quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Procura-se



Fátima Venutti




Inda ontem fiz faxina em minha vida.

A rolha de um tão guardado cabernet chileno foi quebrada pelo sacarrolha. Brindei a mim, foi-se o primeiro gole. Abri o armário dos anos e busquei, em cada prateleira, os planos não concretizados. Alguns amores não resolvidos saltaram da quina da gaveta. Novamente o amargo das lágrimas subiu pela garganta. Fiz um nó bem bolado com cada um deles, abri o saco plástico de cem litros e joguei dentro, bem ao fundo.

Foi quando meu braço esbarrou na caixa de fotografias. Infância, parentes, valores, dogmas e descobertas se confundiram com adolescência. Em meio a amigos de escola, desaparecidos pelo traço da vida, momentos de desencontro comigo mesma desfilaram pelas sombras de versos amassados desprezados no auge dos hormônios. Destilando imagens, filtrei poucas gravuras, rasguei algumas paisagens e ateei fogo nos rostos indefinidos. Mais um tanto pro saco de cem litros.

Avistei os cabides com meus dias positivos e de glória, meus desejos irreais personificados perpetuando no espaço de um imenso rolo compressor de histórias, mentiras e verdades estudadas. Hoje, a maioria não me é mais necessária. Outros tantos valores escolhi e me esqueci de abrir espaço nessa caixa. Outros nós e o ávido calor das labaredas a consumir o que conquistei(meus troféus). Tornado pó, cinzas engolidas pelo saco de cem litros.

Prateleiras de vidro vazias. Armei fogueira com meu conhecimento das artes, literatura, cinema, esporte e tudo o mais que com orgulho organizei e adquiri; nela vomitei a bílis de minhas noites de boemia e minhas solitárias manhãs de ressaca cultural. Minha mente ferveu e fedeu a soberba da hipocrisia social. Tudo pro saco.

Horas passadas, o cabernet está quase no fim. Ainda falta o pior: o hoje.

Cores cítricas para os amigos; tom pastel para família (ou o que restou dela); os de tom terra acolhem-se nas barreiras, dificuldades e projetos e sonhos frustrados - meus naufrágios escondidos. Vista e viva, a magenta toma toda a forma de minha mente: restou-me somente o verbo amar. Sons, odores, sabores e cores. Banhei-me na fuccia dos orgasmos escondidos, aspirei todo o ar aparente, bati as portas do armário da minha vida. Deslizei as costas e sentei-me no chão, enquanto o cabernet era sorvido até a última gota. Então chorei toda minha infância pobre.

Mês passado fiz faxina em minha vida. Ao trancar o armário, esqueci a chave da memória dentro. Inda olho o saco de cem litros e recordo o quanto eu respiro pra me manter só.
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Fátima Venutti, Paulistana de Osasco, 41 anos. Reside em Blumenau, Santa Catarina desde 2002. Formada em Letras. Escreve desde os 11 anos e tem uma paixão por textos que elucidam o encontro de almas, a transformação do “ser” quando está amando. Possui textos premiados em concursos literários.
Fátima mandou esta coluna especial para o Piauinauta. A ilustração veio com a crônica. Ela tem um simpático blog chamado "Último Beijo"

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