Confesso, sem queixas, mágoas ou ressentimentos, que passei a infância e a adolescência convivendo com loucos de todo gênero. A lembrança mais antiga que guardo na memória é a de um pigmeu nordestino, com a barriguinha redonda e proeminente e os olhos roídos de tracoma. Era o Bertinho, um doido manso que falava aos arrancos e comia toda versidade de semovente, de ratazana a gambá. Em nossa casa, os doidos eram tantos que, pelo menos um deles, acabou incorporando-se à família. Edison do Ministério de Nossa Senhora apareceu lá em casa numa tarde qualquer de agosto, em meados da década de 60. Pediu água e farinha. Bebeu, comeu e dormiu como dormem os gatos e os justos. E foi ficando, ficando até tornar-se "o filho menos louco de dona Purcina". Viveu conosco por mais de trinta anos, até o dia em que a "indesejada das gentes" veio reclamar-lhe o corpo. Nunca se soube de onde veio ou para onde ia. Dir-se-ia um anjo tresmalhado e estúrdio que, bêbado de luz, errou a porteira do céu e pousou entre nós. Não por acaso, de gozação, eu costumava chamar dona Purcina de "a matriarca dos loucos". Ela os acolhia, alimentava, protegia e, principalmente, respeitava-os. Com ela aprendi que os limites que separam a sanidade da loucura são tão tênues que, não raro, tornam-se invisíveis. Quis o destino que ela própria, que parecia feita de lógica e certeza, aos 80 anos de idade, fosse seqüestrada pelo Alzheimer e passasse a habitar um mundo ensombrado onde não penetrávamos. Não podendo resgatar "seus loucos" para o mundo dos "normais", deixou-se levar pela correnteza da insanidade.
Essas reflexões me ocorrem quando leio no Portal do Sertão a notícia de que Oeiras está em ebulição por causa do "Bazar do Hermínio". Hermínio Antônio da Silva, para quem não sabe, era um ex-combatente que, atordoado pelos horrores da Segunda Guerra, regressou a Oeiras e começou a preparar-se para o pior: uma guerra ainda mais devastadora e prolongada. Para tanto, passou a juntar tudo o que lhe parecia necessário, de carvão vegetal a cera de abelha, passando por latas de conservas, facões, cordas, sanfonas, relógio sem ponteiros... Até aí, nada de extraordinário: os loucos, como se sabe, costumam transportar ou armazenar coisas sem serventia. Extraordinário, digo, deplorável é o fato de todas aquelas inutilidades armazenadas pelo infeliz terem sido vendidas por espertalhões de todos os estratos sociais. Ao descobrirem que seu Hermínio fazia jus a uma magra aposentadoria, passaram a explorá-lo sem o menor pudor. Vendiam-lhe tudo: de raízes amargas a carcaças de automóveis colhidas em ferro-velho. Sanguessugas, hienas e abutres sugavam-lhe o sangue, tiravam-lhe a carne, raspavam-lhe os ossos...
A convite do Dr. Carlos Rubem, experimentei a tristeza de visitá-lo. Ele, uma mulher triste e um rapaz "fronteiriço" ocupavam um exíguo espaço da velha casa de adobe, visto estar o restante do imóvel entulhado de trastes. Fui informado de que os três passavam privações, já que os caraminguás do velho destinavam-se à compra de lixo. Transformaram seu Hermínio em "celebridade", com direito a aparição na telinha e nas páginas dos jornais sensacionalistas, ou seja, em bicho de zoológico, exposto à curiosidade do mundo. Explica-se: num mundo onde tudo é espetáculo, nada mais "normal" do que "espetacularizar" a loucura.
Finalmente, um deus piedoso resolveu conceder-lhe algum descanso. Agora a cidade agita-se na tentativa de "arrematar" algum suvenir do "Bazar do Hermínio". Que tenham pelo menos a dignidade de comprar as inutilidades do espólio em liquidação pelo preço que as venderam ao infeliz. Que Deus se apiede da alma dessa gente honrada, caridosa e rezadeira. Amém.
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Cineas e o Ypê Branco que ele plantou na entrada da Universidade Federal por Netto de Deus. Caras de Teresina é uma exposição (a EXPOCUIA) que acontece na Oficina da Palavra em Teresina.
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