A presença marcante da primeira pessoa em alguns tipos de narrativas, autobiografia, confissões, diários, memórias, permitem ao autor os papéis de criador e protagonista. Oferecem ao leitor a possibilidade de tornar material um ser de linguagem. O autor invisível deixa suas pegadas, seus reflexos ao utilizar os vários gêneros da escrita de si. Mas até que ponto valeria a pena seguir tais pistas? E, ao segui-las, por mais evidentes que sejam, o leitor encontrará alguém que não lhe terá nada a dizer, embora um ser de linguagem.
Esse “não lhe terá nada a dizer”ganha outra tradução em O loteamento do céu, de Blaise Cendrars, um quase Macunaíma. Vale lembar que Macunaíma também não tem nada a dizer. São narrativas que galgaram status dada sua estranheza. Nada mais.
Digamos com toda condescendência que Macunaíma seja uma peça de folclore. O loteamento do céu, paciente leitor, seria algo mais que um vale tudo literário?
Os textos de cunho memorialístico, permita-me colocar esse título de Cendrars aqui nesse escaninho; freqüentam o espaço localizado entre o território da ficção e o da história, entre o real e o imaginário. Não está livre do questionamento básico: até que ponto o relatado tem compromisso com a verdade? Mas até que ponto a verdade é importante? Até que ponto apontar esta ou aquela verdade é mais importante que refletir sobre determinados fatos? A literatura memorialista é como uma peça de teatro onde o narrador, ator protagonista, representa mais de um papel. Eis que uma questão se impõem: a escrita memorialista tem o sentido de preservar a fugacidade de um evento,seria esta sua função precípua, ou nada mais que mera catarse do autor?
A memória, as escritas de tom memorialístico equilibram-se no espaço exíguo que separa a mentira e a confissão. Restará sempre a pergunta: até que ponto a lembrança pode ser uma ilusão?
Pedro Nava, esse sim um memorialista, combina memória e imaginação, e ao afirmar que transforma seus parentes em personagens, a memória se transforma em ficção Segundo Antônio Candido a personagem é “um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial” (CANDIDO, 1995, p. 55).
Feito o esclarecimento necessário, voltemos ao empreendimento de Blaise Cendrars.
O que vem a ser O loteamento do céu? Trata-se de um verdadeiro três em um. Bastante distintos embora a primeira e a terceira parte resultem de visista do autor ao Brasil, a segunda parte “O novo patrono da aviação” trata das levitações de São José de Cupertino e seus parceiros de performance.
Você pode, destemido leitor, destinar um pouco de realidade e muito de ficção a essas três partes. Que tenha um quê de memoria referente a suas visitas ao pais e pura ficção no lote dos santos. Perdoe a redundância.
Convém lembrar Voltaire, o filósofo afirma que escreveu Confissões de memória e quando a memória falhou, preencheu essas lacunas com detalhes por ele imaginados.
Os lotes de Cendrars, o anúncio omite, precisam de terraplenagem com máquinas do zen budismo tamanha quantidade de acidentes.
Mas incensado autor africano, J. M. Coetzee foi visto examinando o loteamento, retirou de lá material para seu Diário de um ano ruim, a distribuição nada convencional dos textos nas páginas, a quebra da linearidade narrativa, a aproximação de ficção e ensaio. Diário de um ano ruim tem uma identidade, impossível negar, uma identidade além das expectativas, bastante além do que informa a sisuda ficha catalográfica, um diário disfarçado em quebra-cabeças. Não podemos esquecer que Coetzee também foi visto fuxicando o loteamento Enquanto agonizo, de Faulkner. Foi com restos de material que criou Vida e época de Michael K. Mas o assunto não é esse.
O assunto é O loteamento do céu. O que é? Uma rapsódia. No máximo, uma rapsódia. Uma rapsódia torta, visto que apresenta três movimentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário