quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

o Piauinauta no Carnaval


Fui pegar um LP de vinil com as marchinhas de carnaval do meu tempo e lá já estava o Piauinauta enfiado na capa. Na época não tinha reparado. Mas ele está lá, debaixo da palavra tempo.

TAMBÉM JÁ NÃO GOSTO DE CARNAVAL

Edmar Oliveira

Não tenho qualquer dúvida da chegada da velhice. Turrão sempre fui. Fiquei ranheta, reclamante de tudo. E peço desculpa às pessoas de minha relação, já que tem horas que nem eu me aguento. Mas a maior prova das “despesas do envelhecer” (expressão sincera de H. Dobal e usada como título de livro de Cinéas Santos) é começar a ficar intolerante com o carnaval.
Em criança, na velha Codó das minhas lendas, gostava dos bailes do Clube Guarapari, e até hoje minha memória ressoa: “No Guarapari / Eu vou brincar só / É um grande clube / No coração de Codó”. O “Fofão” do Maranhão era o “Clóvis” do subúrbio carioca. Noutro carnaval encontrei um bando de “Clovis” em Guaratiba e achei que tinha voltado à meninice de minha Codó. Na Teresina o carnaval do “Corço” com o caminhão das “raparigas” me é inesquecível, assim como os blocos de rua desfilando na Frei Serafim. Também a Avenida (como a chamávamos no singular) era o palco das escolas de samba. Inesquecível o samba da “Escravos do Samba”: “O Escravo vai mostrar o seu valor / Ôôô / Que preto pode ser doutor”. E a marcha do C2H6O (bloco de rua com a fórmula química da cachaça)? “Nós somos de boa raça / Viemos a Terra acabar com a cachaça / Não, não tem jeito não / Se não tiver garrafa / Traga mesmo o garrafão / Vem, bota álcool no copo / Nós somos do C2H6O.” Tudo isso é de quando eu gostava de carnaval...
Já não gosto mais. Fora os blocos de rua do subúrbio, os “Clovis” de Guaratiba, as bandas do centro da cidade, que nos ocupam as tardes, na noite não acho mais graça e até me entristece. As Escolas de Samba viraram um espetáculo pirotécnico, do qual não acho a menor graça. Os sambas-enredos, rompendo com a tradição deliciosa de antigamente, ficaram todos iguais na batida e na exaltação sem muita relação com o tema proposto. Como o reveillon de Copacabana, também nunca fui a um desfile na Sapucaí, nem tenho vontade de ir. Na velhice prefiro me lembrar da Frei Serafim, do Beco do Prazer, da Nicinha, sempre enfeitada em seu carnaval. Meninos, a gente envelhece quando passa a não
ver mais graça no que gostávamos e a memória passa a nos acompanhar com mais frequência...

Tarde de Domingo


Graça Vilhena

do meu quintal
ouço um domingo caricato
e sinto falta da nudez do mundo

uma lagartixa
entre os cacos de vidro sobre o muro
é a única coisa desvelada
feito um broche aberto
no colo da tarde

Lança Perfume

O carnaval do Piauinauta era do tempo em que a "Companhia Chimica Rodhia" vendia Lança-Perfume legalmente nas farmácias e botequins...


No Castelo do Nobre Deputado



Geraldo Borges

Um nobre deputado construiu um castelo e convidou um fantasma para habitar os seus aposentos. Pois não tem sentido um castelo sem fantasmas, sem barulhos de correntes, sem estalos de tábuas, sem vozes roucas vindos do teto, sem candelabros se mexendo à toa, esqueletos saindo dos armários, mesmo sendo um lindo castelo construindo com o material de construção do século vinte e um, edificado nas alterosas. Mas o fantasma do nobre deputado queria as suas vantagens.. Os fantasmas de hoje não querem saber de sofrimento gratuito, de viverem fazendo apenas assombração sem nenhuma recompensa senão a fama de fantasma. Estão mais realistas que o rei. O fantasma queria mordomias, e exigiu, então, as suas condições para habitar o ambiente gótico do castelo. Disse.
Eu serei fantasma. Estudaria toda a arte de se fazer assombrações, serei um verdadeiro espírito sobrenatural, apenas de noite, que todos os gatos são pardos. Virarei o bicho que o senhor quiser. Ficarei na torre do castelo, parecendo um lençol branco, flutuando, com meus ectoplasmas para assustar os seu inimigos bárbaros. Ficarei também, tudo ao mesmo tempo, pois fantasma é onipresente na ponte do fosso para impedir invasão de vândalos. Serei um fantasma bem competente. Não tenha medo que ninguém vai mexer nos quartos onde estão os cadáveres das mulheres mortas que você amou uma noite, e depois descartou sem querer ouvir a sua história, como o velho Barba Azul.. Pode ficar sossegado. Que eu guardarei a chave muito bem. Ninguém vai saber dos seus mais recônditos segredos. Vai tudo virar ficção
Entregue-me o Castelo a noite e pode ficar tranqüilo no palácio do planalto, que aqui dentro das muralhas do castelo das minas gerais tudo vai correr no melhor dos mundos. Entendeu. Mas as condições são as seguintes.
Mas antes de negociarmos as condições eu gostaria de saber na minha consagração de fantasma o que levou o nobre deputado a construir um castelo justamente nos tempos dos palácios, e há tantos brumários da queda da Bastilha
Este velho sonho eu alimento desde menino. Vem do tempo do meu avô que me contava história dos mouros invadindo a Espanha em sua guerra contra os cristãos, e me falava em castelos no alto das montanhas com suas fortificações, suas torres suas pontes e fossos, cavaleiros encouraçados em seus ginetes puro sangue. Coisas das cruzadas. Quando eu ouvia meu avô contar historias de dinastias em seus castelos eu dizia. Quando eu crescer,ficar homem, vestir paletó com colarinho branco e gravata, e aprender a fazer discurso, vou fazer de tudo para edificar o meu castelo e ter um bando de aldeões a meu serviço. Deu certo. A política me fez um homem notável.
Tudo bem o senhor nobre castelão entrou na política. E tem toda a condição de garantir o meu surrealista oficio de fantasma. Pois bem. Eu quero mordomia, chupar na teta da viúva, para mim e para o resto da minha família que ainda está viva e sofrendo neste vale de lágrimas. E me acendendo velas. Como fantasma eu preciso de salário duplicado, pois minha vida é dupla, plural. Tenho que me desdobrar em vários disfarces para sustentar as minhas marmotas, espantalhos, ora estou no domínio da matéria, ora no do espírito. Quanto a minha viúva quero que o senhor nobre deputado arranje um montepio bem gordo para ela para o resto da vida a fim de que não passe necessidades, como muitas estão passando por aí nas imediações dos palácios e castelos dessa republica.
Quanto aos meus filhos quero que o senhor nobre deputado pague os melhores colégios para eles, assim como o senhor paga para os seus herdeiros. E depois os introduza na sua mesma profissão. São estes os termos que garantem eu trabalhar para o senhor como fantasma de seu castelo.
Não acha que é muita exigência? Acho que é melhor contratar um fantasma dos velhos castelos da Inglaterra.
Eles jamais se sujeitariam ao nosso clima, a nossa corrupção. São muito fidalgos e esnobes para se misturar com a gente.
Nesse caso estamos conversados. De agora em diante você é o fantasma oficioso do meu castelo. Sua família fica sob a minha proteção.
Caso o senhor vacile eu entrego seu castelo aos bárbaros

MÃES E FILHOS


Keula Araújo

Os poemas nascem
de dores
Banham-se em canções
E buscam
Alívios
Os poemas são mães
e filhos
São lágrimas em silêncio
São pulsos latejando
Quando o amor
Passa
Sem saber aonde ir
______________
Ilustração: Paulo Moura

JK E OS APITOS AFINS


1000TON

O Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, dono de um sorriso escancaradamente simpático e carregado de um otimismo contagiante, entrou para a posteridade como o presidente dos anos dourados. Acreditar piamente nisso é o mesmo que achar que um peixe vivo pode viver fora da água fria...
O seu governo, pioneiro em privilegiar maciçamente a indústria automobilística e a construção de estradas de rodagem, arrasou com as ferrovias no Brasil. Contrastando com o deslumbrante sorriso do Nonô, os trilhos arrancados das estradas de ferro, deixaram-nas irremediavelmente banguelas.

1°) Os Apitos conjugados da Morte Anunciada. Prííí! Piuííí!
O Governo JK, ao lançar seu ambicioso Plano Nacional de Desenvolvimento, iniciado por Getúlio, mostrou-se contraditório ao privilegiar o rodoviarismo. Com criação da Rede Ferroviária Federal, em 1957, milhares e milhares de quilômetros de ramais foram extintos, levando o Brasil a caminhar na contramão da história.
A partir daí ouviu-se, cortando os corações, o último apito de cada chefe de estação que foi extinta, juntamente com o último suspiro das velhas locomotivas.

2°) O apito do Guarda Malvado. Prííí!
Quem também teve problemas com a contramão foi o Roberto Carlos, atrapalhado pelo cupido. O guarda levou a carteira do Rei pro xadrez. Assim como as ruas de São Paulo, cheias de carangos, o mesmo acontece com as grandes capitais do Brasil, vítimas do trânsito caótico e da incontrolável poluição.
Os países desenvolvidos, incluindo países do terceiro mundo, como por exemplo, México e Argentina, marcaram seu desenvolvimento com o escoamento da produção e o transporte público sobre trilhos. O Brasil teria economizado enormes divisas se a nossa matriz de transporte fosse outra.

3°) O apito da Fábrica. Pííííí!
Quando lembro daquele apito da fábrica de tecidos, que feria os ouvidos de Noel, em 1933, fico pensando nas fábricas de automóveis que proliferaram no Brasil até os dias de hoje. Meu coração também fica ferido quando agarro a imaginar: como seria melhor para o nosso povo se aqui existissem mais fábricas de navios, de barcas, de balsas, e fábricas de trens, locomotivas e bondes!...
É matemática pura, assim como deveria ser puro o ar que temos todo o direito de respirar: os três transportes são muito menos poluentes, mais seguros, mais econômicos e causam quase nenhum acidente, com muito mais produtividade!

4°) O Apito para Mandar os Ladrões pro Xilindró. Príííí! Chame o ladrão! Chame o ladrão!
Além da incompetência e do uso criminoso das verbas públicas, o Brasil mais uma vez foi vítima da falta de planejamento em transportes.
Gente! A roubalheira foi tanta, que conseguiram até acabar com o Lloyd Brasileiro! O nosso país possui um litoral, que é quase a metade do perímetro do seu território, e não mais explora a navegação marítima...

E tem mais: e os nossos rios, tão abundantes? Quantas autênticas veias e artérias brasileiras deixam de ser utilizadas? Lamentavelmente o nosso transporte fluvial quase não existe...

Lágrima


Ana Cecilia Salis

Saudade...
Que se chega baixinho...
Sem fazer barulho...
E desliza neste meu rosto cansado...

Coincidências

Edmar Oliveira


para Patrícia Schmid


Uma das coisas mais intrigantes para um agnóstico (serei eu?) é o que costumamos chamar de coincidência. Falo em agnóstico na concepção primária de Huxley, quer dizer, em alguém que ACREDITA que a existência de um poder superior (leia-se Deus) nunca foi e nunca será resolvida para a humanidade. (Dentro de mim Ele já não existe desde o começo do Universo, compreendes Senhor das Verdades?). Pra mim Ele não existe, mesmo que coincidentemente venha a encontrá-Lo. Pois bem, a coincidência é coisa de ser superior, tal qual o acaso. Acaso existe Deus?
Deixemos o raciocínio teológico para voltarmos ao tema desta crônica ordinária. Coincidência. Não é por acaso que você está lendo estas linhas, né não? Se for, piora a minha situação. Mas não é te encontrando naquela esquina que acho que a coincidência seja obra e graça da criação do Criador. Mas, escuta essa: o chocolate, tablete sólido, se desmancha na temperatura de trinta e seis graus Célcius. Exatamente a temperatura da boca. Não fosse assim e ninguém gostava de chocolate. Guloseima unânime, apenas por uma coincidência de calor. Ou Deus é um excelente cozinheiro ou o chocolate é invenção do Diabo.
Agora, raciocinemos assim: o homem é um bicho tímido, não se expõe muito as relações sociais, não é dado a construções de amizades, a não ser três doses acima do normal. Experimente três doses da bebida de sua preferência. E aí, coincidentemente, você vai achar o mundo todo legal e não vai, ensimesmado, provocar reações hostis. Coincidentemente um homem razoável precisa de três doses acima para que o pessimismo se dissipe. Um brinde à necessidade humana do álcool. Com moderação, né não, senhor Temporão?

O Cordão do Bola Preta



Numa dobra do tempo o Piauinauta observa o primeiro desfile do Bloco Cordão da Bola Preta, que saiu em 1918, em frente ao número 88 da rua da Glória, Rio.

PÓS MORTEM


Fátima Venutti



Seladas falas
De sobras veladas
Em cruzes suspensas
Incógnitas
Rezas em coro
Diversas

Valas cobertas
De corpos esquecidos
Em manhãs tempestivas
Incógnitas
Solidão em versículos
Completa

Lamacentos retratos
De memórias perdidas
Em funerais submersos
Incógnitas
Paisagens em desalinho
Transformadas

Súbita avalanche
De lágrimas castigadas
Em veias extirpadas
Incógnitas
Soldados em procissão
Retalhada

Metáforas vidradas
De pães amanhecidos
Em comunhão indesejada
Incógnitas
Fome de sonhos
Destilada

Abrigos repentinos
de camas dotadas
Em clausuras engolidas
Incógnitas
Lápides sangrando
Ignoradas

Verdades incompletas
De papéis amarelados
Em suplícios abafados
Incógnitas
Pretérito dos verbos
Améns.

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Blumenau, 22 de novembro de 2008, 17hs quando tudo começou. Cinco dias em abrigos, ouço e vejo as histórias de vida transformadas, agora em nada mais. Prometi que não escreveria sobre o assunto, mas veio e não pude abortar.
Fátima Venutti


exigencia


Carinhos Nascimento
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CARLOS NASCIMENTO – Carlos Alberto Teixeira do Nascimento, carioca do subúrbio, nasceu em 27/10/1952. Auto-didata, trabalha o desenho. "As questões sociais e da alma humana são riscadas em papel com lápis de cor, e acima de tudo com emoção e reflexão. "O Homem e seus riscos", nome dado a uma das exposições dos desenhos de Carlos, carrega em seu jogo de palavras uma boa definição para a preocupação central e o traço marcante do artista." (Valdir Ramos)
Mais trabalhos de Carlinhos click na Casa de Lima Barreto ali embaixo.

hdobal



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H. DOBAL: A POÉTICA DO HOMEM
E OUTROS BICHOS ESQUECIDOS



Menezes y Morais *



Os olhos do poeta Hindeburgo Dobal Teixeira (1927-2008) brilhavam repletos de ternura naquela tarde, na qual ele, Cineas Santos e o autor dessas virtuais traçadas linhas, saboreavámos um cafezinho em sua casa, em Teresina (PÍ). De férias na cidade, morando em Brasília, sabendo que H. Dobal fora acometido pela doença de Parkinson, pedi ao CS que me levasse até sua casa.
Poeta consagrado, premiado, servidor público aposentado, cidadão do mundo que morou em Teresina, Rio de Janeiro, Brasília, Londres e Berlim, HD parecia feliz naquela tarde. Creio que isto aconteceu em 1994. Dobal indagou se eu queria café com açúcar ou adoçante. Diante a minha negativa, observou, com um sorriso sincero nos lábios:
"Você tem razão, doçura só a da vida".
CONVERSAMOS amenidades, dias depois eu voltei a Brasília, sem entretanto esquecer aquela frase ecoando na memória, que bem pode ser um verso: "doçura só a da vida".
O que mostra que Dobal não sofria da doença chamada alienação política, essa gente costuma creditar a vida as mazelas sociais e históricas que infernizam a odisséia humana, esquecendo que o verdadeiro inimigo não atende pelo nome "vida", mas pela alcunha "poder", a forma de como o "Estado" é organizado.
A vida é inocente. Como dizia Sarte, "o inferno são os outros".
SE DOBAL tivesse resistido um pouco mais, talvez sua viagem definitiva fosse prorrogada por mais tempo, pelo milagre das células-tronco, a grande esperança da revolução na medicina neste surpreendente século XXI.
H DOBAL debruçou-se sobre a existência humana, falando no "homem e outros bichos esquecidos", diz num poema. Nada escapou do seu olhar poético e crítico. Da solidão humana povoando a tarde, à solidão dos homens anônimos encharcando o dia.
Flashes da vida, retratos do cotidiano - Rio-Teresina-Brasília-Londres-Berlim - o atento olhar dobalino observou mudanças na geografia física da cidade - Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina, Os Signos e as Siglas (Brasília) - e nas paisagens humanas, produzindo uma poética onde não faltam mergulhos objetivos e subjetivos na condição humana.
A OBRA de HD dá uma sacodida dialética na cabeça e no estômago do leitor. Poeta de paisagens, tempo, gentes, lugares, dos rebanhos do tempo, do homem ou da vida simplesmente, Dobal ainda encontrou uma folguinha para criticar a poesia rimada e metrificada.
Mesmo quando escreveu ficção (Um Homem Particular), condimentou poeticamente a sua prosa, as vezes é um poema quase inteiro, embora com o final frouxo, aguado, prosaíco.
O olhar atento do poeta registra mudanças na rota do tempo, o que faz de HD um cronista do tempo. A "Província" de Dobal é o mundo, mais ou menos como a aldeia de Marshall McLuan é a aldeia global.
A GLOBALIZAÇÃO do capitalismo começou no período das grandes navegações, no mecantilismo, quando o colonizador europeu transformou as populações nativas (chamadas índios) e povos africanos em mercadoria, mão-de-obra escrava.
Tudo isso consta do ideário poético de H. Dobal: os índios piauienses que foram massacrados (Acoroazes, Pimenteiras, Gueguezes, Tapuyas), ganharam um poema épico (El Matador), onde nomina um dos chefe da chacina, o tenente-coronel Joao do Rêgo Castelo Branco (1776-1780).
FALTOU o pistoleiro de aluguel, o assassino por encomenta de índios e africanos, o bandeirtante Domingos Jorge Velho, que é nome de ruas no país inteiro e de colégios, inclusive em Teresina.
DJV chefiou a expedição militar da monarquia que assassinou Zumbi dos Palmares (?-1695). Por todas os crimes que cometeu, sempre bem remunerado, DJV é considerado um "herói" nacional.
Até quando?
Dobal exaltou heróis da independência - anônimos (Memorial do Jenipapo, "o sonho anônimo dos que morreram pela liberdade") e resgatou o histórico poeta piauiense Leonardo de Carvalho Castelo Branco ou Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco, que foi preso no Piauí, Maranhão e Portugal.
Em tempo: a vida do poeta e inventor Leonardo também deveria ser estudada nas escolas do ensino médio do Piauí e do país.
Não temos sequer um retrato de Leonardo. Lembro de algumas conversas que eu tive, na década de 1980, com o publicitário, letrista (tem obras-primas com o cantor e compositor Edvaldo Nascimento) e poeta Durvalino Filho, nas quais me dizia, empolgado:
"Vamos forjar um retrato do Leonardo".
A GRANDEZA ética e estética da poesia de HD parte do micro para o macro, da solidão para a alegria (me divirto lendo Serra das Confusões), da vida para a destruição da morte: a Poesia vive.
Dobal deu-se ao luxo de achar alguns dias inuteis, por ser um repórter do tempo, cuja poesia fotográfica não poupa o mal caratismo popular ou elitista.
A poética dobalina é uma radiografia da existencia social, iniciando pelo começo, da Província à contemplação da paisagem, registrando universais tipos humanos.
NEM A gente simples e humilde com seus flagrantes de virtude e desvirtude escapou des suas retinas. As qualidades estéticas de HD já foram exaltadas por poetas e estudiosos da literatura.
Entre eles Manuel Bandeira, Odylon Costa, filho, Álvaro Pacheco, Fábio Lucas, Cristina Maria Miranda de S. P. Correia, M. Paulo Nunes (grande contemporâneo e companheiro de Dobal), Almeida Fischer, Cineas Santos (anjo da guarda de Dobal, na fase aguda da doença de Parkison) e a professora Maria G. Figueiredo dos Reis.
LEMBRO bem daquela tarde, Cineas com o olhar fixo no poeta, eu bebendo café puro e Dobal sorrindo com seu jeito piauiense universal de ser, com sua ternura e humildade diante o mistério, se emociando com o dia bonito pra chover.
Por que Deus não nos deu o poder de congelarmos o tempo nas retinas da tarde?

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Bibliografia de H. Dobal
O Tempo Consequente (1966), O Dia Sem Presságios (1970, Prêmio Jorge de Lima), A Viagem Imperfeita ( (1973), A Província Deserta (1974), A Serra das Confusões (1978, editada por Cineas Santos, com ilustrações geniais de Albert Piauí, saiu originalmente em A Província Deserta), A Cidade Substituída (1978), El Matador (1980, em forma de folheto, com xilogravura de Fernando Costa, editado por CS, saiu originalmente em O Dia Sem Presságios), Os Signos e as Siglas (1986, ilustrada por AP e editado por CS), Uma Antologia Provisória (1988), Cantiga de Folha (1989), Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina (1992), Ephemera (1995), Grandeza e Glória nos Letreiros de Teresina (1997), Lírica (2000), Um Homem Particular (contos, 1987, ilustrado por AP), Gleba dos Ausentes - Uma Antologia Provisória (2002). Entre as antologias que tem a poesia de H. Dobal incluída, Desde Planalto Central - Poetas de Brasília (2008, organizada e apresentada por Salomão Sousa).




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Menezes y Morais é um piauinauta resindindo em Brasília. Somos contemporâneos dos anos setenta em Teresina. Nos reencontramos neste espaço sideral.
* Jornalista, professor, escritor e historiador piauiense. Contato: menezesymorais@gmail.com

Ilustração: caricatura de Netto de Deus. Fotografia do álbum de família subtraído de Kenard Kruel.

Expectativa




Vivi Fernandes


a criança, o ônibus,

o jornal, o banco,

o olhar, o mendigo,

a pipoca, o carro,

a tristeza, o orelhão,

o poste, o desânimo,

a árvore, o pombo,

o papel, a caneta,

a lágrima, o lenço,

a rua, a casa,

a saudade, a foto.

Enquanto te espero, nada rima.

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Recebido de Paulo José e publicado por merecimento...

Ilustração: "ela espera sempre", FAO

marchinha do communit party


Já que tudo é carnaval, essa é pra cantar com a música de "Jardinheira" (de Benetito Lacerda e Humberto Porto):



Ò comunista por estás tão triste
Mas o que foi que te aconteceu?
Foi Fidel Castro que caiu do galho
Suspirou com Marx e depois morreu

Vem Che Guevara, vem meu amor
Não fique tiste que esse mundo enloqueceu
Era muito mais bonito
Mas meu sonho não morreu

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Serra Vermelha



O Piauinauta, alertado pela carta abaixo, sobrevoa a devastação na Serra Vermelha. O que parece cuscús de milho ou oca de índio na estrada são fornos de carvão, na queima irresponsável da floresta. O sul do Piauí virando carvão num resto de Mata Atlântica faz o Piauinauta chorar.

Cartas para a Redação





Olá Piauinauta,

Pegando uma carona neste espaço que tenta compreender o século que estamos vivendo estou enviando o cartaz de uma campanha para salvar a Serra Vermelha, uma floresta de mais de 300 mil hectares que se manteve intocada no Sul do Estado até um empresário carioca ganâncioso, João Batista Fernandes, descobrir e se aliar a políticos imprestáveis que historicamente se locupletam de nossas riquezas para transformar árvores do cerrado, caatinga e mata atlântica em carvão. Depois de muita briga com o governo e muita luta nas ruas, conseguimos parar com a produção de carvão, entretanto, novamente governo e empresário tentam agora instalar na área uma termoéletrica. A pergunta é? pra que uma termoéletrica entre os municípios de Curimatá, Morro Cabeça no Tempo (lindo esse nome e o lugar também) e Redenção do Gurguéia que somadas não têm mais de 30 mil habitantes. Queremos sim, criar um parque nacional e preservar as três espécies de onças que lá existem, os macacos, centenas de espécies de pássaros, antas, veados, caititus, aroeiras, barrigudas, ipês etc. A idéia é enviar emails ao ministro Carlos Minc, cujo endereço está no cartaz e pedir a criação da unidade de conservação. Conto com a contribuição de vocês pois somente assim as gerações dos próximos séculos conhecerão tamanha riqueza.
abs grande,

Tânia Martins, jornalista, Teresina.

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O Piauinauta acompanha há muito tempo a destruição da Serra Vermelha. Era como se não quisesse acreditar que o primeiro governo de esquerda no Piauí pudesse deixar isso acontecer. Mas nada foi feito para deter a destruição desse patrimônio. Solidário com Tânia, o Piauinauta entra na campanha.

Cabeça do Tempo

Edmar Oliveira


Único pedacinho da Mata Atlântica do lado de cá do Parnaíba. Ainda assim, setenta e oito mil hectares de floresta prenhe em fauna guardada da extinção, cujos representantes se fazem na bela onça-pintada e no esquisito tatu-canastra. Parece um pedaço de tempo perdido de quando éramos meninos e tínhamos medo de onça na mata, que nunca mais se viu. Mas a onça da nossa imaginação pode ainda ser encontrada perto do Morro Cabeça do Tempo, nome de um município da região mágica da Serra Vermelha. E é da Cabeça do Tempo que eu quero falar.


Estado pobre e esquecido, por sorte tinham esquecido também de nos explorar. Mas eis que chegou o progresso no meio da mata virgem. Primeiro o carvão vegetal. A ganância entrou mata adentro derrubando sapucaias e pequizeiros, imburanas e juazeiros. Com o fogo também se explorava a colméia das abelhas na força burra de mais destruição que mel. Mas o carvão endinheirava o grileiro e abatia pedaços de mata que não mais se refaz na cabeça desse tempo em que estamos perdendo o planeta pela exploração desenfreada, sem paralelo na história da civilização.


Os homens que pensam o progresso são inquietos no pensar em tirar da natureza bruta algum benefício imediato ao bem-estar da humanidade (sic). A luta dos ambientalistas, na contenção da tentativa gananciosa de transformar toda a Serra Vermelha em carvão, foi necessária para se pensar ali um parque de preservação ambiental. Mas os homens do progresso querem o parque convivendo com uma termoelétrica, para continuar produzindo energia burra da queima da floresta. Em nome do progresso geram-se empregos e juntam-se os fornos descontrolados mata adentro na usina sob controle (dizem). Não creio nesta tese do governo de esquerda do meu pobre Estado. Ele fica muito mais rico se a Serra Vermelha for deixada em paz, ainda bruta em natureza, necessária também para preservação da raça humana. Que precisa saber da existência da grande onça-pintada e do tatu-canastra, para que esses seres já muito raros, que conviveram com nossos antepassados, não sejam extintos da nossa imaginação. É para a sobrevivência da cabeça do nosso tempo que precisamos pensar na preservação da Serra Vermelha...



sequência de fotos: onça pintada, imaginemos uma termoelétrica no sertão, serra vermelha. Ver SOS Serra Vermelha

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Um piquizeiro queimado consola uma sapucaia ainda em chamas na devastação da Serra Vermelha.
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Peraltagem







Manoel de Barros

O canto distante da sariema encompridava a tarde.
E porque a tarde ficasse mais comprida a gente sumia dentro dela.
E quando o grito da mãe nos alcançava a gente já estava do outro lado do rio.
O pai nos chamou pelo berrante.
Na volta fomos encostando pelas paredes da casa pé ante pé.
Com receio de um carão do pai.
Logo a tosse do avô acordou o silêncio da casa.
Mas não apanhamos nem.
E nem levamos carão nem.
A mãe só falou que eu iria viver leso fazendo só essas coisas.
O pai completou: ele precisava ver outras coisas além de ficar ouvindo só o canto dos pássaros.
E a mãe disse mais: esse menino vai passar a vida enfiando água no espeto!
Foi quase.
_________________
(Memórias inventadas – Terceira infância – Ed. Planeta)



mandado por Cinéas na sua cruzada semanal: "Da Necessidade da Poesia", o que é uma bênção para quem está no seu correio eletrônico. Essa garimpada divido com vocês.

Desenho de Karmo subitraido de Cardápio do Macarrão

METAMORFOSE DA LETRA


Ana Cecília Salis

passarada
leva para longe,
Bem longe,
Carrega no bico
Passeia em revoada
Pousa no papel
desliza entre dedos...
Antes,
de mar
profundo azul
de botes e veleiros
vendavais e suspiros
qualquer pôr de sol
de sempre amanheceres
sopra para lá...
murmura ouvidos
sutura o talho
Feito da faca
do fio que corta
a tez da alma
pungida
refaz o grito
repara a ferida
carrega daqui
o que de nada adianta
me leva letra...
que te alcanço em qualquer horizonte
com a palma das minhas mãos.

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FOTOPOEMA: Edmar

A Lambreta, a Coca-Cola e a Rede Globo


1000TON

Nos confins desse amado pindorama, um soldadim com cara de curumim, verde-oliva fardadinho, colarinho roto, assim como o resto do seu uniforme, tocava na sua desafinada e enferrujada cornetinha o toque de recolher bandeira, ao fundo um tingindo-tingindo avermelhadaço de brasil-entardecer.
Essa imagem, das mais partidoras de coração meu, eu presenciei, emoldurada por uma das janelas do 5° BEC - Batalhão de Engenharia e Construção, quando trabalhava na Rede Ferroviária Federal (onde permaneci por quase 20 anos), contratado como arquiteto, atuando na área de Patrimônio.
Uma das minhas missões, foi complementar o inventário da já extinta Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. A minha base de operações estava localizada em Porto Velho, Rondônia, o citado Batalhão dava apoio ao nosso trabalho, juntamente com a Prefeitura Municipal de Rondônia.
Diante daquela cena chorei borbotões de nacionalismo involuntário, que brotava feito manancial do meu peito, mais brasil-varonil que nunca!...
Arrependi-me, até, por um breve momento, de ter entoado, nalgum dia da minha pré-juventude, a famosa paródia da “canção do soldado”:
“Nós somos da pátria a guarda/ fiéis soldados por ela amados/ o lema da nossa escola/ é a lambreta e a coca-cola !”....................
Madeira- Mamoré: “cada dormente da velha estrada de ferro representa uma vida perdida na sua construção”, ainda vozes soam, contando a odisséia dos trabalhadores mortos em combate, não só contra as intempéries da monstruosa floresta amazônica, como principalmente no enfrentamento dos mosquitos transmissores da mortífera malária.
Falando em morte, agora, bem perto da data de lembrança funesta do AI-5, vêm novamente à minha cabeça as cenas da ditadura assassina, que torturou e levou pro além muitas brasileiras almas.
Gostaria de me lembrar do glorioso exército brasileiro, através da imagem daquele soldadinho verde-oliva, segurando carinhosamente a nossa bandeira e soprando a sua cornetinha, suando as cores quentes dum entardecer equatorial.
Ele, um brasileiro legítimo, de olhinho rasgado, cor de pau-brasil, anônimo e ingênuo personagem da nossa história, símbolo do nosso povo, irmão-de-sangue-índio, dizimado sem perdão e sem pecado (será que ele não existe mesmo, do lado de baixo do equador?), por todos os impiedosos colonizadores, de ontem e de hoje.
Gostaria também de me lembrar do nosso exército, contemplando a imagem do Marechal Rondon, defensor dos nossos irmãos, que emprestou o seu nome a Rondônia, servir e não ser servido, morrer se preciso for, matar nunca!
Mas as Organizações Globo não me deixam...
Quando ouço a tonitroante sonora abertura do Jornal Nacional, me invadindo por toda a vizinhança, eu fico esquizofrenicamente impregnado pelo visgo pegajoso do conluio escroto da Globo com a Redentora.
Colonizadora e Colonizada, que foi, e ainda o é, ao invés de prestar os devidos esclarecimentos históricos nas matérias sobre o AI-5, principalmente no que tange ao seu próprio colaboracionismo, a Globo evitou mirar-se num espelho, para não se deparar com sua verdadeira, decrépita e horripilante imagem, muito assemelhada ao patife-mor-roberto-marinho, preferindo, sorrateiramente, esconder-se envolta numa mortalha fétida banhada de sangue.

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(EM SOLIDARIEDADE À MATÉRIA DO EDMAR, PUBLICADA NO PIAUINAUTA ANTERIOR)


Ciume





Keula Araujo

Quantas mulheres você já amou
por entre as minhas pernas?


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"Ciume" é um verdadeiro paideuma poundiano. Ilustração:Paulo Moura

CAMILO FILHO



Geraldo Borges

Jamais me esquecerei do professor Camilo Filho. Muitas coisas pitorescas, que caracterizaram a sua pessoa, estão vivas em minha lembrança: a sua famosa gargalhada, que irrompia do ventre, com ares filosóficos, e raiava pela garganta. Saia pelos olhos miúdos e acesos, debaixo das sobrancelhas, e desembocava como uma cachoeira ressoando pelo recinto onde ele se encontrava. Era uma beleza para os ouvidos que estavam por perto.

Outra lembrança, era o charuto, pendurado debaixo do bigode, grossas baforadas perfumando a sala de aula. Suas piadas eram antológicas, seus discursos em solenidades, arrebatavam os auditórios. Declinava frases majestosas, que dizia estarem na Bíblia, e, como a Bíblia é uma vasta enciclopédia, ninguém ia conferir. A palavra do professor era uma sentença.

Foi reitor, por muito tempo, da Universidade Federal do Piauí. Começou na política muito cedo. Foi dono de jornal, historiador. Era, sobretudo, um bon vivant. Gostava de uma vez por outra quando ia fazer um comentário jocoso em suas conversas de usar as palavras: en passant. Com certeza apreciava muito a língua francesa. Pois era do tempo em que se estudava francês no Liceu

Camilo Filho, era um cidadão de direita. Passou a vida inteira no PSD, depois ARENA, depois PFL. Era um homem bom. Empregou muita gente na Universidade. Lembro-me quando o Benoni Alencar esteve preso pela primeira vez. Quando saiu da cadeia o professor Camilo lhe estendeu a mão, arranjou-lhe um emprego, um serviço para ele cuidar de sua biblioteca. Arranjou emprego também para o Evandro Setúbal, que também foi preso com a gente. Evandro trabalhou em seu jornal Opinião..

Quando fui indicado, para participar do Conselho Editorial da Universidade, através da Fundação Cultual, pelo José Elias, encontrei o professor Camilo filho integrando o grupo. Já não fumava mais o seu charuto. Contentava-se com um simples cigarro. en passant fiquei sabendo que ele era apaixonado pelo historiador inglês Arnold Toynbe

Camilo Filho merece uma biografia. Seria um livro muito importante para se conhecer páginas esquecidas e interessantes da história política e cultual do Piauí. Pouca gente sabe que seu pai, que era industrial, possuía uma fábrica de cigarros em Teresina. Foi obrigado a vendê-la para a companhia Sousa Cruz.

Um grande desejo do professor Camilo Filho, que confessou para pouca gente, num momento de desabafo, era ter sido governador do Estado. Bem que merecia. Pois passou a vida inteira servindo burguesia de seu partido. Não deu. Mas, em compensação passou muito tempo mandando na Universidade do Piauí.

Camilo Filho. O ar bonachão, o sorriso maroto, a gargalhada, o charuto, os olhos miúdos, apertados debaixo das sobrancelhas, os discursos, as solenidades, o humor na sala de aula, as frases da Bíblia, as piadas, marcam para mim o retrato de um cidadão ilustre que fez história em sua província. Que a terra lhe seja leve e sua gargalhada jamais seja esquecida.

50 mil contos de réis



O fim da Democracia



Edmar Oliveira

Os americanos sempre quiseram vender ao mundo a sua democracia. Ideal de um regime político, onde a liberdade dificultava a igualdade. Mas todos os cidadãos são livres para o empreendimento democrático, onde qualquer um pode ser desigual da maioria. O detentor dos meios de produção pode ser qualquer um, que as oportunidades são iguais, destacado da massa dos que são os vendedores da mão-de-obra (e hoje, com o avanço tecnológico, alguns vendem a cabeça-de-obra). Não se diz que não tem lugar pra todo mundo na primeira fila. Mas os que não chegaram lá não conseguiram por deficiência pessoal, já que a oportunidade estava ao alcance de todos. A marca do individualismo, nesse regime, está estampada nos objetivos do sistema.



Muito de nós sonhou com a utopia da igualdade. Da fraternidade socialista, segundo a qual a cada um pertence o seu necessário. A quantidade do que produzo em excesso, por maior capacidade, é coletivizada, sendo o Estado tutor dos cidadãos iguais. O problema é convencer a natureza humana dessa fraternidade ideológica. Portanto, os regimes que ensaiaram a fábula da igualdade tiveram que cercear a liberdade. Os três ideais da Grande Revolução francesa nunca puderam ficar juntos. Liberdade provoca um laço fraterno sem a igualdade. Igualdade obriga uma fraternidade sem liberdade. A natureza humana não pode combinar estes três ideais da utopia burguesa inicial.



Rousseau, o inventor desse princípio assimétrico, melhor define a condição humana numa frase determinista: "O homem nasce livre, porém em todos lados está acorrentado". Quando a nossa corrente era a ditadura, ensaiamos a luta armada como libertária. A derrota de Guevara era inevitável como a dos filhos da pátria. Tivemos que colocar a democracia no horizonte das utopias para nos livrar das correntes da opressão.Ela veio. Ensaiou vôos assimétricos. Ainda não era plena com Sarney, Collor e o professor da Suborne conduziu o Consenso de Washington para nos fazer entrar no neoliberalismo. Ganhamos com Lula para descobrir que pouco se pode fazer numa real mudança. E que estamos presos aos grilhões neoliberais. E que a democracia nos acorrenta agora, impedindo a mudança das leis do capitalismo. Como sempre quiseram os americanos.



A democracia como um fim é o seu próprio fim. Não importa tanto a mudança dos governos. A marcha inexorável do sistema nos coloca no mesmo lugar. Para a democracia não se precisa do voto obrigatório. Quando a esperança pode ser um negão vamos todos às urnas. Sem o contágio, vota quem quer, que é quase tudo a mesma coisa...


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publicado originalmente na Casa Lima Barreto. Desenho: Mafalda de Quino.

Pajuçara





Juarez Montenegro

Levava minha réstia, minha vara,
o meu cardume, a cáfia do Oriente,
e muitos seres, mais a nossa gente
pra ver-te a praia, ó doce Pajuçara.

Mais levaria se pudesse, à frente,
não fosse a humana vida tão avara;
levar-te-ia, ó meiga Pajuçara,
o tempo que de ti estive ausente.

Um escarcéu por certo levaria,
uma balbúrdia em plena luz do dia,
um tropel desvairado e divergente...

Coisas do desalento ou da saudade...
arrastaria até a liberdade,
se dela não vivesse tão descrente!...
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Ainda existem bilaquianos como Juarez...

Linguagem da Travessia



Luiza Baldan, acesse o site

Procura-se



Fátima Venutti




Inda ontem fiz faxina em minha vida.

A rolha de um tão guardado cabernet chileno foi quebrada pelo sacarrolha. Brindei a mim, foi-se o primeiro gole. Abri o armário dos anos e busquei, em cada prateleira, os planos não concretizados. Alguns amores não resolvidos saltaram da quina da gaveta. Novamente o amargo das lágrimas subiu pela garganta. Fiz um nó bem bolado com cada um deles, abri o saco plástico de cem litros e joguei dentro, bem ao fundo.

Foi quando meu braço esbarrou na caixa de fotografias. Infância, parentes, valores, dogmas e descobertas se confundiram com adolescência. Em meio a amigos de escola, desaparecidos pelo traço da vida, momentos de desencontro comigo mesma desfilaram pelas sombras de versos amassados desprezados no auge dos hormônios. Destilando imagens, filtrei poucas gravuras, rasguei algumas paisagens e ateei fogo nos rostos indefinidos. Mais um tanto pro saco de cem litros.

Avistei os cabides com meus dias positivos e de glória, meus desejos irreais personificados perpetuando no espaço de um imenso rolo compressor de histórias, mentiras e verdades estudadas. Hoje, a maioria não me é mais necessária. Outros tantos valores escolhi e me esqueci de abrir espaço nessa caixa. Outros nós e o ávido calor das labaredas a consumir o que conquistei(meus troféus). Tornado pó, cinzas engolidas pelo saco de cem litros.

Prateleiras de vidro vazias. Armei fogueira com meu conhecimento das artes, literatura, cinema, esporte e tudo o mais que com orgulho organizei e adquiri; nela vomitei a bílis de minhas noites de boemia e minhas solitárias manhãs de ressaca cultural. Minha mente ferveu e fedeu a soberba da hipocrisia social. Tudo pro saco.

Horas passadas, o cabernet está quase no fim. Ainda falta o pior: o hoje.

Cores cítricas para os amigos; tom pastel para família (ou o que restou dela); os de tom terra acolhem-se nas barreiras, dificuldades e projetos e sonhos frustrados - meus naufrágios escondidos. Vista e viva, a magenta toma toda a forma de minha mente: restou-me somente o verbo amar. Sons, odores, sabores e cores. Banhei-me na fuccia dos orgasmos escondidos, aspirei todo o ar aparente, bati as portas do armário da minha vida. Deslizei as costas e sentei-me no chão, enquanto o cabernet era sorvido até a última gota. Então chorei toda minha infância pobre.

Mês passado fiz faxina em minha vida. Ao trancar o armário, esqueci a chave da memória dentro. Inda olho o saco de cem litros e recordo o quanto eu respiro pra me manter só.
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Fátima Venutti, Paulistana de Osasco, 41 anos. Reside em Blumenau, Santa Catarina desde 2002. Formada em Letras. Escreve desde os 11 anos e tem uma paixão por textos que elucidam o encontro de almas, a transformação do “ser” quando está amando. Possui textos premiados em concursos literários.
Fátima mandou esta coluna especial para o Piauinauta. A ilustração veio com a crônica. Ela tem um simpático blog chamado "Último Beijo"

Rajão




Alexandre Rajão é artista plástico e meu amigo. Essa colagem acima foi vendida por ele na Feira de Ipanema, na década de 80, por qualquer vinte réis. Está num galeria da internet no site http://www.karlie.com/alexandre-rajao.html oferecida a U$ 900.00, com as inscrições sobre: Alexandre Rajao (1952-) "COLLAGE" Signed "ALEXANDRE RAJAO ‘87" lower left, acrylic & crayon on paper 25 x 19 inches.