domingo, 23 de outubro de 2011

reportagem

MEDUNA, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Quantos gritos de desespero hão de soar sem eco nos céus da cidade?

Ferdinand Cavalcante Pereira*



Este artigo não tem a pretensão de fazer a história da psiquiatria no Piauí, mas de chamar a atenção para os últimos acontecimentos sobre o destino do acervo de documentos (livros de assentamento de internação, diagnósticos, prescrição médica, relatórios, atas de reuniões, etc.) da passagem de internos, procedimentos terapêuticos, inquéritos, e registros de óbitos, que podem se perder e assim comprometer a genealogia da psiquiatria local. Presume-se que esse material deva receber inicialmente um tratamento classificatório, por tema ou período de tempo, de maneira que possa facilitar a pesquisa.

A Clínica Psiquiátrica privada tem início no Piauí no ano 1954 com a inauguração do Sanatório Meduna (Homenagem ao médico húngaro Ladislau von Meduna). Foi tida como uma “experiência pioneira e revolucionária para o Nordeste”, no tratamento dos “doentes mentais”, considerados pela psiquiatria convencional como indivíduos portadores de afecções nervosas dos grupos das neuroses e psicoses. Essa empresa reivindicou para si tardiamente o contexto de adesão ao “movimento de humanização” do sistema de assistência ao doente mental. Movimento que teve início no país nos primeiros anos do século passado. Somente cinqüenta anos depois, chega a Teresina, pela iniciativa do médico psiquiatra Clidenor de Freitas Santos.

Há muito tempo atrás se pensou que esses indivíduos estivessem possessos de “entes malignos” estranhos à condição humana. Evidente, que a medicina moderna evoluiu e progrediu nos seus conceitos e tratamentos. O tratamento dessas afecções mentais normalmente valia-se de eletrochoques, psicotrópicos, e o confinamento dos supostos doentes em celas, isolando-os do convívio da sociedade. Não havia diferença entre um individuo considerado “alienado” ou “criminoso”. Eram vistos como populações perigosas. Argumentos lombrosianos justificavam sua segregação social. Pobres, indigentes, loucos sempre foram tratados com indiferença pela sociedade. Uma convivência conflituosa, de intolerância, muitas vezes silenciada.

Os estabelecimentos especializados surgiram em toda Europa, e no Brasil conhecidos como Casas de Alienados, voltados para assistência desses doentes. Esse tratamento segregador de populações sem assistência pública decente e a pretexto de uma assistência humana foi transformado pelo desenvolvimento do capitalismo em mercadoria - a saúde humana - e passou a interessar os inúmeros investidores privados das áreas médicas e da influente indústria farmacêutica no mundo ocidental.

A história da experiência social do Meduna precisa ser resgatada do processo de ocultamento pactuado,¹ de iniciativa de segmentos da sociedade local muito pouco interessados pela preservação de parte da memória e história da medicina psiquiátrica no Piauí.

A venda do Sanatório Meduna, para dá lugar a um modernoso empório comercial, faz parte de uma frente de valorização imobiliária em franco processo de crescimento em Teresina. Entretanto, representa uma perda significativa para a memória da medicina e da sociedade, menos pelo reconhecimento tardio do “interesse público” por lei municipal, do que face ao valor incalculável do “patrimônio social”, formado pelos operadores (médicos, enfermeiros, cozinheiras etc.) e seus assistidos durante os cinqüenta anos. Muitas práticas médicas realizadas ali submeteram pacientes internos e operadores, ao controle do corpo e das relações de saber/poder médico. Portanto, a perda dessa prática social é risco evidente de um desperdício da experiência de vida, do sofrimento dos corpos que durante esse tempo se esvaiu e passou despercebido aos olhos insensíveis dos homens públicos.

Cada telha, madeiramento, pisos, paredes dos pavilhões, mangueiras, cajueiros, bancos de cimento dos pátios internos, cobogós dos muros foram testemunhas de muitas dores e sofrimentos sufocados. E quantos gritos de desespero ainda ecoam nos céus da cidade?

A história do Meduna é, também, em parte, a história do bairro Cabral, da constituição de populações negras e pobres que foram se formando no labiríntico arruamento de quadras de tamanhos irregulares, no entorno do perímetro do sanatório. “Ruas sem saída, que partem e chegam a lugar nenhum”, aliás, esbarram nos muros laterais. Um detalhe, nesse complexo território, é a existência de duas populações, uma menor que mora no interior dos muros do sanatório e outra que mora no entorno, do lado de fora. Não sabemos ao certo qual tipo de relações que se estabelecem entre essas duas comunidades. Só a pesquisa social poderá revelar as peculiaridades.

A reordenação espacial sofrerá nos próximos anos alterações urbanísticas mais profundas, que afetarão diretamente essas populações sem segurança habitacional e qualidade de vida. Há mais “fogo” do que fumaça na memória desse povo! Qual história a sociedade teresinense quer preservar? Por certo, um pedaço da história da cidade está desaparecendo. O que está acontecendo com o bairro Cabral, está ocorrendo com outros da cidade, e não é uma particularidade destes, é um processo contínuo conhecido pelo nome de urbanização acelerada, agravada pela hipervalorização da especulação imobiliária na Capital, decorrente do crescimento desordenado das capitais regionais.

É preciso que as instituições de ensino e pesquisa, públicas e privadas, mobilizem esforços para, com urgência, desenvolver projetos sobre a compreensão da situação sócio-econômica dessas duas populações de moradores do Cabral. Isto, porque, em breve, na condição de “desalojados” de suas antigas moradias, semelhante às populações de “barrageiros”, quando da construção de usinas hidrelétricas, ficarão a mercê da própria sorte, empurrados mais uma vez para “áreas periféricas” de Teresina. No passado, seus ascendentes já haviam sido afastados, como os “indesejados”, pela elite proprietária do antigo centro urbano. Um processo contínuo de recriação e ampliação do centro comercial da capital.

Portanto, essas “comunidades” precisarão de novas instalações habitacionais decentes, quando do momento das intervenções, públicas e privadas, de novas vias de escoamento do trânsito naquele local, para viabilizar o acesso ao emergente empreendimento comercial na referida área. Atentem para a Rua Mato Grosso, será a principal via de acesso entre às Avenidas Frei Serafim e Jacob Almendra, que passará ao fundo do Sanatório em direção a ponte estaiada.

Há quem diga que já viu, entre o acervo de obras raras de literatura universal, patrimônio-espólio do fundador do Sanatório, um retrato a óleo do médico Meduna, pintado pelo nosso Cândido Portinari. Imaginem o valor que essa obra tem no mercado de arte. Que destino terá sido dado? Os piauienses tornarão a vê-la um dia exposta no hall de entrada do Meduna, seu lugar de existência permanente? Uns dirão, talvez sim; outros, não!

Daqui a pouco, milhares de teresinenses aproveitarão a ida ao “novo” Shopping e após as compras, poderão observar o que sobrou do Meduna (a fachada do “castelo quixotesco”). Em meio a “uma dissonante atmosfera turística”, os visitantes levarão lembrancinhas - broches de lapela, cartões-postais e cacos de azulejos decorativos - para seus confortáveis apartamentos. O caminho parece aberto às empresas que estão à caça de ávidos consumidores, sem distinção de renda e credo. Anunciam até que a capela do Sanatório poderá vir a ser local de peregrinação de fiéis em busca de milagres. O boom religioso salvará a combalida economia? É pouco provável.

Se o leitor me permite finalizar, parafraseando Foucault (1979), uma verdade está à espera dos nossos olhos para ser vista, ou à espera das nossas mãos para ser desocultada.



*Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais – DCIES/UFPI

Nota:

¹ Conceito proposto pelo historiador Paulo Machado, para expressar o processo comandado por agentes sociais, resultado de um pacto entre estes e orientado para encobrir os mecanismos e as formas constituintes da dinâmica social, com objetivo único de consolidar as versões convenientes dos acontecimentos e suas relações intrínsecas.
fotos de Paulo Tabatinga publicadas originalmente em "von Meduna"

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