quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Defunto Descartável

Deusdeth Nunes


No mandato de 1988 a 92, Gonçalinho era prefeito de Piracucura (PI), situada a 180 km de Teresina, com fama de ser uma das cidades que tem mais doidos no Estado. Ele mantinha um serviço de ambulâncias para transportar os munícipes doentes para a capital porque no interior o melhor médico é a ambulância.E com gasolina. O eleitor-doente não estava nada bem e com apenas dois dias no Hospital Getúlio Vargas,bateu as botas.

Naquele tempo estava deflagrada uma verdadeira guerra entre as mortuárias da capital. A mortuária "Mamãe está chamando" disputava pau a pau a preferência dos sobreviventes com a similar " Você será o próximo".

Doente morto e abotoado, só restava ao motorista da ambulância municipal piracuruquense trazer o corpo para as providências defuntárias. Foi aí que deu zebra. A imprensa havia denunciado a guerra das mortuárias, briga por defuntos, uns tirando quem já morreu de dentro dos caixões das outras. Por via disso, na "cancela", no posto policial, a PM destacava guarnição para evitar qualquer problema com os defuntos alheios. E lá sem vem a ambulância de Piracuruca com o defunto ainda fresquinho.Não passou no posto. Bronca do cabo de polícia. "Orde é orde e sem os documentos do falecido, atestado de "órbita" e assinatura do doutor, num passa aqui não". O motorista prefeitural enxugava o suor da testa. Fazer o quê ? Celular, a salvação. Ligou para o prefeito.Gonçalinho meio surdo. O homem tinha que gritar:

-O cabo num quer deixar eu levar o defunto não! Quer um tal de CPF e "dentidade".O que diabo é que eu faço,homi!!?Prefeito Gonçalinho, um poço de sabedoria, mandou que ele desse o telefone ao cabo de polícia. Fala alto que ele é surdo, disse entregando o celular ao PM.- Que qui houve, homi ?Esse rapaz que morreu era um homi direito, porque você quer prender ele ? - "Doutor, ordi é ordi. O carro pode passar mas o falecido sem documento num passa." Uma pausa para a sabedoria piracuruquense entrar em cena. Gonçalinho decide:

- Então façamos o seguinte. Se o carro tá com os documentos em orde, o carro vem e o defunto que num tem os documentos,fica aí.Tou precisando da ambulância para levar já outro, mestre !

O cabo foi rápido no gatilho:

- Prefeito é o seguinte.Dessa vez eu vou considerar o senhor.Pronto. O defunto tá liberado. Mas é só essa vez !

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Deusdeth Nunes, o Garrinha, o cronista que começamos a ler no "Prego na Chuteira", que todo piauinauta conhece. Quem não é do espaço sideral pode encontrar o Garrincha em "As Coisas do Piauí"

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