domingo, 3 de maio de 2015

no Nepal não tem carnaval...


(Edmar Oliveira)

“no Nepal não tem carnaval,
mas eu vou fazer meu carnaval no Nepal”

Canto o refrão de uma marchinha de carnaval de Teresina nos meados dos anos 1970. Éramos jovens e cantávamos a letra do nosso poeta Durvalino Couto em plena Avenida Frei Serafim. A letra falava de gelatear – um verbo derivado do antigo bar Gellati – onde tomávamos nossa santa cerveja de fim de tarde. Gelatear de bar em bar era uma peregrinação etílica na cidade verde. E ainda falava de olhares em cada esquina a nos vigiar, nós que fazíamos um carnaval na seda do saquinho da pipoca oriental. O picolé amazonas e a pipoca oriental foram guloseimas de nossa juventude. O oriente era ali nos prazeres terrenos.

E o Nepal a terra santa do Buda, dos templos sagrados, do silêncio e da paz dos monges, do frio da montanha mais alta do mundo. A letra do poeta nos deslocava para a paz do Himalaia, nós que sofríamos os anos de chumbo no Brasil. E o Nepal se fez paraíso dos nossos desejos de subverter o sistema da Teresina conservadora de então.

Esses versos e a melodia da marchinha ecoaram nos meus pensamentos quando chegou a notícia do devastador terremoto do Nepal com a avassaladora cifra de mais de dez mil mortos. Templos da história da humanidade que se desmancharam com o sismo. Aquele meu paraíso silenciado, mas um imaginário guardado nos versos do poeta Durvalino, desmanchava-se num terremoto destruidor.

Na mesma semana em que a famigerada Câmara dos despudorados ressuscitou o projeto de terceirização dos trabalhadores que abalam minhas crenças de lutas políticas de toda uma vida. De uma avassaladora sanha de baixar a maioridade penal para encarcerar crianças em nome de combater o crime. Reviraram o estatuto do desarmamento e querem armas para que cada um cuide de si. Tempos de panelaços da direita e do imoral desejo de ter a ditadura de volta. A polícia bate em professores no sul e aqui mata crianças na favela. E um governo do partido de ex-trabalhadores avança num retrocesso sem igual. É, só faltava mesmo o meu paraíso desabar. Meus sonhos, meu carnaval e o Nepal.

Pior é saber que o custo da recuperação do patrimônio histórico do Nepal tem o mesmo valor dos desvios no escândalo da Petrobrás. Mas aqui não tem terremoto e tem carnaval.


O ARCO DO MUNDO


O arco do mundo
Se curva diante do horizonte
Ante a essência das cores

Que dão sentido à paisagem
Por mais infinita que se pareça a distância


Há certeza de luz além das estrelas
Onde o silêncio do cosmo
Murmura pálidas nebulosas
Repentinamente algo nasce e morre
Mediante explosões constantes


Agarre seus sonhos
E permita voo à imaginação
O arco do mundo
Aguarda as suas ideias


(Climério Ferreira)




NÁUFRAGOS

(Edmar Oliveira)


Outro dia tive conhecimento de uma apresentação Power Point em português de Portugal que comparava invasão de fronteiras em diferentes países. A moral da história é que a invasão de fronteira em vários países periféricos e/ou em conflito geravam punições severas, enquanto a “invasão” das fronteiras da Europa era premiada com abrigo, assistência, ajuda financeira. Algo como o nosso “casa, comida e roupa lavada”. A apresentação que circula no território livre da internet é um “protesto” europeu ante a facilidade de migração para o mundo civilizado. Engraçado que reivindicavam um comportamento de países “não civilizados” para lidar com a migração.

Uma atitude fascista como é comum no comportamento europeu de classe média. A xenofobia odeia os migrantes africanos a os culpa pelas dificuldades econômicas que o mundo atravessa. Não se quer perceber que a prosperidade europeia foi fruto dos saques coloniais de cruel dominação aos povos africanos. E que os africanos espoliados buscam na civilização as migalhas das riquezas que lhe foram roubadas.

E o mundo assiste insensível à travessia da morte que vitima africanos no Mediterrâneo. Uma cena cruel: náufragos agarrados em cadáveres que boiavam chegam à costa europeia após desastre ao mar. Os traficantes de escravos modernos recebem o pagamento antes da travessia, de modo que não se importam com o resultado da mesma. A sobrevivência de embarcações superlotadas é puro sorteio dos deuses.

O mundo civilizado exigiu um acolhimento melhor a estes náufragos. Reuniões foram feitas pelos políticos para o “abrigamento” mais civilizado das vítimas. Patrulhar o mar para recolher os condenados antes do naufrágio. Mas, ao mesmo tempo, ter como missão recolher os barcos e os inutilizar para evitar sua reutilização. Assim evitam-se novos náufragos, mas dificulta-se a migração, atendendo – de certo modo – os autores do protesto iniciais. Como dizer que o mundo civilizado mantém-se com uma dose de xenofobia. 


Penso que os náufragos da insensibilidade se afogam em comportamentos fascistas e estes, sim, são os náufragos que ameaçam afogar a própria civilização. 


muro em Teresina na foto de Paulo Tabatinga


Lição de caligrafia

(Geraldo Borges)

No tempo em que estudei o curso primário, no  grupo escolar Teodoro Pacheco, que ficava na esquina da Praça João Luis Ferreira a nossa professora costumava  ministrar ditado durante a aula de português.  Era um exercício interessante. Avaliava o grau de entendimento que os alunos tinham da língua portuguesa. E ao mesmo tempo exercitava  a leitura. Nem todos se saiam bem, a ponto de escrever todas as palavras do texto corretamente. Alguns trocavam o j pelo g. Os acentos atrapalhavam muito. Mas, no final das contas o ditado era um instrumento  didático bastante eficiente. Havia também exercícios de cópias.

Eu fiava admirado como é que a minha professora, depois que acabava o ditado conseguia corrigir  aquele monte de trabalho, com letras de todo jeito e qualidade. Era dose. As pessoas que tinham letras boas facilitavam. Eu, pelo contrário, tinha uma péssima letra. Às vezes nem eu mesmo  a entendia.E eu acho que a caligrafia ajudava na nota. Nesse tempo não havia caneta big. Usávamos caneta de pena com tinteiro e mata borrão, e lápis com borracha. Havia muito borrões em nossos cadernos. Desenhos surrealistas E geralmente desenvolvíamos a nossa escrita com muito menos rapidez do que hoje em dia.

No grupo escolar também estudássemos caligrafia. Cada aluno tinha um caderno para  essa tarefa. Os exercícios de caligrafia consistiam em copiar um provérbio edificante desse que padronizam a vida; que confundem a realidade do mundo com a sua mera descrição; era como se através da caligrafia pudéssemos nos tornar um bom cidadão. Difícil  desconfiar de um sujeito que tenha uma boa caligrafia. Na China e no Japão a caligrafia faz parte de sua cultura milenar. E uma maneira estética de se expressar. No Brasil, com certeza, deve existir por aí alguns bons calígrafos.

Por mais que eu me esforçasse para desenhar uma letra bonita, não conseguia. Eu não conseguia encaixar as letras nas linhas paralelas, nas linhas retas. Elas me davam uma sensação de limite. Parece que a minha mão era mais veloz que a minha vontade e me conduzia através de seus garranchos. Não quer dizer, com isso, que eu detestasse a minha letra; ela deve ter melhorado com o tempo, era muito vertical. Hoje é mais horizontal.

Havia  alunos que mordiam a língua para poder arredondar as letras; isso me fazia lembrar de pessoas adultas, camponeses acostumados ao cabo da enxada, querendo apreender a ler e escrever, pelo menos o seu nome.
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P/S: Na semana passada, conversando, casualmente, com uma professora num ponto de ônibus. Conversa vai conversa vem, antes de seu ônibus chegar ela me disse que ainda utilizava o ditado com os seus  alunos, e também exercício de caligrafia, e cópia.
De repente voltei a infância e revi  na professorinha a minha antiga professora do  primário.

Mojica por Máximo


A violência urbana ontem e hoje




(Edmar Oliveira)

Eu fui a uma exposição no MAR (Museu de Arte Rio) sobre a ocupação do espaço urbano chamado de Pequena África. Onde o atual prefeito, que fez o MAR, faz as intervenções no que se convencionou chamar de Porto Maravilha.

A exposição denuncia como os primeiros habitantes da Pequena África tiveram que subir os morros para que a cidade branca se fixasse no centro do Rio. E prova como a intervenção urbana do passado apagou as marcas históricas agora descobertas no novo projeto.

Na verdade a atual intervenção urbana resgata o passado de nossa história do maior comércio de seres humanos do planeta e desnuda o cais do Valongo, por aonde chegaram os africanos; o Cemitério dos Pretos Novos, onde os moribundos da extenuante viagem e os doentes e sem dotes para o trabalho braçal foram deixados morrer e enterrados; além de revelar sítios arqueológicos que mostram os usos e costumes dos moradores da Pequena África.

Tudo muito bonito. No mirante do MAR observa-se o movimento atual. A retirada do feio e paquidérmico viaduto da Perimetral que cortou ao meio o lindo mercado municipal. (Onde funciona o restaurante Albamar é a única das cinco torres do mercado que restou). A recuperação da Praça Mauá, antes uma passagem de marinheiros e ambiente de prostituição. A recuperação dos armazéns do porto e uso para espaço cultural. A recuperação do primeiro prédio do rio, onde funcionou o jornal “À NOITE” e a fabulosa rádio Nacional (a reforma parece paralisada pelo escândalo das empreiteiras com a Petrobrás, o que é pena). O lindo projeto do arquiteto valenciano Calatrava do Museu do Amanhã, que ocupa o antigo píer do porto e se projeta na baía de Guanabara. Vale a pena a visita e a vista do projeto e do museu.

Mas... fiquei matutando no modo de fazer o atual projeto e segui pequenas pistas que a própria exposição deixa escapar como contradições. Um belo vídeo sobre a construção do teleférico do morro da Providência mostra a demolição de casas e a transferência de famílias para outro lugar longe dali, fazendo a perda de relações de moradores da comunidade e testemunhando a infelicidade de alguns que foram retirados à força da sua moradia. Num depoimento, um antigo morador verbaliza que lhe arrancaram o seu passado, a sua memória. Um líder comunitário diz que sabe que vários moradores tiveram ataques do coração e morreram com a desocupação. Outro vídeo mostra a demolição de várias moradias e a transferência de pessoas no processo que o capitalismo chama eufemisticamente de “gentrificação”. Em nenhum momento, denuncia um depoente, foi pensado um projeto que contemplasse o assentamento naquele local de pessoas que foram retiradas. Um depoente escancara: morou a vida toda ali “quando a barra era pesada”, agora que vai ficar bom “eu não posso mais ficar?”

Lembrei da batalha de moradores, que acompanhei num antigo blog, resistindo a desocupação forçada da prefeitura. À noite casas eram marcadas com sinais de que seriam demolidas e os moradores eram obrigados a sair sem ter para onde ir.

Na época escrevi que o poder público deixava ocupar para desvalorizar e em conluio com empresários o lugar degradado era comprado à preço de banana para uma “gentrificação” posterior. Isto é, o pobre – o antigo morador – era usado como meio para a desvalorização e depois expulso, para a modernização. E não podemos esquecer que isso foi feito para que o lugar ficasse belo.
Fiquei pensando que no futuro bem distante um novo museu fará uma exposição sobre a forma violenta de desocupação do porto maravilha de hoje, que repete a história contada agora da Pequena África.





RAZÃO NENHUMA


Era uma voz diferente da sua.
A cara pintada com fuligem, 
a pele macilenta, os olhos de

um negro antigo, sem penumbra.

Penso em meus dramas mais íntimos
como uma noite quilombola.

Sou branco, de uma palidez
aturdida pela cal das eras. Mas
tenho fome de cores e a carne
não me basta.

Por isso ouço aquele canto
como quem engole o vento
ante a tela.


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desenho: Gabriel Archanjo




...estive no quarto de Getúlio


...estive no quarto de Getúlio
abafado, úmido, intolerante
pijamas, janelas, cortinas e abajur.
corredores, gritos agonizantes...
mesas, talheres e prateleiras.
inferno astral no casarão
um tiro de misericórdia enlouquecido
...estive no quarto de Getúlio
abafado, úmido, intolerante.

(Rua do Catete 765
 ao fundo a baía de Guanabara)

               maioba/jan/2013.

Patrícia Mellodi canta Torquato Neto



Um Torquato de primeira, como disse Climério Ferreira