”.

Nem por isso a “Enciclopédia” deixou de chamar a atenção dos dicionaristas, estudiosos e pesquisadores da língua. Prova disso é que se transformou em obra de referência do “Grande Dicionário Houaiss”, e de outras obras voltadas à classificação, dicionarização e fixação da linguagem regional como o “Dicionário do Nordeste”, de Fred Navarro. Ultimamente converteu-se em tema de várias pesquisas nas áreas universitárias de graduação e pós-graduação. Além disso, tornou-se uma espécie de “xodó” do povo piauiense em razão da identificação que as pessoas têm com seu conteúdo. “Não tinha tal pretensão quando o escrevi”, diz Paulo José Cunha, “mas fico muito satisfeito em saber que se transformou num fator a mais na tarefa de elevar a auto-estima e fixar a identidade cultural de nossa gente”.

ALGUNS VERBETES

XIS COM - Em diagonal com. Forma inteligente que o piauiense encontrou para ensinar um endereço. "A casa de Zequinha Manguaça? Fixa xis com o Boteco Pinga ni Mim".

BONITO PRA CHOVER – É o que se diz quando o céu anuncia a dádiva da chuva que faz brotar roças e espalha o verde nos pastos. Tempo feio, no Piauí, é o do sol que prenuncia a seca. Para nós, tempo bom é quando está bonito pra chover.

GUABES – É quem tem pontaria certeira. O contrário de GUABES é FUNDO.

ENFIAR PEIDO EM CORDÃO – Ficar ocioso, sem fazer nada. Experimente parar um pouco com essa correria, e fique por aí, uma hora dessas, olhando as vitrines, enfiando peido em cordão. O tempo vai passar mais devagar, o estresse vai diminuindo...

LICUTE - Namoro chameguento.

TER CABELO NA VENTA - Ter experiência, ser cuidadoso.

EMPAIAR - Ocupar, atrapalhar.

NUM PÉ E NOUTRO - Rápido. "Vá entregar esse documento ao presidente Lula mas vá depressa, num pé e noutro. Não vá ficar por lá empaiando o homem que ele tem muito o que fazer".

AQUELES MONTES - Muito, por demasia. "Se ele gosta dela? Não, só aqueles montes".

BÊ-ERRE-O-BRÓ - Os meses mais quentes do ano, todos terminados em BRO - setembro, outubro, novembro e dezembro.
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"Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês" - Lançamento dia 4 de setembro, quinta-feira, na 27ª Feira do Livro de Brasília, 19h. 332 págs, ilustrações de Jota A, R$30,00 (preço promocional de lançamento).

Papete e o Boi do Piauí

ZÓZIMO TAVARES



Cantor, compositor, percussionista, produtor e arranjador, ele é um artista de prestígio internacional. Foi o ganhador do prêmio Disco do Ano de 1977, com o álbum Uo-mini, gravado com a cantora italiana Ornella Vanoni. Estourou nas paradas de sucesso com "Boi da lua". Desde então, embora não seja uma presença freqüente na mídia, seu prestígio não pára de crescer na crítica e no meio artístico. Refiro-me a Papete, 61 anos, que também recebeu o título de melhor percussionista do mundo, no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. O músico diferenciou-se e ganhou aplausos por desenvolver uma técnica excêntrica no berimbau, inovando ritmos e criando uma performance musical totalmente particular ao instrumento e à percussão, que é sua especialidade. No período de 1993 a 1998, Papete dedicou-se a pesquisar sobre os ritmos do Maranhão. Daí resultou o projeto Tambor de Mina, em que os sons, ritmos e melodias da música maranhense são mostrados de uma forma universal, moderna e agradável. O show percorre o país e exibe toda a técnica e versatilidade do percussionista, que executa ritmos como o crioula e diversos "sotaques" do Bumba-meu-Boi e do reggae (raga, zouk, pop), tocando instrumentos típicos e originais da cultura musical maranhense.A arte de Papete e sua banda foi apreciada pelos teresinenses no palco do "Armazém de Todos os Sertões", quarta-feira à noite, no Teresina Shopping, dentro da programação dos 50 anos do Armazém Paraíba. No show, que levantou o público, o artista contou que, após anos de pesquisa da cultura popular, constatou que o boi-bumbá do Maranhão nasceu no Piauí, com os vaqueiros, atravessou o Parnaíba, foi para a Ilha (São Luís) e, de lá, seguiu para a Amazônia, com os maranhenses que foram trabalhar na extração da borracha, projetando-se para o mundo através de Parintins. Muitos já sabiam dessa história, mas ela certamente ganha outra importância quando contada por uma voz autorizada como a de Papete.
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(diário do povo - 31.08.08) Zózimo é jornalista piauiense que manda esta nota para o Piauinauta. Já estamos competindo com a grande imprensa (pelo menos a do Piauí).

Glauber Rocha contra o Inimigo Invisível

Everi Rudinei Carrara



Glauber Rocha faleceu em 21 de agosto de 1981. Suas idéias, seus filmes continuam mais vivos e atualizados do que nunca. Lamentavelmente esses filmes não são exibidos em rede nacional para os mais jovens. Devemos repelir a xenofobia, mas somos colonizados pelo lixo cultural norte-americano, enquanto os bons filmes africanos, brasileiros, latinos, asiáticos e europeus produzidos com poucos recurosos financeiros, nunca são mostrados ao grande públicos. Ainda quando se aborda a temática da pobreza social no Brasil emdeterminadas películas, não se chega ás suas causas seculares que persistem, agravadas pela conivência da mídia conformista que cinicamente a retrata, e pela reiterada preguiça e hipocrisia intelectual das classes dominantes, que se furtam á reflexão mais aguda e ao processo dialético transformador. Essa indiferença habitual produziu a violência que nos ronda diariamente, nos deixando perplexos e quase impotentes diante do crime organizado ou de qualquer outro. OBrasil se mantém governado pelo refugo da democracia demagógica, produzindo promessas, livros e filmes para conquistar a estatueta delata em roliude (sic), cai de joelhos diante da tagarelice populista e neo-fascista de Lula, tal como o registrado entre os protagonistas do filme "Terra em Transe", formando um majestoso carnaval de contradições, corrupção e traição ao povo brasileiro. Glauber Rocha amava esse país e viveu intensamente sua fé revolucionária até a morte; Glauber sabia que não bastava lutar contra os dragões da maldade imperialista como os esquerdistas ortodoxos sustentam, mas em reavaliarmos também nossas próprias fraquezas, nossa educação anestesiada pelo medo, nosso conformismo suicida, nossas vaidades pessoais, nosso analfabetismo crônico, nosso conservadorismo boçal, academicismo arrogante e improdutivo. Mesmo depois de sua morte o Brasil continua doente, sendo um imenso canteiro de obras, tudo está para ser feito, escrito, filmado,vivido, renascido das cinzas para que a cidadania seja encarnada em plena ressureição cultural, com liberdade e poder aquisitivo dignos. Além do que, hoje o inimigo é invisível e opera através de complexos e poderosos sistemas eletrônicos corporativistas e conspiratórios.

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Everi é blogueiro do Telescópio e me manda suas opiniões. Já repararam que tudo em torno de Glauber é conspiratório? Sobrou até pro Governo Lula que entrou no Terra em Transe. O Piauinauta, observando do espaço, não precisa concordar com a opinião do blogueiro. Mas publica a coluna assinada.


EVERI RUDINEI CARRARA:escritor e advogado fone 0xx18 3625 7657

H Dobal


Netto de Deus

H. DOBAL

poeta BARRIPI, de Timon (MA)


Fez da pena o bacamarte
E do papel a trincheira
Para defender a arte
Que usou a vida inteira.

Desfraldando o estandarte
Desta causa sobranceira
Transformou em baluarte
Da Cultura Brasileira.

Mas quem na terra trafega
Vem o tempo e se encarrega
De dar o ponto final.

Teresina comovida
Lamenta pela partida
Do POETA H. DOBAL.
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O Piauinata recebeu de Gisleno Feitosa, leitor da página, poema de BARRAPI, poeta da cidade de Timon (hoje o blog tá mais maranhense que do lado de cá do Parnaíba). Ele mandou por achar ter o espírito do Piauinauta. Obrigado.Caricatura de Netto de Deus.

A Casa da Árvore


Sandra Chaves, fotógrafa. Rua Bambina, Botafogo, Rio.
Quase todo menino teve uma casa na árvore,
mas nem toda árvore tem uma casa na casa...

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