domingo, 23 de outubro de 2011

Viagem ao Passado III

Edmar Oliveira

Palmeirais cresceu muito no rumo de Teresina. Fomos atravessar o Cadoz, riacho que ficava muito lá em cima como que a dividir a cidade da zona rural, tendo passado por casas e bairros que não conhecíamos. Entrando vagarosamente na cidade, só o chão se fazia diferente. Em vez das ruas de areia branca dos meus pés descalços, um calçamento novo, algumas vias já em asfalto. Só o chão mudara. O céu da mesma cor, aquele azul de arder nos olhos com algumas nuvens de algodão que caminhavam depressa, como se procurassem água para se fazerem cinza. Em vão.

As casas desfilavam como se perfilhassem na forma e cores que tínhamos na lembrança. Geraldo, meu companheiro dessa aventura em busca do nosso passado, tinha os olhos brilhando e inquietos, como se tentasse refazer nas suas memórias as imagens que apareciam enquanto percorríamos as ruas procurando a beira do rio. Tínhamos sido avisados, que um lugar chamado “Tibungo”, muito na beiro do rio, por trás da antiga Usina Elétrica, tinha uns quartos de aluguel. “Tibungo”! A onomatopéia do mergulho que há muito tempo escutávamos quando um corpo “tibungava” nas águas do Parnaíba. O lugar não existia no nosso passado, mas como derivava de um verbo da nossa infância era como se já existisse.

Achamos a igreja, as mangueiras da praça e a antiga Usina. O “Tibungo” devia ser descendo a rua no rumo do rio. Era uma mistura de restaurante, botequim e pensão, onde o Reginaldo Rossi cantava canções bregas. Dona Zenóbia, a dona do lugar, nos recebeu com uma cerveja super gelada e logo o rio, que passava manso, escutava reminiscências e graus de parentesco numa cidade em que toda a população se conhecia. Zenóbia, depois das praxes de apresentações dos filhos da terra (filho de quem com quem?) telefonou para dois primos meus. Tínhamos nos conhecidos quando crianças. A moça, que ficara com as belas feições da tia, era a primeira dama da cidade. Seu irmão, o Secretário de Cultura. Então estávamos apresentados e toda a cidade já estava se interrogando o que dois forasteiros faziam ali num dia de semana, conversando com as autoridades da cidade. Foi uma prosa boa, almoçando carne de sol, e falamos de nós mesmos, sem as patentes que recebemos enquanto envelhecíamos, apenas das crianças de muitos anos atrás. E enquanto conversávamos Zenóbia queria saber se preparava a janta, uma galinha que tinha de ser morta ainda cedo. Era como se o sacrifício da galinha nos recebesse no passado.

A tarde pareceu pequena para tanta conversa de uma outra época. Geraldo nascera na beira do rio, do lado de lá, um pouco mais abaixo. O meu rio era dos dois lados. A Barreirinha, tão perto de Palmeirais, do lado de cá. A casa do meu avô materno no final da rua da Usina, rio abaixo, e o porto, por onde se atravessava para as Queimadas, terras dos Alvarengas, um deles casado com uma tia minha e onde meu avô fazia roça.

Acompanhei o velho Pedro Solano, meu avô, na travessia do rio para chegar na roça, nas terras das Queimadas. Pequenino, quando minha avó paterna lavava roupa na beira do rio, bem ali ao lado do “Tibungo”, eu pescava piabas com um alfinete dobrado em forma de anzol e uma linha de carretel. Parei de escutar os presentes e fiquei olhando a beira do rio, vendo a vó Bebela, com sua farta cabeleira em coque, já branquinha, ensaboando a roupa e colocando nas pedras do quaradouro. Quando ela desapareceu voltei à conversa.

E ficamos gargalhando, falando dos parentes, da casa dos Alvarengas, do outro lado do rio, que já era o Maranhão; do meu avô paterno, seu Sessé, tabelião da cidade. E o rio corria manso, escutando as conversas e fazendo umas pororocas quando achava que falávamos mentiras. Que são apenas algumas verdades que esqueceram de acontecer, como sentenciou Quintana.

Ali, naquela tarde morna e cheia de lembranças, Da Costa e Silva, nosso poeta maior da vizinha cidade de Amarante, nos segredava: “Saudade! Amor de minha terra... o rio / Cantigas de águas claras soluçando”...



Aguardem o quarto capítulo dessa aventura sentimental...
Fotos: Edmar, igrejinha que achava grande; rio Parnaiba, manso.

Quem quiser ler os outros capítulos é só colocar Viagem ao Passado na pesquisa do blog. Todos os capítulos estarão disponíveis.


Omar Kadafi


         
Geraldo Borges

         Já não levantas tuas tendas no deserto
         Já não lês o livro verde da esperança
         Tuas tribos se dispersaram
         E os teus poços de petróleo?

         Sujaram as mãos das nações ocidentais
         Perdestes teus oásis, tuas odaliscas
         Cavalgando as miragens do poder
         Beduíno que perdeu o horizonte.

         Teu sol já não brilha no deserto
         Perdestes os teus navios, teus camelos
         E já não tens aos pés um palio aberto.

         Se o teu coração não mais pulsa no teu peito
         E se de fato, Omar, tu estás morto
         Os falcões já estão tramando o seu proveito.

kloZ (1000TON)

Outubro em Brasília


A chuva chegou

Inicialmente calma e sorrateira

Se esgueirando pela grama que o verão secou

Escorrendo caudalosa na soleira

É chuva para molhar o chão

 E trazer de volta o belo colorido

Que a cidade sempre ostenta nesta estação

 Após a longa temporada do tempo ressequido

A chuva chegou

Já se ouve canto da cigarra

Anunciando em definitivo a primavera

Tempo de pássaros em algazarra

As flores tingem sua aquarela

A chuva chegou

O espaço plano se torna jardim

A beleza cumpre seus deveres

Indiferente aos inúmeros poderes

(Climério Ferreira)

Fortaleza desconsolada


Lázaro José de Paula

FORTALEZA  DESCONSOLADA
TEUS OLHOS   ANUNCIAM
UM  PREMIO A QUEM  VOLTAR
NO  PROXIMO VERÃO
TEU  GRITO  PRIMAL AFASTA  OS  VAGALUMES
NÃO  FECHO  ABRO  AS MAÕS
PARA  A  FUMAÇA  SUTIL  PODER  ENTRAR
AGORA  O  REI  ESTà EM  XEQUE
FATAM  SÓ  DOIS CLAROES
DA  ESTRELA  MAIS VERMELHA
PRO  FIM  DO  TUNEL  DE  ALABASTRO
CAMALEOES  AZUIS  ROSNAM  EM PLENA  PRIMAVERA
E  S  F  I  N  G  E
FINGE QUE  O  AGORA  É  ADVERSO
É   DE   FATO

convalescença

Pretéritas Canções II

É SÓ VOCÊ QUERER


Tenho ternura por você
Que criatura é você

Fico em casa com você
É só você querer

Eu posso mudar de fé
Não tomo mais capilé
Eu posso amansar maré
É só você querer

Eu faço a fome comer
E faço o medo tremer
Faço o valente correr
É só você querer

Eu posso falar alemão
Mando asfaltar o sertão
Transformo rock em baião
É só você querer

Eu posso dormir de pijama
Eu deito a fama na cama
E sigo sem fazer drama
É só você querer

Num sonho bom de sonhar
Eu planto um lindo luar
Lá no fundo do pomar
É só você querer

(Climério Ferreira)

flores de monturo


Cinéas tem a mania deliciosa de abrir a semana de seus amigos de forma luminosa. Ás segundas feiras, dias duros do início da semana, escolhe um poema entre os seus prediletos e manda para a caixa de correio dos seus amigos, entre os quais, por sorte, me incluo. Vez por outra atreve-se ao cultivo de suas letras e planta um hai-kai. Este não pude deixar de publicar, com foto, comentário e tudo:

"Irmãos e irmãzinhas: eu vos asseguro que o monturo é fértil. Há pouco mais de um ano, armado com uma maquininha  simples, passei a vasculhar os terrenos baldios de Teresina à cata de preciosas inutilidades. A insólita labuta já me rendeu uma exposição e um projeto de livro. Quando penso que já vi tudo, novas revelações.Começo a desconfiar que, a  exemplo do Livro de Areia, de Borges, não viverei o bastante para pôr um ponto final nessa história. Uma semana luminosa para todos".

Não é montagem, asseguro;
é a singela beleza
que só se vê no monturo.

(Cinéas Santos)

reportagem

MEDUNA, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Quantos gritos de desespero hão de soar sem eco nos céus da cidade?

Ferdinand Cavalcante Pereira*



Este artigo não tem a pretensão de fazer a história da psiquiatria no Piauí, mas de chamar a atenção para os últimos acontecimentos sobre o destino do acervo de documentos (livros de assentamento de internação, diagnósticos, prescrição médica, relatórios, atas de reuniões, etc.) da passagem de internos, procedimentos terapêuticos, inquéritos, e registros de óbitos, que podem se perder e assim comprometer a genealogia da psiquiatria local. Presume-se que esse material deva receber inicialmente um tratamento classificatório, por tema ou período de tempo, de maneira que possa facilitar a pesquisa.

A Clínica Psiquiátrica privada tem início no Piauí no ano 1954 com a inauguração do Sanatório Meduna (Homenagem ao médico húngaro Ladislau von Meduna). Foi tida como uma “experiência pioneira e revolucionária para o Nordeste”, no tratamento dos “doentes mentais”, considerados pela psiquiatria convencional como indivíduos portadores de afecções nervosas dos grupos das neuroses e psicoses. Essa empresa reivindicou para si tardiamente o contexto de adesão ao “movimento de humanização” do sistema de assistência ao doente mental. Movimento que teve início no país nos primeiros anos do século passado. Somente cinqüenta anos depois, chega a Teresina, pela iniciativa do médico psiquiatra Clidenor de Freitas Santos.

Há muito tempo atrás se pensou que esses indivíduos estivessem possessos de “entes malignos” estranhos à condição humana. Evidente, que a medicina moderna evoluiu e progrediu nos seus conceitos e tratamentos. O tratamento dessas afecções mentais normalmente valia-se de eletrochoques, psicotrópicos, e o confinamento dos supostos doentes em celas, isolando-os do convívio da sociedade. Não havia diferença entre um individuo considerado “alienado” ou “criminoso”. Eram vistos como populações perigosas. Argumentos lombrosianos justificavam sua segregação social. Pobres, indigentes, loucos sempre foram tratados com indiferença pela sociedade. Uma convivência conflituosa, de intolerância, muitas vezes silenciada.

Os estabelecimentos especializados surgiram em toda Europa, e no Brasil conhecidos como Casas de Alienados, voltados para assistência desses doentes. Esse tratamento segregador de populações sem assistência pública decente e a pretexto de uma assistência humana foi transformado pelo desenvolvimento do capitalismo em mercadoria - a saúde humana - e passou a interessar os inúmeros investidores privados das áreas médicas e da influente indústria farmacêutica no mundo ocidental.

A história da experiência social do Meduna precisa ser resgatada do processo de ocultamento pactuado,¹ de iniciativa de segmentos da sociedade local muito pouco interessados pela preservação de parte da memória e história da medicina psiquiátrica no Piauí.

A venda do Sanatório Meduna, para dá lugar a um modernoso empório comercial, faz parte de uma frente de valorização imobiliária em franco processo de crescimento em Teresina. Entretanto, representa uma perda significativa para a memória da medicina e da sociedade, menos pelo reconhecimento tardio do “interesse público” por lei municipal, do que face ao valor incalculável do “patrimônio social”, formado pelos operadores (médicos, enfermeiros, cozinheiras etc.) e seus assistidos durante os cinqüenta anos. Muitas práticas médicas realizadas ali submeteram pacientes internos e operadores, ao controle do corpo e das relações de saber/poder médico. Portanto, a perda dessa prática social é risco evidente de um desperdício da experiência de vida, do sofrimento dos corpos que durante esse tempo se esvaiu e passou despercebido aos olhos insensíveis dos homens públicos.

Cada telha, madeiramento, pisos, paredes dos pavilhões, mangueiras, cajueiros, bancos de cimento dos pátios internos, cobogós dos muros foram testemunhas de muitas dores e sofrimentos sufocados. E quantos gritos de desespero ainda ecoam nos céus da cidade?

A história do Meduna é, também, em parte, a história do bairro Cabral, da constituição de populações negras e pobres que foram se formando no labiríntico arruamento de quadras de tamanhos irregulares, no entorno do perímetro do sanatório. “Ruas sem saída, que partem e chegam a lugar nenhum”, aliás, esbarram nos muros laterais. Um detalhe, nesse complexo território, é a existência de duas populações, uma menor que mora no interior dos muros do sanatório e outra que mora no entorno, do lado de fora. Não sabemos ao certo qual tipo de relações que se estabelecem entre essas duas comunidades. Só a pesquisa social poderá revelar as peculiaridades.

A reordenação espacial sofrerá nos próximos anos alterações urbanísticas mais profundas, que afetarão diretamente essas populações sem segurança habitacional e qualidade de vida. Há mais “fogo” do que fumaça na memória desse povo! Qual história a sociedade teresinense quer preservar? Por certo, um pedaço da história da cidade está desaparecendo. O que está acontecendo com o bairro Cabral, está ocorrendo com outros da cidade, e não é uma particularidade destes, é um processo contínuo conhecido pelo nome de urbanização acelerada, agravada pela hipervalorização da especulação imobiliária na Capital, decorrente do crescimento desordenado das capitais regionais.

É preciso que as instituições de ensino e pesquisa, públicas e privadas, mobilizem esforços para, com urgência, desenvolver projetos sobre a compreensão da situação sócio-econômica dessas duas populações de moradores do Cabral. Isto, porque, em breve, na condição de “desalojados” de suas antigas moradias, semelhante às populações de “barrageiros”, quando da construção de usinas hidrelétricas, ficarão a mercê da própria sorte, empurrados mais uma vez para “áreas periféricas” de Teresina. No passado, seus ascendentes já haviam sido afastados, como os “indesejados”, pela elite proprietária do antigo centro urbano. Um processo contínuo de recriação e ampliação do centro comercial da capital.

Portanto, essas “comunidades” precisarão de novas instalações habitacionais decentes, quando do momento das intervenções, públicas e privadas, de novas vias de escoamento do trânsito naquele local, para viabilizar o acesso ao emergente empreendimento comercial na referida área. Atentem para a Rua Mato Grosso, será a principal via de acesso entre às Avenidas Frei Serafim e Jacob Almendra, que passará ao fundo do Sanatório em direção a ponte estaiada.

Há quem diga que já viu, entre o acervo de obras raras de literatura universal, patrimônio-espólio do fundador do Sanatório, um retrato a óleo do médico Meduna, pintado pelo nosso Cândido Portinari. Imaginem o valor que essa obra tem no mercado de arte. Que destino terá sido dado? Os piauienses tornarão a vê-la um dia exposta no hall de entrada do Meduna, seu lugar de existência permanente? Uns dirão, talvez sim; outros, não!

Daqui a pouco, milhares de teresinenses aproveitarão a ida ao “novo” Shopping e após as compras, poderão observar o que sobrou do Meduna (a fachada do “castelo quixotesco”). Em meio a “uma dissonante atmosfera turística”, os visitantes levarão lembrancinhas - broches de lapela, cartões-postais e cacos de azulejos decorativos - para seus confortáveis apartamentos. O caminho parece aberto às empresas que estão à caça de ávidos consumidores, sem distinção de renda e credo. Anunciam até que a capela do Sanatório poderá vir a ser local de peregrinação de fiéis em busca de milagres. O boom religioso salvará a combalida economia? É pouco provável.

Se o leitor me permite finalizar, parafraseando Foucault (1979), uma verdade está à espera dos nossos olhos para ser vista, ou à espera das nossas mãos para ser desocultada.



*Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais – DCIES/UFPI

Nota:

¹ Conceito proposto pelo historiador Paulo Machado, para expressar o processo comandado por agentes sociais, resultado de um pacto entre estes e orientado para encobrir os mecanismos e as formas constituintes da dinâmica social, com objetivo único de consolidar as versões convenientes dos acontecimentos e suas relações intrínsecas.
fotos de Paulo Tabatinga publicadas originalmente em "von Meduna"

Cabra Bom: Luizinho Calixto

domingo, 9 de outubro de 2011

VIAGEM AO PASSADO II

Edmar Oliveira
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O velho na rede procurou com um olhar inútil os visitantes que desciam do carro. Nos “abancamos”, no jeito de dizer sertanejo, nas cadeiras que esperavam visitantes, que ao sentar puxavam a prosa depois de um “bom dia”, abençoado na saudação “Deus seja louvado”. Explicamos, eu e meu companheiro Geraldo, que fazíamos uma viagem ao passado. Já estávamos velhos, mas nascemos, os dois, naquelas paragens. Naquela estrada que ia dar em Palmeirais e voltava na mesma pisada, já que no nosso tempo não tinha a estrada que saia para Amarante.

O velho da rede nos procurou com o olhar inútil. Notamos que não nos enxergava. Mas foi só começar a prosa que a memória do velho enxergava muito melhor que seus olhos cansados. Quando soube quem eu era, quase me fez tomar a benção por ser tio da minha mãe, isto é, o Valmir Soares, como se chamava, era meu tio avô. Nascera e se criara ali fazia quase um século. Fora umas viagens a Palmeirais, que agora eram mais freqüentes por conta de uma fisioterapia, e algumas outras a Teresina, seu mundo era o Casteliano dos Palmeirais, ali com sua igrejinha de São João, que eu conhecera criança. Aquele pátio enorme, na frente do casarão que via as notícias chegarem nos caminhões e carros que ali paravam por um dedo de prosa com tio Valmir e um copo d’água fria com um café adoçado que servia aos passageiros de sua vida. Dona Neuza, esposa do Valmir, entrou na prosa lá da sala, onde fazia as unhas, e dizia que meu avô Sessé botou o nome de uma neta de Neuza em sua homenagem. Procurei na revelação desnecessária por uma ponta de ciúmes que dona Neuza fazia em Valmir. Ele mudou de assunto e dizia que mesmo aquela vida absolutamente repetida passara com uma velocidade maior que a do pau-de-arara, que já se acabara. Ficamos em silêncio por um tempo.

Outra vez na estrada foi a vez de Geraldo ficar muito animado com o reconhecimento da paisagem. Passamos por uma ponte o riacho dos Negros. Logo estávamos num povoado do mesmo nome. Paramos o carro numa sombra de um cajueiro, na frente de uma casa, que tinha um telefone público, onde um velho tentava fazer uma ligação. Achei o velho forte e corado parecido com um irmão do Geraldo que morava em Teresina. Fui descendo e perguntando: “o senhor é um Borges?”. Como ele confirmou, desconfiado por não me conhecer, atalhei: “pois eu trago outro Borges para falar com o senhor.” Quando ele reconheceu Geraldo foram abraços afetuosos de dois primos que não se viam há muito tempo. Proseamos, sentados em cadeiras de macarrão (tipo de plástico que só se usa no Piauí) e eu fiquei ouvindo o Geraldo perguntar por familiares. Quando falou o nome de uma tia, eu li o nome da escola municipal que coincidia com o nome de quem eles estavam falando.

Conversa boa, mas tínhamos que ir. Geraldo queria fotografar a casa em que nasceu na Bacaba. Só que ficava na outra margem do rio, no Maranhão (é que por conta dos caminhos da época, Geraldo foi registrado num cartório de Palmeirais. Daí sermos conterrâneos. O rio não nos separava. Ele nos une). O primo ensinou onde sairíamos da estrada para a beira do rio. Se déssemos sorte um canoeiro nos levaria à Bacaba.

Mesmo em baixa velocidade quase passamos do lugar da entrada: Bacabinha, referência à Bacaba do outro lado do rio. Como o portão estava aberto, fomos entrando. Chegamos ao pátio de uma casa grande, com barco na garagem, mas vazia. Ninguém. Caminhamos até a margem do rio. O canoeiro não estava, mas avistamos a casa do outro lado e fizemos fotografias. Geraldo nasceu do lado de lá, olhando o rio do lado de cá. Já se passara muita água desde aquele tempo, não Geraldo?

Voltamos à estrada e, mais adiante, li numa placa “Parada Barreirinha”. Me contaram que eu nasci em Barreirinhas, bem perto de Palmeirais. Fiz um retorno no carro e batemos palmas na cancela. Um menino veio correndo e nos recebeu muito bem. Nos levou lá dentro e chamou o pai, que também foi muito simpático. Contou que comprara as terras recentemente. Mas sabia do casarão na beira do rio que fora um comércio há muito tempo. Geraldo observou que as casas antes eram na beira do rio, o elo de ligação, a estrada fluvial da época. Com o abandono do rio e a construção da estrada, as casas saíram da margem do rio para a margem da estrada. Não dei a sorte do Geraldo. A casa em que nasci não existia mais porque o rio deixou de ter sua importância no transporte. Sempre soube que aquele rio é quem me levava. Sai meio que escondendo uma lágrima e entramos no carro, agora já muito perto de Palmeirais...

Como avisei antes, essa história para ser publicada no blog tem de ser dividida em capítulos. A novela continua na próxima edição.  
FOTOS: Edmar: o rio, a casa da Bacaba. A margem de lá, Geraldo. A margem de cá Barreirinhas. O rio nos une.

Gervásio: Edmar viajando ao Passado

Benoni Alencar, personagem da Provincia Submersa

Geraldo Borges

Benoni Alencar está morto. Soube da má noticia por meio de uma mensagem do Edmar. Mais um companheiro das páginas da Província Submersa que foi para o mundo do além. Para um mundo em que ele não acreditava. Sempre lutou para que este ficasse o melhor possível, mais humano, solidário, sem o idealismo religioso de uma esperança além túmulo. A sua luta sempre contínua parece que resultou em sua morte.

 Benoni fazia parte da velha Teresina, do bairro Vermelha. Menino brincava no pátio da Igreja do padre Carvalho e já fazia política estudantil. Foi presidente de diretório do seu colégio. Com a sua simpatia e sua facilidade na fala sabia agregar pessoas em sua volta. Eu o conheci quase menino, aliás, conheci toda a sua família, gente boa e hospitaleira: dona Hilda, sua mãe, a Zilda, a Salvani, a Yolanda, e o Odilon, seu irmão que, também já morreu. Lembro-me perfeitamente de sua casa, onde havia uma latada de palha no fundo, tipo rural. Ali o seu tio Odilon matava de madrugada, quase todo dia, um bode. Benoni Alencar, prestativo, acordava de manhã cedo para ajudá-lo.

Benoni começou a ter responsabilidade muito cedo, era arrimo de família Estudava de noite e trabalhava de dia e mesmo assim passava com boas notas. Trabalhou na Caixa de onde foi demitido por motivos políticos  Nós dois nos dávamos muito bem. Além da política interagíamos através da literatura. Fomos membros do Clip, clube literário piauiense. E fizemos uma representação poética sobre a direção de Ary Sherllok  no Teatro de Arena.

 Estou falando do Benoni Alencar vivo. Mas agora ele esta morto, fisicamente desapareceu. É recordação. A sua morte me fez chorar com o corpo todo, não apenas com os olhos e a garganta. Vai longe à última vez que o vi, foi no século passado quando veio a Teresina, e hospedou-se em minha casa. Estava tentando viabilizar um projeto sobre a cultura piauiense no Rio de Janeiro.

Benoni Alencar deixou um livro inédito. LATITUDE PIAUI: (Peripécias  da resistência  à ditadura  militar, no Meio Norte do Brasil) onde fala de sua experiência revolucionária, revelando muita coisa desconhecida aos nossos historiadores.

Sua morte está envolta em mistério. Pode ter sido por “razões” políticas. Ele nunca abandonou a militância. Estava no PSOL, uma dissidência radical do PT. E, na verdade, se expunha. Ser radical em uma cidade pequena (morava no Rio das Ostras) é temerário. Dizem também que foi latrocínio. Roubo acompanhado de assassinato. Resta investigar. As pistas, embora subjetivas, apontam para um crime político. Mãos assassinas estrangularam Benoni  Alencar. Sufocaram sua garganta, o seu logos, a sua expressividade. A maneira de como praticaram o crime não seria uma linguagem a ser decodificada?

Bernoni Alencar logo que saiu da prisão em 1970 trabalhou no Jornal O Estado de Helder Feitosa, na biblioteca do professor Camilo Filho, depois foi para o Rio de Janeiro estudar jornalismo. Casou. Teve filhos, Trabalhou na Imprensa. Devia ter tido amigos e inimigos. Perdeu a mulher que por ironia do destino também foi assassinada. Saiu do Rio de Janeiro em busca de uma cidade pequena. Refugiou-se em Rio das Ostras, fez concurso para a prefeitura. Passou. Na repartição as pessoas pareciam não gostar dele. Lembro-me que fui visitá-lo nessa cidade, juntamente com o Edmar Oliveira. Perguntei onde ele morava. Pois tinha mudado de residência. Um funcionário consultou um caderno e perguntou a seu colega de lado: Onde está morando o Benoni Alencar? O outro respondeu, com humor negro: Está morando no cemitério. Era uma mulher. Mas com certeza este crime não foi passional. O trágico é que perdemos Benoni Alencar. Mas um óbito para uma personagem da Província Submersa.

Benoni Alencar deixou um legado importante para a sociedade brasileira, notadamente piauiense, em termos de exemplo político, nunca abdicou de suas posições. Merece uma biografia, ou, ao menos que o seu livro seja publicado. É uma justa homenagem a esse piauiense ilustre que teve de sair de sua cidade  fugindo da ditadura, como muitos nordestinos aguerridos, e refez sua vida de uma maneira  altiva e respeitável.

A morte espanta, faz chorar, une os familiares, é motivo de orações, reflexões. O que Benoni Alencar fez marcou sua vida. Viva Benoni Alencar. E o resto não pode ser silêncio.

kloZ (1000TON)

Soneto da Metrópole Globalizada


Cidade flamejante, rua ardente.
Tribos atrás da oferta inesgotável
De obter um simulacro razoável
De vida neste lodaçal de gente.

Tudo é som, cor, contatos visuais
Precários. Tudo se vende ou se aluga.
A globalização promove a fuga
Desses novos atores sociais:

Catadores de lixo, marginais,
Muambeiros nas calçadas, pivetes
Falando inglês, garotas da internet,

Milícias, michês de corpo sarado...
São os restos gerando capitais
Na cidade sob a lei do mercado.


Manoel Olavo, médico e poeta (veja em "Simetria do Aluvião")
Mouse sobre tela: Erotickiss de Paulo Moura (ver blog)

Salgado Maranhão

Recebido de Cinéas Santos, que achou o Salgado no interior de Caxias (MA):


Irmãos e irmãzinhas: é uma alegria ver a face de um poeta estampada num outdoor, onde normalmente se anunciam bens de consumo, nem sempre recomendáveis. A alegria é ainda maior se o poeta for Salgado Maranhão, uma das vozes mais lúcidas da moderna poesia brasileira.Viva Caxias,que ama os poetas que tem. Uma semana luminosa para todos. (CS)

                                LUNAR

A cara da lua
está partida ao meio,
feito um queijo ruído;
meu coração também
vive partido
                        - à míngua:
de amar como quem se afoga,
de amar como quem se vinga.

 ( Salgado Maranhão -  A Cor da Palavra - Ed. Imago - BN)

Pretéritas Canções

ENQUANTO O SOL NASCE E DEITA

Quando o sol
Alumia e queima
A terra do sertão
Tem jeito não
A gente é feito bode
Consegue sobreviver
E quando sol
Se deita e escurece o chão
Tem jeito não
A gente dá logo um jeito
De se alegrar e arder

Ás vezes
Em volta tudo seca
Falta arroz e feijão
Tudo é moleza e calor
Tem jeito não
Dentro da noite azulona
A gente ouve a sanfona
Tocando xote e baião
Tudo renasce de amor

A terra é também assim
Igualzinho somos nós
Basta chover um tiquim
Pro verde brotar do chão
Do verde sai melancia
Algodão e aipim
Milho, melão e jiló
Cebolinha e açafrão


Enquanto o sol nasce e deita
Nós nos deitamos e nascemos


(Climério Ferreira)

poeminha de espera

se ainda vens,não sei
sei bem que te espero
e enquanto não chegas
me encho de véspera

          joão batista de carvalho

O loteamento do céu

Luiz Horácio

A presença marcante da primeira pessoa em alguns tipos de narrativas, autobiografia, confissões, diários, memórias, permitem ao autor os papéis de criador e protagonista. Oferecem ao leitor a possibilidade de tornar material um ser de linguagem. O autor invisível deixa suas pegadas, seus reflexos ao utilizar os vários gêneros da escrita de si. Mas até que ponto valeria a pena seguir tais pistas? E, ao segui-las, por mais evidentes que sejam, o leitor encontrará alguém que não lhe terá nada a dizer, embora um ser de linguagem.

Esse “não lhe terá nada a dizer”ganha outra tradução em O loteamento do céu, de Blaise Cendrars, um quase Macunaíma. Vale lembar que Macunaíma também não tem nada a dizer. São narrativas que galgaram status dada sua estranheza. Nada mais.

Digamos com toda condescendência que Macunaíma seja uma peça de folclore. O loteamento do céu, paciente leitor, seria algo mais que um vale tudo literário?

Os textos de cunho memorialístico, permita-me colocar esse título de Cendrars aqui nesse escaninho; freqüentam o espaço localizado entre o território da ficção e o da história, entre o real e o imaginário. Não está livre do questionamento básico: até que ponto o relatado tem compromisso com a verdade? Mas até que ponto a verdade é importante? Até que ponto apontar esta ou aquela verdade é mais importante que refletir sobre determinados fatos? A literatura memorialista é como uma peça de  teatro onde o narrador, ator protagonista, representa mais de um papel.  Eis que uma questão se impõem: a escrita memorialista tem o sentido de preservar a fugacidade de um evento,seria esta sua função precípua, ou nada mais que mera catarse do autor? 

A memória, as escritas de tom memorialístico equilibram-se no espaço exíguo que separa a  mentira e a confissão. Restará sempre a pergunta: até que ponto a lembrança pode ser uma ilusão?

Pedro Nava, esse sim um memorialista,  combina memória e  imaginação, e ao afirmar que transforma seus parentes em  personagens, a memória se transforma em ficção Segundo Antônio Candido a personagem é “um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial” (CANDIDO, 1995, p. 55).  

Feito o esclarecimento necessário, voltemos ao empreendimento de Blaise Cendrars.
 O que vem a ser O loteamento do céu? Trata-se de um verdadeiro três em um. Bastante distintos embora a primeira e a terceira parte resultem de visista do autor ao Brasil, a segunda parte “O novo patrono da aviação”  trata das levitações de São José de Cupertino e seus parceiros de performance.

Você pode, destemido leitor, destinar um pouco de realidade  e muito de ficção a essas três partes. Que tenha um quê de memoria referente a suas visitas ao pais e pura ficção no lote dos santos. Perdoe a redundância.

Convém lembrar Voltaire, o filósofo afirma que escreveu Confissões de memória e quando a memória falhou, preencheu essas lacunas com detalhes por ele imaginados.

Os lotes de Cendrars, o anúncio omite, precisam de terraplenagem com máquinas do zen budismo tamanha quantidade de acidentes.

Mas incensado autor africano, J. M. Coetzee foi visto examinando o loteamento, retirou de lá material para seu Diário de um ano ruim, a distribuição  nada convencional dos textos nas páginas, a  quebra da linearidade narrativa, a aproximação de ficção e ensaio. Diário de um ano ruim tem uma identidade, impossível negar,  uma identidade além das expectativas, bastante além do que informa a sisuda ficha catalográfica, um diário disfarçado em quebra-cabeças. Não podemos esquecer que Coetzee também foi visto fuxicando o loteamento Enquanto agonizo, de Faulkner. Foi com restos de material que criou  Vida e época de Michael K. Mas o assunto não é esse.

O assunto é O loteamento do céu. O que é? Uma rapsódia. No máximo, uma rapsódia. Uma rapsódia torta, visto que apresenta três movimentos.


Roque Moreira



Surge em agosto de 2001 o CONJUNTO ROQUE MOREIRA, com o objetivo de criar uma proposta musical baseada nas raízes da cultura popular piauiense.
Com linguagens regionais aliados ao universalismo do rock’n’roll, funk, rap, reggae entre outros, o Conjunto Roque Moreira diversifica e enriquece seu som, criando assim uma malha sonora com vigor e rica de informações. A levada dançante e a irreverência nas apresentações são marcas registradas do Conjunto que define seu estilo como uma mistura dos sentimentos rítmicos musicais experimentais de cada um dos seus integrantes e suas influências. Com repertório autoral onde as letras abordam temas variados que vão desde o cancioneiro popular, aos temas sociais e políticos, o Conjuntos já fez apresentações em teatros, casas de show, espaços culturais, festivais, universidades, praças, terrenos baldios, sanatórios, penitenciárias e garagens. O nome do Conjunto é uma homenagem ao radialista Roque Moreira que se tornou conhecido pela forma peculiar de apresentar seu programa “Seu Gosto Na Berlinda” que levava a todos os ouvintes as melhores músicas populares e informes dos mais variados conteúdos funcionando como um link entre a cidade e o campo.