domingo, 19 de outubro de 2014

A LENDA DOS RIOS

(Edmar Oliveira)

"Jesus" andando sobre as águas
Foram várias as postagens neste blog da preocupação sobre a situação dos dois rios que abraçam minha cidade. Um que se arrasta lento e nos separa do Maranhão, outrora a nossa via de acesso ao resto do mundo, morre sufocado pelos bancos de areia do assoreamento de suas margens que aprisionam seu caminhar. O “velho monge” da definição do poeta Da Costa e Silva agoniza no seu leito de morte. O outro rio que nos apertava num abraço, desde a curva de São Paulo – passando pela floresta fóssil da Ilhotas – até o encontro das águas com o grande rio era o limite da nossa cidade. Quando estudei no Colégio Batista, várias vezes pulei os seus muros para banhar nas águas claras do Poty. Mas ele foi condenado pelo crescimento da cidade, que saltou para o outro lado do rio, ergueu edifícios e fez dele um esgoto dos dejetos sem tratamento. Há tempos ele vem parando, seguro por uma enorme quantidade de aguapés que se alimentam da merda.

Esta semana, um amigo postou algumas fotos na internet que me assustaram muito. Foi como não houvesse mais salvação para os rios que tanto cantei por aqui, preocupado com o seu destino.
No encontro dos rios tem um monumento ao Cabeça de Cuia, a nossa lenda mais metropolitana e cruel. Crispim, o pescador dos dois rios não conseguindo pescar nada em suas águas é recebido em casa pela velha mãe que preparou uma sopa com o osso da perna do boi – que chamamos “corredor”. O pescador, raivoso pela fome, com o “corredor” do boi golpeia de morte a velha mãe, que antes de morrer pragueja para que ele só se salve depois de comer sete Marias virgens, que lavavam roupas nas águas do rio. Daí em diante Crispim deixa deslizar pelas águas dos rios sua enorme cabeça, parecida com uma cuia, assustando as moiçolas virgens lavadeiras nas margens dos rios. No período de cheia Crispim rondava as margens do Poty. No período de seca ameaçava as virgens nas barrancas do Parnaíba.

Certa feita a Câmara de Vereadores quis instituir o dia do “Cabeça de Cuia”, mas a oposição embarreirou o projeto alegando que não se poderia homenagear um pescador que matou a mãe. Certamente que o dia do matricídio não podia ser instituído na província. Mas essa é a lenda mais urbana de nossa cidade quando ela era banhada por seus dois famosos rios.

Esse amigo, que falei acima, foi ao lançamento do livro “Cabeça de Cuia, a lenda” de Carlos de Holanda, que aconteceu no encontro das águas, no monumento erguido sobre a lenda, mais precisamente no seu centro artesanal. Um acontecimento notável e que reuniu muitos interessados na nossa história.

Mas este meu amigo, durante o lançamento, conseguiu fotos incríveis: uma mostra o rio com bancos de areia que fazem uma verdadeira barragem a seu curso. Noutra o meu amigo achou que via Jesus caminhando sobre as águas: um homem atravessava o rio com água nos pés. No centro artesanal havia um museu do peixe, com várias espécies de peixes que outrora eram encontrados nestes rios. Eu conheci este museu. Pois o meu amigo diz que ele está abandonado e o líquido conservante dos peixes está vazando. Os peixes que antes se encontravam no rio, logo não existirão nem no museu. A foto aqui postada comprovam estas histórias.

A gente brincava nas beiras dos rios dizendo para as meninas que o Cabeça de Cuia só queria as virgens. Uma espécie de cantada grosseira. Mas nós também tínhamos medo do Cabeça de Cuia.
Acho, com meus botões, que a lenda era para assustar os meninos e as meninas que se perdiam e morriam nas águas do rio. As águas caudalosas do Parnaíba de outrora afogaram muitos conhecidos meus e da cidade. O Poty era perigoso nas cheias, daí o Cabeça de Cuia se mudar pra lá. Em Teresina a gente tinha medo do Cabeça de Cuia nas águas dos rios e da Não-Se-Pode nas ruas escuras (volto a esta lenda depois).

Mas a lenda do Cabeça de Cuia acabou. As Marias virgens (se é que ainda existem) não lavam mais roupas nas suas águas. Os meninos não tomam mais banho de rio. E se banham não há a possibilidade de afogamento, mas de atolamento e de doenças dos esgotos.
Meu medo é que os rios virem uma lenda...

   

Peixe sem conservante: vai morrer de novo



Bar Flutuante encalhado num banco de areia

____________________________
Todas as fotos são de Kenard Kruel

E ATENÇÃO: AVISO AOS ASTRONAUTAS: O PIAUINAUTA INTERROMPE SUA FREQUÊNCIA QUINZENAL PARA FICAR FORA DO AR POR UM TEMPO NECESSÁRIO A QUE EU POSSA ME DEDICAR A OUTRA ATIVIDADE.
MAS EM MUITO BREVE VOLTAREMOS. APROVEITEM ESTAS POSTAGENS POR UM BOM TEMPO. FOLHEIEM O BLOG. SÃO MAIS DE 2000 POSTAGENS EM 7 ANOS EM ATIVIDADE. PROMETEMOS VOLTAR O MAIS BREVE POSSÍVEL.






Salgado Maranhão


LACRE 2

Sonhei a flecha Karajá
chispando o vento. Da taba
à Civilização do Prepúcio; sonhei

um ramo de espírito: o urucum

no Corão.
Que mar é esse
que inunda meus guizos?
Que arcabouço alçará
minhas ramas de luz?

Um sol há de haver
para os que têm fome
de aurora, para
os roedores de silêncio.

Há um tempo de negar 
o sangue ao sepulcro(
negar o osso ao machado
.)

A vingança entornou-se
no furor que devassa
o nosso umbigo(e 
onde Deus esqueceu-se
das flores?).

São matilhas uivando 
o que resta.


SALGADO MARANHÃO
___________________________
ilustração: Amaral





Lua por Amaral









BRINQUEDO PERIGOSO

usuário com o acessório e o Oculus Rift

(Edmar Oliveira)

Já existe um novo candidato a milionário no mundo da internet. Palmer Luckey é o nome do garoto prodígio que numa garagem teve uma ideia tipo “ovo de Colombo” dos seus antecessores Bill Gates ou Steve Jobs, entre os inventores virtuais modernos. O garoto pensou numa geringonça acoplada à cabeça, com imagens 3-D que mudam conforme o movimento de corpo e da cabeça do usuário. Numa sala, o usuário andando ou movimentando a cabeça para os lados ou acima e embaixo faz com que a imagem visual se modifique na mesma proporção. Quem já testou o aparelho atesta a sua capacidade de criar uma realidade virtual e as reações das pessoas são impressionantes. Algumas reações de usuários do aparelho é como se estivessem tendo um ataque de loucura[1].

O nome da geringonça é Oculus Rift previsto para lançamento em breve com acessórios. É que além de acessórios opcionais (armas, volantes, joystick) a indústria que comprou a ideia de Palmer bolou um acessório obrigatório que acompanha o treco. Um “andador” para adultos, que não sai do lugar, com cinto de segurança, que impede que o usuário não saia andando pela sala e pule a janela inadvertidamente. Sabe como é: o ataque de loucura tem que acontecer com o paciente imobilizado para que o fabricante não seja acusado de induzir acidentes ou ataques suicidas. Um brinquedinho pra lá de perigoso!
pânico num usuário idoso

Na minha época, o cara para fazer uma “viagem”, como a prometida, fumava “unzinho”. E ficava abestalhado destacando os sons mais intensos das músicas na vitrola, vendo a realidade passar em câmara lenta ou se acabando de rir do quê não tinha graça, se estivéssemos careta. Os mais ousados faziam uma “viagem psicodélica” com LSD. Mas era apenas uma distorção da realidade que nunca chegava a ser virtual. 

Agora não: a droga é virtual com criação de uma realidade que não existe. Pelo que vi nas demonstrações do aparelho, não tenho a menor vontade de ser submetido a uma loucura virtual, amarrado num “andador” para não ter perigo de me machucar ou machucar alguém. E é interessante como essa droga é legal e vai ser vendida livremente no comércio, para que os meninos apreendam a loucura da vida real a partir de uma realidade virtual. Tristes tempos!

Tudo o que tentei descrever aqui não chega perto das reações em tempo real que a geringonça provoca nos seus usuários como pode ser visto nos links abaixo.





[1] Você pode ver o funcionamento do Oculus Rift em: http://youtu.be/INDKNA7kXoo ou em http://youtu.be/dokd29KCzKo



Chico por MÁXIMO


Antonio Máximo é um desenhista carioca que me pediu "amizade" pelo FB. Eu não merecia, o homem é um gênio. E permitiu que seus desenhos, vez por outra, frequentem aqui o Piauinauta. Não o conheço pessoalmente, mas sou amigo do cara desde criancinha.

O Livro

(Geraldo Borges)

O livro é de certo modo antropomórfico. Pois tem algumas características humanas. Como por exemplo, orelha, e, além do mais, se perfila de pé (olha aí a redundância) em uma prateleira, no recinto de uma biblioteca. O livro também tem lombadas, lombada fina, lombadas grosas. O livro pode ser um biscoito para o mais fino paladar, e também um tijolo capaz de construir uma catedral.
A história do livro é muito antiga. Talvez se não tivéssemos  incendiado a biblioteca de Alexandria  soubéssemos mais  coisas a seu respeito. O livro já foi chamado de rolo,  de bíblia que é o livro dos livros, uma verdadeira biblioteca. Diz-se  muita coisa dos livros. A Inquisição disse cobras e lagartos sobre eles.

Durante a história do livro muitos foram censurados, e seus autores levados às barras do Tribunal. Mas como é bonito ver uma criança entrando na escola com um  livro debaixo do braço.
Escrever livros não tem fim, diz o livro. Mas  o melhor do livro é que ele tem vida e dá energia ao leitor. Claro que existem livros que dá sono. Mas quantas pessoas estão precisando dormir. Se fossemos ficar aqui falando de livros terminaríamos escrevendo um livro. Livros, livros a mancheia, que manda o povo pensar.

Eu tive a sorte de gostar de livro desde pequeno. Sou do  tempo em que se encapavam livros, com papel ordinário para evitar que o livro se estragasse. Era fácil encapar um livro. Hoje as pessoas não fazem mais isso. Um livro encapado escondia o titulo e o conteúdo. A Carne, de Júlio Ribeiro, deve ter sido encapada por muitas adolescentes que moravam em pensionato.

 Antigamente o livro saia virgem do prelo, quero dizer com as paginas lacradas. Era preciso uma espátula para que o leitor no  ato e ler, que é um ato altamente sensual,  fosse guilhotinando  as páginas, capítulo por capítulo, num ritual que foi esquecido na história da leitura. Outro objeto que está incorporado a história do livro é o marcador de texto. Mas também existe pessoas que marcam  a pagina, onde ficaram para depois continuar a leitura, com a unha: outros menos zelosos, dobram a pagina do livro. Cada um cuida de seus livros como quer. Inclusive há pessoas que compram livros apenas para enfeite: uma jóia que, enfaticamente, enfeita uma sala. O livro enriquece o intelecto. Mas, também tem o seu lado obscuro. Cada leitor é uma leitura. Cada linha é uma entrelinha, onde um leitor  vê uma metáfora, alguém pode vê apenas um expressão denotativa.

Bom, como eu disse no alto dessa coluna, o livro é antropomórfico, tem roda pé, folha de rosto. Muitas florestas já foram colocadas no chão por causa dele. Em compensação  ele abriu muitas lareira no entendimento da humanidade. Livros geram livros. Os romances de cavalaria fervilharam a cabeça e o coração de Dom Quixote que  gerou o Fidalgo de  la Mancha,  que gerou,  por sua vez, o romance moderno, com o seu herói bovarista.

A história do livro é a história do pensamento humano. Já pensou o que seria do Brasil se não houvesse analfabetos. Se todo mundo conhecesse o livro por dentro e por fora. Soubesse o que é um capítulo, um parágrafo. Não soubesse apenas o que é livro de ponto, o que é guarda-livros. Voltando a dizer que o livro é antropomórfico  dou testemunha que a leitura transfigura. É fácil  distinguir  um homem de um só livro,  de um homem enciclopédico: um tem as feições mais severas, o outro mais acolhedora.


Uma nação se faz com homens e livros. Este mote de Monteiro  Lobato é bastante conhecido. Mas onde estão  os homens, onde estão os livros? Meu reino por uma biblioteca. As bibliotecas estão apodrecendo nos porões úmidos de algum reino  encantado.O mundo da velocidade está botando o livro para  escanteio. Quem quiser escrever hoje em dia tem de entender de  tatuagem, se transformar em seu próprio livro, escrever em sua própria pele com o seu próprio sangue. Juro que pouco leitores estão me entendendo. Por isso mesmo vou fazer ponto final. Eu sou um livro. Talvez não seja um livro aberto. Mas quem sabe um  dia.




Ziraldo por Gervásio


MEDO DO PASSADO

(Edmar Oliveira)
a TFP em Botafogo e o esgoto da intolerância

Não esperava viver para testemunhar um novo ciclo da história. Como sempre gostei da matéria na escola, aprendi esses ciclos nos livros. A UDN, liberal e golpista, tentou um golpe de estado que o suicídio de Getúlio evitou por dez anos. Mas conseguiu aplicar o golpe em Jango e entregar o governo ao militares. E foram esses anos de chumbo que vivi. Eu só tinha treze anos, mas, mesmo morando no nordeste, vi o céu escurecer, as liberdades acabarem, os reacionários mandarem, a igreja aumentando os pecados e restringindo o livre arbítrio, a TFP (Tradição, Família e Propriedade) com seus estandartes medievais, pregando os valores conservadores da sociedade, ficaram na minha retina como um símbolo de defesa das tradições imutáveis. Com a morte de Edson Luís descobrimos que pagaríamos caro para sair do manto da repressão e do horror.

Mas brigamos. Muitos morreram nos ideais da juventude. Uma geração foi torturada e massacrada nos porões da ditadura. Outros protestaram com seus cabelos longos, suas roupas extravagantes. Protestando como podiam fizeram música, escreveram, fumaram maconha. Por vinte anos mergulhamos nos anos de chumbo até o alvorecer da redemocratização e suas conquistas. E foram muitas. E foi ver de novo o céu brilhar no azul dos ideais juvenis que amadureceram.

Mas já fazem 50 anos do golpe da intolerância. A lembrança foi esquecida e só alguns velhos falam desse tempo. E sem saber, os gestos do passado são repetidos, como que para dizer que o ciclo pode recomeçar. Nesses tempos eleitorais a política do ódio impera. Não há argumentos, ou somos vermelhos ou azuis. E o outro não tem razão, pois a razão está do nosso lado. Me afastei dessa discussão maniqueísta e infértil. Mas alguns acontecimentos desta semana me fizeram um medo da intolerância que vivi aos treze anos:

1). O colunista da Folha, Gregório Duvivier, escreveu em sua coluna que voltava para casa no Leblon à pé e uma enorme SUV buzinou para chamar sua atenção e um sujeito bota a cabeça pra fora e berra: “Vaza PT! Volta pra Cuba”. Relata que nos postes cartazes ameaçam: “Aqui se vota Aécio”. Duvivier escreve na grande imprensa e não é petista. A marca da intolerância na zona sul é evidente.

2). O blog de Mauro Magalhães informa que num boteco da zona sul foi gritado esta pérola da intolerância: “Preto tem que morrer na África. Vem fazer o quê aqui?” – referente ao atendimento no Rio do africano suspeito de contaminação por Ebola.

3). Fotos da TFP postadas na internet nas ruas do Rio. As tradições imutáveis dos meus treze anos – que haviam sido derrotadas – voltaram à luz do sol? Foram exatamente essas fotos que me fizeram o medo voltar. Eles estão reaparecendo com os mesmos estandartes do passado que me assustaram tanto.

Os vermelhos brigam e se dividem como sempre. Os azuis aglutinam, mas é muito perigoso esse apoio da intolerância.

Um amigo psicanalista vaticinou: “Freud diz que a paranoia decompõe ali onde a histeria condensa. Será que devo entender que a direita é histérica e a esquerda paranoica?”


Não sei se estou paranoico, mas acho que a intolerância está histérica e se aproveitando da candidatura azul para tentar recomeçar um novo ciclo da história. Batendo na madeira, três vezes...




ORAÇÃO DOS HOMENS


Desejo com todo o meu desejo
Que a esperança seja mais que esperança

Espero com toda tenacidade
Que todos os sonhos bons sejam reais

Vejo no olhar da gente humilde
A fé encantada na justiça humana

Para mim nada tem sentido
Se não for para todos

Desejo com todo o meu desejo
Que nos aguarde um tempo mais feliz

No qual as pessoas simples
Não sintam vergonha da simplicidade

A existência do sol do meu país 
É a prova definitiva da beleza da nossa vida

Ele diz do calor das nossas almas
E aquece de desejo nossos corpos


(Climério Ferreira)
_______________________________
Xilogravura: Airton Marinho, Mestre da arte da Xilogravura no Maranhão. 
Apresentado por Fátima de Deus

Um pouco antes





Quando já não for possível encontrar-me


em nenhum ponto da cidade

ou do planeta

pensa

ao veres no horizonte

sobre o mar de Copacabana

uma nesga azul de céu

pensa que resta alguma coisa de mim

por aqui

Não te custará nada imaginar

que estou sorrindo ainda naquela nesga

azul celeste

pouco antes de dissipar-me para sempre



(Ferreira Gullar – Em alguma parte alguma- Ed. José Olympio)

domingo, 5 de outubro de 2014

Dúvida existencial


(Edmar Oliveira)

Esses cientistas maravilhosos e suas pesquisas fascinantes descobriram que em certas savanas africanas, com alimentação escassa, o comportamento de algumas tribos de chimpanzés derruba o mito de que a violência entre eles só acontecia com a ação humana. Surpresos, alguns estudos mostram que há formação de simulacro de exércitos para combater outros grupos. Ataques de verdadeiras emboscadas e infanticídio com matança materna e estupros também acontecem. Tal qual o comportamento humano de genocídio étnico.

Quanto maior o número de machos numa comunidade, mais violenta ela é. A crueldade desmistificou a crença que tínhamos no altruísmo dos animais, desabafou um pesquisador.

Cá com meus botões, também fiquei deveras impressionado com a descrição de ataques e atos covardes de violência contra um semelhante. Pensava que esse era um comportamento estritamente humano, desde quando atingimos a glória da evolução e fomos expulsos do paraíso. Tinha pensado, até então, que a glória da evolução ou a expulsão do paraíso tinham feito de nós sujeitos da cultura, separados da natureza.

O ser humano, um macaco que não deu certo na integração da natureza, nasce completamente imaturo, ainda não humano, e assim se torna pelo auxilio de um outro que lhe dispensa cuidados maternais. Separado da natureza, pode subjugá-la dentro de códigos humanos que denominamos cultura. E por termos nos separado da natureza, podemos agredi-la, inclusive ao que resta em nós mesmo de natureza, com a guerra entre semelhantes da mesma espécie. Em nome da cultura, compreendemos o barbarismo da guerra. Parece contraditório, mas não é.

Mas lá na savana africana, a guerra e atos cruéis entre inocentes macaquinhos que deveriam estar integrados à natureza, tal comportamento me era completamente incompreensível. A menos que tenhamos descoberto o elo de ligação, exatamente a tribo da qual descendemos ou aqueles macacos descenderiam de uma tribo que renegou o alto da evolução e caminhe para a reintegração de seus membros à natureza e desejam ardentemente voltar ao paraíso.

Colossal dúvida existencial!  


Domingo vou à missa

(Edmar Oliveira)

Eu tinha que prometer. Minha mãe ficava cobrando desde sábado. E, no domingo, enquanto não fosse, ouvia a cobrança, quantas badaladas o sino dobrava. E, naqueles tempos – não sei se agora –, o domingo era dado às missas o dia todo. De forma que eu só ficava livre das badaladas e de minha mãe a cobrar, depois de ter ido à missa. Portanto, desenvolvi um hábito, que conservo até hoje, de acordar cedo no domingo, muito cedo. Naquele tempo era para ir logo à missa, de cinco ou seis horas da manhã, e ficar com um domingo espichado pra fazer as brincadeiras que só existem hoje na minha imaginação: jogar futebol, banhar no rio, caçar passarinho com baladeira, jogar pião, triângulo (só quando chovia e a terra ficava molhada), banhar na chuva (quando tinha), subir no pé de pitomba da dona Zelina e fazer a festa, brincar de pique-esconde, de bombaquim, ir ter com as meninas na pracinha, de tardinha. Hoje, não sei por que acordo cedo. Nem vou à missa, nem brinco mais. Daquela obrigação só ficou o acordar cedo.

Pensava nisso, depois de lembrar que no domingo vou, como todo mundo, às urnas. Confesso que desta vez vou como quando ia pra missa. Meio que na obrigação. É dessa sensação que quero falar, talvez com meus botões.

Me fiz militante da esquerda, que na ditadura constituiu minha formação democrática. Gritei pelas liberdades nas diretas já, ansiei pela democracia como que para respirar. Participei das campanhas embandeiradas dos primeiros momentos da democracia reconstituída, senti uma sensação de embriaguez cívica na primeira eleição do Lula. E o que aconteceu comigo, após apenas vinte e poucos anos da jovem democracia? O problema, se fosse só comigo, não tinha a mínima importância. Mas olho ao lado e eu não vejo mais ninguém embandeirado daquelas eleições, que marcavam o matiz ideológico nas defesas de propostas. Os meninos e meninas que seguram os galhardetes dos candidatos são os mesmos que distribuem panfletos de lançamentos imobiliários nos sinais. Como as propagandas só podem ser afixadas nas fachadas das casas, vi uma, no subúrbio, com dois candidatos a prefeito de partidos diferentes. Numa clara alusão ao aluguel comercial do espaço e não na proposta dos simpatizantes, imaginada pelo Tribunal Regional Eleitoral.

A democracia virou uma mercadoria, como outra qualquer, no neoliberalismo. Os interesses das corporações são os definitivos, no jogo eleitoral. Fica parecendo tudo igual, apesar das preferências de uns e outros. E é claro que sou uns e prefiro outros. Continuo defendendo um rumo melhor para a humanidade, mesmo nessa democracia esmaecida no arco-íris ideológico.

A socialdemocracia brasileira fez uma opção preferencial numa aliança com a direita, herdeira da ditadura. O partido de esquerda, para enfrentar a força avassaladora do seu contrário, aliou-se aos não-ideológicos, que se apropriaram da máquina corruptora, também herança da ditadura. A diferença vai diminuindo. E isso é ruim. Daqui a pouco teremos um elefante e um jegue, que representam o fim da democracia nos EEUU.

Quero errar nessas conjecturas. Espero uma análise política que me devolva o ânimo perdido. Mas que nesta eleição vou como ia à missa, ah, isso eu vou! E cedo, para que o domingo fique maior, que eu vou inventar umas brincadeiras...

_______________

Crônica publicada aqui em 02 de outubro de 2008, daí a citação dos cartazes para a eleição de prefeitos. Essa de hoje é uma eleição maior, mas o meu ânimo é o mesmo daquele tempo. Portanto repito a crônica. E a igreja é a do Amparo, onde o Piauinauta ia votar na fé que acabou na urna...

pobre Rio por Gervásio


A missa de hoje


(Edmar Oliveira)

A missa é hoje. Sei que não tenho competência para influenciar ninguém. E se você já foi à missa cedo, quando você estiver lendo isso aqui já empurrou o dedo na urna e fez a sua obrigação cívica, mesmo se contrariado. Votou no deputado do seu estado, aquele em que você confia para elaborar e votar as leis locais em obediência à constituição nacional. Depois apertou quatro números para votar em quem vai fazer, representado o seu estado, parte da legislação. Como temos duas câmaras você hoje terá escolhido um dos seus três representantes no senado. Aqui no Rio, dois que foram eleitos para o Senado disputam a governança sem por em risco seus mandatos: Lindinho e Crivella. Mas estávamos falando da urna e o voto é grande: primeiro digitou dois números para votar no governador e depois mais dois números para o maior cargo executivo do país, o de presidente da nação. Como não somos parlamentaristas, este voto adquire uma grande expressão. E se você já ajudou a selar o destino de deputado estadual, federal e senador, com os dois últimos votos você está escolhendo, salve raras exceções, os dois mais votados que irão a um segundo turno. Isto é, tem missa de novo daqui a 21 dias.

Nas eleições legislativas você terá que ter procurado, feito Diógenes, com uma lanterna iluminar a face de um homem honesto. Confesso que as minhas escolhas, e sempre sou exigente como Diógenes, raramente são eleitas. Acerto um ou outro. Os ficha-sujas que sempre se elegem, para minha consciência tranquila não são de minha responsabilidade. E isso é um grande alívio. Neste ano, aqui no Rio, não existem, no meu critério, senadores com eleição viável indicada pelas pesquisas merecedores do meu exigente voto de Diógenes. Votarei em alguém que certamente não se elegerá. Portanto na eleição ao Senado, neste ano, não verei um meu representante. Não sei se verei representantes nas câmaras estadual e federal.

Para governador as pesquisas apontaram quatro candidatos viáveis, que acho não serem merecedores da minha confiança. Votarei num simpático professor feio e gordinho que vem conquistando a simpatia da irreverência carioca. Se ele tiver dez por cento do eleitorado valeu a pena. Portanto este não é um voto de protesto, mas de convicção. Aí em Teresina parece que não vai ter segundo turno. Aqui acho que vou ter que voltar às urnas.

Para presidente também está previsto um segundo turno. Não estou satisfeito com os rumos tomados pelos partidos que estão no poder. Mas a terceira via que apareceu parece um fiasco e o retorno do reprimido passado neoliberal se apresenta como um pesadelo e não desejo que o país regrida do que pode avançar. Boas surpresas, sem chances, são uma guria de fibra e um paulista doidão e sincero. Tem uns ridículos candidatos do anedotário que, mesmo sem ter chances, aparecem nos debates por conta de uma legislação absurda. Confesso que aqui voto sem gosto e só irei ao segundo turno, se houver, obrigado.


E a legislação do país, igualzinha a mamãe, me obriga a ir à missa aos domingos...

_________________________
Maravilhosa charge de Izânio na ilustração



A Porca


(Edmar Oliveira)

As eleições no Piauí tem uma característica que as distinguem das eleições de outros estados. Todos os candidatos temem ser comidos pela Porca. A simples possibilidade de “ser comido pela Porca” deixa qualquer candidato nervoso. Hoje já é líquido e certo entre os piauienses que perder a eleição é a mesma coisa de ser “comido pela Porca”. Mas isso não faz o menor sentido para quem não é piauiense.

Essa magistral charge de Izânio, excelente cartunista local, é entendida de imediato por todos os conterrâneos. A Porca, cantando na chuva, abre o bocão para engolir os candidatos, que são atraídos pelo apetite de derrotar candidatos à cargos eletivos. Se essa figura tem um significado especial entre nós, não tendo nenhum sentido para os de fora, deve ter uma história que a explique.

Ouvi essa história há muito tempo e vou tentar reproduzi-la. Numa cidade do interior, não lembro qual, mas os historiadores piauienses devem saber, havia um candidato a vereador, queridinho de todos e com chances de ser um dos primeiros eleitos em número de votos, mesmo não tendo ainda os institutos de pesquisa que fazem a eleição desnecessária.

Pois bem, contada as urnas, a eleição do rapaz foi decepcionante com um número de votos longe do suficiente para que ele fosse um dos vereadores. Lembremos aqui que não existia a urna eletrônica e a velha urna era de lona recheada com votos de papel. O moço para tentar explicar o fracasso inventou a história de que uma porca tinha comido as urnas, justo as que tinham os seus votos.

Ninguém acreditou, mas a irreverência piauiense, desde aqueles tempos remotos, ressuscita a figura da Porca em todas as eleições. E desde então a porca vem comendo os votos de quem perde a eleição, mesmo que os votos sejam virtuais. A Porca também é cultura! E brinca de pique esconde para procurar os candidatos e comer...


Resenha: os braços de Vênus

(Geraldo Borges)           

           A Vênus de Milo encontra-se no Louvre, sem os braços, é claro. E onde estão os braços da Venus de Milo? Vamos saber. Se bem que se encontrássemos os braços de Venus de Milo, ela deixaria de ser Venus de Milo, tamanho é o poder  dessa escultura  em nossa imaginação que já não podemos concebê-la com os braços. Mas vamos em frente atrás dos braços de Venus. Mas como Venus de Milo chegou ao Louvre? Conforme o romance Os Braços de Venus de John Appleby foi assim.

               Foi descoberta por um camponês, na ilha grega de Melo – ou, em italiano, Milo – daí o seu nome. Nessa época  Grécia estava sob domínio turco, e os turcos tinham pouco respeito por qualquer aspeto da cultura helênica (...) sendo assim uma estatua partida encontrada  num nicho de uma cidade em ruína nem era coisa a que pudessem dar importância. Mas o embaixador Francês na Turquia era um homem mais esclarecido. Comprou a estatua, apesar de partida, e embarcou-a logo para a França como presente para o seu rei, Luis XVIII. O rei, por sua vez, doou ao Louvre, onde hoje pode ser vista, e onde decerto permanecerá para todo o sempre.

               Bom. Voltemos aos braços. Eles foram encontrados na Grécia  por uma turma de arqueólogos alemães. Mas, aconteceu um imprevisto. A Guerra já estava no fim. E os Aliados estavam chegando.  Não dava tempo levar o tesouro arqueológico. Tiveram de esconde-lo na esperança de voltarem a reconquistar o terreno. E fizeram um mapa. Mas aconteceu outro imprevisto. Pior. Na hora de esconder os caixotes a tropa alemã, de elite, recusou-se a cavar  um buraco na pederneira para botar o tesouro. O arqueólogo chefe valeu-se de um bando de camponeses andrajosos  para esse serviço. E para que  não desses com a língua nos dentes, quando os aliados chegassem, fuzilou a todos. Crime de guerra.

               A guerra acabou. No romance aparece um personagem em busca dos braços de Venus. De posse de pistas,  vai para a Grécia. E perseguido justamente pelo arqueólogo alemão que matou os camponeses. Pois teme agora em tempo de paz pela sua reputação. O personagem principal vai para Atenas com uma identidade falsa. Perseguido, pega  uma pancada na cabeça e perde a memória. Mas não demora muito se recupera e enfrenta os seus inimigos. Os mesmos que já tinha enfrentado antes de perder a memória. As pistas estão bem guardadas, dentro de uma brecha de pedra no alto da Acrópole. Lá em cima seus perseguidores estão de olho nele para abocanhar os papeis. Um é morto por ele. O outro, o arqueólogo chefe, assassino, acuado, depois de rendido, pede para que ele mesmo ponha  fim  a sua vida, para que resgate com dignidade aquele momento, e, então se atira do alto da Acrópole no abismo.

            O protagonista da história  volta ao seu hotel.E depois vai a Universidade de Atenas conversar com o arqueólogo Patianos, a quem seu tio o recomendara. O arqueólogo ficou contente e acreditou na história. Agora iam encontrar os braços de Venus. Então de acordo com o mapa se dirigiram para o norte da cidade, onde o governo grego  com a ajuda dos americanos tinham terminado de construir a barragem de Maratona.

               Antes de se dirigirem para a barragem Patianos falou.

           Há um ponto que desejo discutir  em qualquer ocasião menos emocionante,  um ponto de filosofia. Como a todos nós, a ética  interessa-me, e pergunto: o indizível sofrimento que os alemães infligiram a Grécia, a dor, a fome a degradação... irá a posteridade considerar que as justifica a descoberta por ele feita em Melos, e que nós vamos trazer a luz do dia? Como grego, que tem sentimento e que não esqueceu, responderei sem hesitar: não! Mas como cidadão do mundo... Podemos concluir que, mesmo na bestialidade dos nazistas, o bem pode resultar acidentalmente.

Chegamos ao sitio onde o mapa indicava o local em que estavam escondidos os braços de Venus. O que vimos? O que o personagem principal do romance viu. O ruído de sua garganta começou como riso e acabou como soluço seco de tal maneira que Saxton saltou para a frente, receando que ele caísse. Onde fora a pederneira, brilhava a água dum lago artificial, ao fundo do qual se erguia a brancura ofuscante da barragem.

Para terminar eu me pergunto: como iríamos nos acostumar com a Venus de Milo com braços; qual das duas seria mais autêntica, mais verdadeira? Eis aí a questão.


Falta d'água

(Edmar Oliveira)

Li, em desespero, que o sistema Cantareira só aguenta até meados de novembro e daí em diante São Paulo vai racionar a água e entrar em guerra com o Rio de Janeiro para disputar as águas da bacia do Rio Paraíba, que nasce no estado vizinho. A estiagem no sudeste ameaça devolver os nordestinos de volta, passada a ilusão que a água pelo sul maravilha abunda.

Os governantes deixaram a preocupação da falta d’água com São Pedro e o santo esqueceu de ligar as torneiras do céu, nestes anos que vivemos a maior seca do planeta pelas bandas do sul.
Passei, nesses dias, por Resende e as águas do Paraíba já davam sinais de cansaço na sua mansidão, ainda mais recebendo os esgotos daquela cidade para só virem ser tratados, mais tarde, na estação do Guandú, que fornece água para a Cidade Maravilhosa. E as cidades verticais são mais sensíveis à falta d’água. A higiene dos habitantes que moram em caixotes sobrepostos depende da água para que as cidades não apodreçam. Imagine o aumento da poluição de São Paulo e o odor da podridão sanitária que uma crise da água pode fazer a cidade exalar! Aliás, nem tente imaginar. É inimaginável. Morrer por falta de água numa cidade margeada por dois rios podres é de uma ironia sem sentido. Cidades europeias, muito mais antigas, resolveram a despoluição dos seus rios. Nós esperamos eles nos sufocarem.

Pensando assim, salto de imediato para os dois rios da minha cidade verde. Um, já seco e secando a olhos vistos sempre que o visito, ameaça acabar com a fronteira física com o Maranhão e tornar o Mercado Velho mais perto de Timon. O outro recebeu um tapete verde de aguapés que se alimentam do esgoto dos prédios que fizeram na cidade nova. Tive a curiosidade de ver e sentir o cheiro de um grotão existente debaixo da ponte onde termina a Avenida Frei Serafim. Uma tristeza!

Ainda leio que a nascente do Rio São Francisco parou de brotar. Muito grave a crise d’água que não vi ser discutida nos recentes debates eleitorais. Tive oportunidade de ver brotar do chão, borbulhando, a água escassa que se juntando fazia as águas fartas do Rio São Francisco. Imagino aquelas pedras sem sua água borbulhante. Há pouco tempo passei em Pirapora e vi a paisagem desolada da falta d’agua. Até o vapor Bernardo Guimarães que fazia um passeio turístico interrompeu seu movimento para ancorar no porto por falta de navegabilidade. E ainda falam em transposição do rio. Com que água?, perguntaria num plágio de um samba do Noel.

É, mas os cientistas, e suas instigantes pesquisas, descobriram um planeta, fora do sistema solar, rico em vapor d’água. Só que essa fartura fica a 124 mil anos-luz de distância. Até lá temos que nos virar, por aqui, com a água que ainda resta. Esse assunto me deixa com sede!


Izânio, hoje homenageado neste Piauinauta


TTCatalão



o sistema 

não tem medo
nem se incomoda
com a moda...
o sistema
só quer saber
do modelo


(TTCatalão)


TT Catalão, poeta, jornalista, carioca e Cidadão Honorário de Brasília. Editou coeditou, em diversos períodos, os cadernos culturais do Jornal de Brasília e Correio Braziliense, com passagens na Última Hora e Tribuna da Imprensa-Rio, cronista, com Paulo José Cunha (2003-2006) do quadro Crônicas da Cidade, aos sábados no DF-TV segunda edição, TV Globo-Brasília. Coeditor da revista Humanidades da Universidade de Brasília nos anos 80. Inúmeras participações em jornais da imprensa alternativa JOU (DF); Orion (Porto Alegre); Cidade Livre (DF); Há Vagas (DF); Carrapixo (BA) etc. Colaborador do Observatório da Imprensa (portal internet).



Tabatinga