domingo, 21 de fevereiro de 2016

DE NEURAS E PERVERSOS


(Edmar Oliveira)

A psicanálise diz que, na construção do sujeito, o homem pode ser neurótico, psicótico ou perverso. Como a maioria constrói um ser neurótico, somos os normais. A Nise, que não gostava dos normais, fala – citando Artraud – nos “inumeráveis estados do ser”. Ela achava que os neuróticos precisavam “psicotizar” algumas vezes. O que caracteriza o ser humano neurótico é a culpa – do complexo de Édipo em Freud à civilização judaico-cristã da interpretação sociológica. A culpa nos faz solidários, humanos. Das psicoses se encarregam os estudiosos da psicanálise, da psicologia e da psiquiatria – que também se ocupam dos neuróticos, quando a aceitação normal se faz transtorno e sofrimento, que a culpa pode provocar. O psicopata é inabordável por terapias e se tornavam problemas com a justiça.

Mas parece que as categorias vêm sofrendo mudanças. Dany-Robert Dufour, filósofo e psicanalista francês, analisando o individualismo provocado pelo capitalismo no seu estado mais avançado, nos diz que talvez a normalidade passe a ser o psicopata. Aquele que pisa no pescoço da mãe para chegar ao topo.

Uma piada perversa ilustra muito bem a suposição do Dufour. Perdidos numa savana africana, dois amigos ouvem o rugido de um leão. Um tenta fazer barricadas e se armar de paus e pedras. O outro, sem ajudá-lo, procura um tênis de última geração na mochila. O amigo, desesperado com a atitude do outro, estranha a situação: “você acha que vai correr mais que o leão?”. Tranquilamente o outro continua a calçar os tênis e responde calmamente: “Não. Acho que vou correr mais que você”. Essa metáfora não ocorre realmente nas empresas capitalistas?

Os executivos das grandes empresas vivem uma competição perversa e o neurótico leva uma grande desvantagem na concorrência. Parece que o perverso vem se destacando em todas as atividades. E não há vagas na primeira fila pra todo mundo, embora o capitalismo faça crer que a culpa é da ineficiência de quem não consegue lugar na primeira fila. Daí passar por cima de tudo e de todos para ficar na primeira fila é uma atitude perversa.

Na política, então, nem se fala! Estou com medo deles já serem a normalidade, desbancando a humanidade neurótica. Aí, teremos um outro mundo e velhos, como eu, não têm o direito de existir. Ou a reforma da previdência não é uma perversão? Ou o roubo de dinheiro público para realizar desejos dos políticos, tirando direitos do cidadão, não é perversão?

Temos um presidente da Câmara dos Deputados que se mantêm no poder, mesmo depois de ter sido provado caso de propinas e dinheiro ilegal no exterior. Mas ele está ali firme: não tem culpa, remorso ou medo. Ele não tem os sintomas do neurótico. Acredita que não tem culpa, por isso não tem medo e vai seguindo em frente comandado a nossa mais importante casa política. Ele não nega a realidade, apenas, em alguns momentos, a substitui pelo seu próprio desejo. Retirar um pedido de impeachment ou coloca-lo em ação depende da satisfação do seu desejo. O que impressiona é que essa posição perversa é aceita. E se é aceita passa à normalidade das instituições como previu Dufour. Os neuróticos, com seus escrúpulos da culpa, que se retirem de cena. Não há mais campo para sua ação. E a resposta a esta posição tem de ser no campo da lei ou no campo da perversão. Ou a lei faz parar o perverso ou outro perverso o substitui. E assim vai se constituindo a nova normalidade. A lei vai ficando démodé.

É só um exemplo, que parece refletir em toda a sociedade sobre a concorrência desse desenfreado capitalismo, com a flexibilização dos direitos trabalhistas, da queda do estado de bem estar social, das leis que obedecem aos desejos de juristas, da ética – que se tornou uma bobagem exercida pelos otários.

O neurótico é o otário, o perverso o experto. E ao psicótico resta o retorno aos manicômios, ele que já estava sendo aceito entre os neuróticos. É a barbárie!

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ilustrações de 1000TON






VIAJANDO

ilustração: Antônio Máximo


Cem anos depois da genialidade de Einstein ter proposto sua existência, os cientistas conseguiram provar que as ondas gravitacionais viajam entre galáxias deformando a dimensão espaço-tempo.

A ficção já tinha proposto sua existência com as viagens do Capitão Kirk e Spock na série Jornadas nas Estrelas, levando a Enterprise a lugares infinitamente distantes usando a dobra do espaço-tempo proposta pela ciência. Pena que o criador da série e seus atores principais do “Star Trek” original morreram sem saber que aquelas viagens na ficção um dia poderão ser realidade. Talvez num tempo tão distante que os seres viventes de hoje, de amanhã e de muitas gerações futuras testemunharão. Se para provar a hipótese custaram cem anos, torná-la prática temos que ter a santa paciência.

Por hora, o que a ciência achou prova foi de que a massa de corpos em vertiginosa colisão criam ondas modificando a quarta dimensão, que encurta ou encomprida distância nas três dimensões onde nos situamos. Duas consequências para a astrofísica: nada está no lugar onde vemos com os poderosos telescópios, já que a luz não se desloca em linha reta; e a constância de sua velocidade pode ser modificada pela dobradura do espaço-tempo.

Se isso, para os cientistas, significa a maior descoberta do século (e os autores da façanha já são indicados prematuramente ao Nobel), para mim gerou maior confusão no entendimento do que já não entendia, eu que já me confundo com fuso horário.

Os cientistas esperam ouvir a explosão do Big-Bang  captando as ondas gravitacionais da explosão que gerou o universo. E eu, que já estava gostando da ideia que não houve uma explosão inicial que desse origem a tudo, volto a perplexidade.

Pra mim a afirmação das religiões de que o Criador do universo não teria principio e nem fim explicava era o próprio universo. Como não acredito num criador inteligente, sempre achei que quem não tinha principio nem fim fosse o próprio universo com seus mistérios.

Mas vamos deixar as conjecturas para os homens da ciência. Eles que são capazes de compreender o cosmo, mas não conseguem eliminar um mosquito que faz a viagem espacial do vírus da dengue, chicungunha e zica.  E esses vírus já conseguiram usar o homem e o mosquito para efetuar sua dobra tempo-espaço e saírem das florestas africanas para o mundo.

Acho que vou rever o Capitão Kirk conduzir a Enterprise para entender melhor essa descoberta. Ou então escutar o disco do velho Bezerra da Silva para compreender melhor as ondas gravitacionais e porque os mosquitos e os vírus estão fora de controle.

(Edmar Oliveira)







Vou apertar

Por falar na descoberta das ondas gravitacionais, foi resolvida a equação da dobra espaço-tempo da Enterprise:











O Mosquito e Alexandre


(Geraldo Borges)

            Um grande general da antiguidade clássica, que conquistou  todo o mundo bárbaro e civilizado, discípulo de Aristóteles,    apelou ao  filosofo para que estabelecesse uma nova filosofia em que seu discípulo Alexandre fosse  coroado deus de um novo  Panteão. Essa mosca azul nasceu no trapézio de seu cérebro a medida que as suas conquistas geopolíticas iam se acumulando.  Mas, por ironia do destino, quando ele estava no auge de suas conquistas, com um simples voa rasante e uma picadura de um mosquito saiu de cena. Não houve armadura de bronze que o impedisse do golpe fatal. Façamos uma pequena digressão, e deixemos o general Alexandre enterrado na arqueologia do tempo.

            Quando cheguei à Teresina no século passado não havia chuveiro nas casas, nem caixa d’ água. Havia apenas  tanque  no quintal, no qual a gente tomava banho de cuia. Lembro-me que havia alguns peixes miúdos dentro do tanque, serviam para não deixar as larvas dos mosquitos crescerem  e criar asas e peçonhas. Havia, também o mata-mosquito, funcionário da saúde, que entrava, de casa em casa, esquadrinhando,  com uma lanterna acessa, o fundo dos potes  cheios de água. Pouca de consumo. O básico. Boa parte da economia era de subsistência. Não havia tanta garrafa pet  e tanto pneu em terrenos baldios.  E nem tanta extravagância e desmantelo em nossa sociedade. Nem muito menos cacos de  vidros em cima de muros. E  a água escorria bem quando chovia. Estamos em guerra serrada com o mosquito Aedes  Aegypti. A palavra  Aedes vem do grego  e quer dizer, desagradável, enjoado, nauseante. Bota nauseante nisso.


Alexandre Magno  deve estar satisfeito. Descendentes culturais  de seu  império tomamos as  suas dores, e revidamos  a desfeita. A  sua morte pela ridícula picadura de um mosquito. As forças Armadas,  num espetáculo magnífico  aponta as suas ogivas    para os mosquitos, juntamente com a mobilização do povo. Nunca os civis e militares estiveram tão unidos na luta  pela saúde da família brasileira.  O problema e se perdermos essa guerra. E o Brasil ficar entregue as moscas.   Os  mortos e feridos serão  contador depois.





Jota A na Serra da Capivara:








VENCENDO O VÍCIO



(Edmar Oliveira)

Foi uma decisão muito difícil, mas consegui superar mais um vício e sua dependência. Desde moleque, ainda na Teresina, roubava dinheiro da loja do meu pai para comprar jornal. Corria à tardinha na banca do Joel na Pedro II para comprar o Correio da Manhã que saía do Rio de manhã, mas só chegava à tardinha, vindo naqueles voos pinga-pinga da Real Aerovias Nacional. Nos famosos DC-3, aquele modelo que ficou exposto por muito tempo no Parque do Flamengo e não sei pra onde foi.

Lembro de um tempo em que passei a ler a Última Hora do Samuel Wainer, mas voltei ao Correio. E depois disso passei ao Jornal do Brasil, que me acompanhou até a sua morte. Assinei a Folha de São Paulo por um período, sem deixar o meu Jornal do Brasil.

Quando ele acabou, foi um “Deus nos acuda”! Não conseguia ler O Globo, com aquelas síntese de notícias na segunda página. Vício é vício e o prazer se faz por etapas. Nunca quis já saber de todas as notícias ao mesmo tempo sem degusta-las vagarosa e prazerosamente. Mas o quê fazer? O meu jornal tinha acabado. Mudei de produto.

A princípio estranhei um pouco, mas com o tempo acabei me acostumando. Não sabia ir ao banheiro sem meu jornal.

Há um bom tempo os jornais foram para a internet. Não fez minha cabeça. Sempre gostei do cheiro da tinta, das mãos sujas das notícias, das dobras no papel que não se consegue no computador.

Mas ao passar do tempo, lentamente as notícias foram ficando só de um lado. Não havia mais o contraditório. E quando acabou a ilusão da governabilidade de coalizão, os jornais passaram a falar do ponto de vista das grandes corporações apenas (já falavam antes, mas a "política" disfarçava). Por certo, eles sempre as defenderam. Mas tinha o contraditório nos colunistas, que foram sendo mandado embora para que o pensamento único fosse escandalosamente dominante na nossa mídia. O governo não teve peito para fazer uma regulamentação, que minimizasse esse efeito. E a linguagem dos jornais é a voz da direita que quer o poder de qualquer forma. Como se dissesse “chega dessa raça” nas palavras de um Bornhausen.

Tentei parar algumas vezes, mas tinha recaídas. Foi preciso um tratamento de choque. Hoje estou liberto. Limpo há mais de um ano. Satisfeito como se fica ao vencer uma dependência.


Não preciso mais ser torturado diariamente como no desenho do Latuff...





AO TRABALHO,"SEU" RAMALHO por Gervásio


O flamenguista Gervásio sofrendo na esperança de uma arrumação da casa por Muricy Ramalho.





BOB LESTER



(Edmar Oliveira)

A Ilustrada da FOLHA trouxe uma matéria, semana passada, assinada por Fabíola Brisolla, que desconstrói a lenda de Bob Lester, morto no final do ano passado com quase cem anos ou mais de cem (não se sabe ao certo).

São várias as reportagens com as histórias de Bob Lester, publicadas na imprensa por todo século XX e nestes quinze anos de XXI. Bob era sapateador, com o nome de Edgar (sobrenome Negrão de Lima), que dizia ter feito parte do Bando da Lua, acompanhantes de Carmem Miranda. Era apenas uma história repetida várias vezes com fotografias onde se dizia ser um dos componentes do Bando (variava o personagem que ele assumia). Virou verdade. Dizia que era gaúcho, que foi Bob Hope quem sugeriu seu nome artístico e que sapateara com ninguém menos que Frank Sinatra. Para configurar o passado dizia que quando voltou ao Brasil, morou no Copacabana Palace, por ser amigo de ninguém menos que Jorginho Guinle. Inventou ainda uma tragédia com a família (teria perdido num acidente de carro a mãe, a esposa e duas filhas). Após isso sua vida degringolou. Viveu como mendigo pelas ruas. Chegou a dar entrevista no Jô Soares e conquistou a fama de ex-sapateador famoso, que após uma tragédia perdeu tudo. História comum que a vizinhança costuma inventar para seus mendigos. Desta vez o próprio mendigo criou a lenda.

Mas até morrer, embora na miséria, Bob Lester se fez acreditar na sua história inventada. A matéria diz que nem Edgar era seu verdadeiro nome. Talvez uma primeira invenção. Ruy Castro quando fez a biografia de Carmem Miranda não encontrou registro do passado de Bob Lester, porque não tinha. Mas não o destruiu, preferiu omitir e confirma isso à reportagem. Bob teria procurado Ruy no Museu da Carmem Miranda e perguntou: “Seu Ruy, preciso comer. O que vou fazer?”, por saber que o pesquisador sabia da sua farsa. Ricardo Cravo Albin, mesmo sabendo a verdade, confessa que mentiu para proteger o simpático velhinho, que ainda conseguia cachês para exibir seu sapateado. Era um artista fingindo ser Bob. E até tinha ainda uma história de que fora goleiro de um time gaúcho e tinha enfrentado o lendário Heleno de Freitas. Mas a lenda era Bob Lester.

Impressionante a história deste homem que criou para si um passado fictício que todos acreditaram, inclusive ele próprio.

Geralmente a vizinhança inventa para seu mendigo predileto um passado de glória e riquezas, que por, quase sempre, uma paixão não correspondida, ficou “aluado” e virou mendigo. Quase sempre essas lendas são falsas, desejo de quem a inventa para justificar uma situação incompreensível. Mas o Bob Lester foi um artista inventado por ele mesmo. Teve dinheiro, era amigo de Jorginho Guinle, conheceu Frank Sinatra e Bob Hope, cantou e sapateou com Carmem Miranda, saiu do foco e acabou na sarjeta. Foi por estar na sarjeta que inventou a lenda.

Interessante a atitude dos pesquisadores que não quiseram prejudica-lo e só  revelaram seus segredos, que destruiria o personagem, após a sua morte.

Me lembrou o famoso faroeste “The Man Who Shot Liberty Valance” (O Homem que Matou o Facínora – em português), e a conclusão final do jornalista: “se a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda”.

Eu também conheço um Bob Lester e talvez um dia conte essa história – ou a lenda!


Bob Lester em frente ao Copacabana Palace, onde costumava ganhar uns trocados contando sua "história".

A reportagem:

www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/02/1738969-bob-lester-e-sua-trajetoria-inventada.shtml


ONDE HABITA O POEMA



Não planejei minha viagem
Nem estabeleci o meu destino
Desta forma não me perderia

Mas me perdi

E atônito nessa estrada
Segui meu trôpego andar
Em direção ao nada
Onde me encontro e me achei

Aqui só há o poema que escrevo

(Climério Ferreira)
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desenho: Gabriel Arcanjo





6 fotos do Ensaio CAMINHOS DE CHÃO de Paulo Barros








As estradas do Piauí sempre foram no chão. O asfalto das "rodagens" fez a ligação com os outros estados. Mas por dentro do sertão são assim, tortuosas, alagadiças, sombreadas, de areia branca, de barro vermelho, acompanhando as cercas do latifúndio. Paulo Barros, fotógrafo de rara sensibilidade para captar a alma do Piauí, nos revelas as estradas que em nossas lembranças nos levam à saudade...







domingo, 7 de fevereiro de 2016

Carnaval por Paulo Villela


O Piauinauta saindo no domingo gordo de carnaval em desenhos do Paulo Villela








QUEM DISSE QUE CARNAVAL É ALEGRE?

Desenho: Jota A.


(Edmar Oliveira)

Quando chega o carnaval, na minha lembrança vêm algumas músicas de carnavais passados. São melodias dolentes. Entristecidas, mesmo. De samba-enredo, lembro épicos de outrora e nem um dos recentes, quase todos iguais em baticuns repetitivos.

E até parece que descobri porque não gosto mais de carnaval. Tenho uma grande dificuldade de marcação do tempo. Minha memória cronológica é péssima. Embaralho fatos. Acho que por isso não lembro os natais, do ano novo. Para mim eles são iguais, como se repetidos, não marcando a divisão dos anos como quer um poema do Drummond. Não me mostram a cronologia. Mas é nos carnavais onde vejo o tempo passar.

Lembrança de um carnaval com “fofões” – versão maranhense dos Clóvis e Bate-Bola do Rio – e bailes no Guarapari me dizem que estou menino em Codó. Consigo lembrar até de uma cena insólita de três jovens fantasiados e completamente bêbados, equilibrando seus corpos – sentados num banco de praça – escorando-se uns nos outros. Já sem máscaras, nós meninos perversos os reconhecemos e gritávamos seus apelidos, que poderiam nos trazer graves consequências. Repetíamos insistentemente “Madá, Aripi e Babão”. Eles já não tinham condições de correr atrás de nós, apenas repetiam num murmúrio quase inaudível: “É o cu da mãe”, frase que depois o segundo falava depois, seguido do terceiro, num jogral para nossa alegre diversão. Repetimos essa brincadeira por um tempão. O que chamávamos de Madá era em comparação com uma famosa gorda mendiga das ruas da minha infância. O nosso Madá era gordão. Babão não precisa explicar, mas já não me lembro de Aripi.

Os carnavais do corso, dos desfiles de Vemaguetes, Rurais, Gordinis, Jeeps e do Caminhão das Raparigas me pegam ginasial na Teresina de ontem. O meu destaque era para o Caminhão das Raparigas, quando as putas saíam do Cabaré pra desfilar no meio da elite. Levantavam as saias, jogavam lança-perfume, confetes e serpentinas. Só mais tarde comecei a prestar atenção nas nossas pobres escolas de samba e ecoa na memória os versos “escravos vão mostrar o seu valor / que o preto pode ser doutor”. Lembro ainda do alfaiate Bernardo Cruz, da Nicinha. Mais tarde no Beco do Prazer – atrás da Igreja de São Benedito – e os pecados ali cometidos.

Noutros carnavais viajei de trem para acampar na Praia de Atalaia, em Luís Correia – e não tinha essa multidão que tem agora. Depois lembro uma desastrosa viagem para Sete Cidades onde o dinheiro acabou e ficamos presos num quarto em Piracuruca. Ali gravamos uma fita vídeo-cassete (alguém ainda lembra?) que insiste em ficar melhor a cada dia que passa, contando um passado em que vivíamos alegres.

Doutra vez tínhamos um bloco de carnaval e um amigo folião chegava fantasiado pra concentração  e começava a beber cedo. Nunca saiu com o bloco. Quando o bloco saía, ele ficava deitado não chão da concentração completamente borracho. Mas no outro dia aparecia fantasiado para começar tudo de novo. Não saía. Assim nos três dias. Na quarta feira de cinzas vinha ele fantasiado pro bloco, sem saber que o carnaval já tinha acabado. Foi apelidado de Folião. 

No Rio os primeiros Carnavais foram num sítio próximo ao Guandu. Foi lá, bem depois, que o Plano Collor nos pegou sem dinheiro no banco. Também não tínhamos. Não nos atingiu.

Foi num Carnaval que fui a primeira vez a Buenos Aires. Não posso deixar de lembrar os primeiros Carnavais dos loucos do Engenho de Dentro – o Loucura Suburbana que resiste até hoje. Foi uma época de sonhos felizes.

Não contei tudo. Apenas algumas passagens para dizer que só agora entendi que o Carnaval marca a passagem do tempo, para mim. Não é um presépio ou as queimas de fogos no fim do ano. O ano passa no Carnaval. Daí a melancolia que ele causa em mim.

O Sérgio Sampaio ficava intrigado porque “O Bloco na Rua” fazia sucesso nos carnavais. Queixava-se que a música era melancólica, sofrida, mas todo mundo lembra-se dela para cantar na alegria do Carnaval. Um parceiro do poeta – que não lembro o nome – perguntou decisivo: “Mas quem disse que carnaval é alegre”?

“Eu quero é botar meu bloco na rua”. Mas não me lembrem que dormi de touca e que Durango Kid quase me pegou.

Edy Star, mandando ver

Moacyr Luz e Chico Salles

Xico Sá, veio ao bloco por indicação de Macalé

Leo Gandelman

A saída proibida até os portões do Parque Guinle


Piau

Marcão Sampaiófilo

Chico Regueira

1000TON, Pererinha, Piauinauta e Léo Almeida

Esse ano foi o ano do Sampaio. Terceiro ano do Bloco na Rua, mas desta vez com uma alegria contagiante (talvez escondendo a melancolia sampaiófila) com o Mercadinho São José pegando fogo. O homenageado foi o Edy Star, o único vivo do célebre disco Seção das 10 da Grã-Ordem Kavernista.

Conversando com o nosso Edy sobre os sobreviventes daquela época em que os poetas morriam cedo, o Kavernista mandou: "Olha, meu filho! Alguém tinha que ficar vivo para contar a história senão ninguém lembraria mais deles". Essa foi a missão do bloco que um grupo de amigos imaginou nas rodas de quarta-feira no Bar Botero, no Mercadinho de Laranjeiras: lembrar a memória de Sampaio. E com ele a de Raul Seixas, Mirian Batucada, Torquato Neto e tantos outros que saíram do bloco antes da hora.

No ano passado o bloco contou com a presença de Melodia e Macalé, que esse ano não vieram. Mas Xico Sá contou que veio porque Macalé lhe convidou. Vai ver que Macau esqueceu, mas se fez bem representar. Piau e Moacyr foram violonistas do Sampaio. Estava também presente Rodrigo Moreira, o biógrafo do Sérgio Sampaio. E foi bonito ver a molecada nova cantando as músicas do Sampaio.

Foi uma noite pra ser lembrada. E a camisa desenhada pelo mestre Gervásio ficou dez. Ele até deixou de usar preto naquela noite para vestir o dourado do Sampaio.

O carnaval já pode acabar antes de começar. E será lembrado com melancolia no futuro.

Contracapa

Raul, Miriam, Sampaio e Edy Star



Edy Star e Edmar
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a maioria das fotos são de Tadeu















OS SERTÕES E O CLIMA



(Edmar Oliveira)

O Capítulo V de “Os Sertões”, parte em que ainda trata da TERRA, já no primeiro subtítulo, Euclides da Cunha chama atenção para “uma categoria geográfica que Hegel não citou”. Está falando dos sertões nordestinos e de sua ocupação.

Tirante as ilhas e os habitantes do litoral, que fixam o homem pelo que o mar pode lhe fornecer, o pensador alemão dividiu o interior do continente como Vales Férteis, que prendem o homem à terra de onde tiram o sustento; e as Terras Inférteis (desertos, terras inundáveis, savanas com secas prolongadas), que produzem os nômades viajantes que não retornam – procurando sempre a terra prometida.

Do que o alemão não falou, Euclides faz uma análise minuciosa da terra sertaneja: nos períodos de seca aproxima-se aos desertos para expulsar o sertanejo. Nos períodos chuvosos é um vale fértil que traz o nordestino de volta. Os sertões, nas palavras do mestre escriba brasileiro, são “Barbaramente estéreis. Maravilhosamente exuberante”. Muda a paisagem na seca e na cheia. O nordestino é um retirante que volta.

Sempre fiquei impressionado com essa passagem de os Sertões, só descoberta depois de grande, pois na escola meus professores “recomendavam” saltar a TERRA para irmos direto à ação do HOMEM – antes de tudo um forte.

Estou falando dessa Terra, planeta que agoniza na mão do homem, mas ao mesmo tempo mostra uma força de recuperação enorme. Estávamos a assistir uma seca abissal, consequente a fenômenos de efeito estufa, aumento da temperatura, degelo nas calotas polares, aumento dos oceanos. Tentaram me explicar o El Niño, que, confesso, nunca entendi direito. Quando o planeta reage vigorosamente.

Este foi um inverno de grandes nevascas no hemisfério norte e uma estação das chuvas maravilhosa no hemisfério sul. Pra nós do nordeste a estação das chuvas é inverno – que o clima não muda mesmo. Mas assistimos, de forma gratificante pra mim, um verão no Rio melhor que o inverno passado. No meu nordeste, o Rio São Francisco renasceu exuberante, o Benjamin Guimarães apitou singrando as águas de Pirapora – como há muito tempo não fazia; os rios secos do Ceará correram seus leitos há muito esquecidos; Teresina ficou muito tempo “bonita pra chover”, Caicó lavou a alma do sertão de sol inclemente. E o verde renasceu daquele cinza desbotado da caatinga.

Eu, cá com meus botões, imagino que os cientistas – explicadores da meteorologia – foram apanhados com as calças na mão. Nada disso estava nas suas previsões.

O velho Euclides da Cunha, lá no capítulo que citei acima, reforça nos seus sérios estudos sobre a terra dos sertões a magia da crença dos sertanejos. Para estes, se chover, como choveu agora, entre o 12 de dezembro e o 19 de março teremos um inverno dos bons. Os cientistas podem aproximar essas datas do solstício de verão e equinócio de outono. Euclides reforça esse período como a certeza que se estabeleceu no sertão e que não falhou nos levantamentos historiográficos que fez de anos anteriores aos períodos de seca e de cheia. Mas não diz que o sertanejo se baseia é na fé entre o dia de Nossa Senhora e o dia de São José.


E eu, não sei por que, tô com vontade de voltar!  









Dino & São Pedro






PRECONCEITO EXPLÍCITO


(Edmar Oliveira)

Os argentinos costumam invadir as praias de Santa Catarina, no verão, para divertimento. Os nordestinos também, para trabalhar. Eles estão oferecendo redes, cangas, castanhas, queijo coalho. Os argentinos compram as bugigangas e se divertem com aqueles “macaquitos hablantes” como muitos se referem aos nordestinos. Os hoteleiros e donos de bares, alguns também argentinos ou outros brancos europeus, não gostam dos nordestinos.

O nordestino que carrega redes e cangas trabalha para um caminhoneiro dono da mercadoria. Os trabalhadores são explorados pelos patrões motoristas dos caminhões – que por sua vez são explorados por donos de fabriquetas ilegais nas capitais nordestinas. Às vezes, a mercadoria viaja em consignação. Mas o mais explorado é o vendedor de praia. Trabalha do nascer do sol à tarde da noite, enquanto tem gente na praia, e dorme no caminhão com as redes ou embriagado ao relento na areia da praia.

Tem que ter uma história convincente para vender a mercadoria um pouco além do valor cobrado pelo caminhoneiro. Esse é o seu lucro. Geralmente, quando acaba a mercadoria, guarda o do patrão no bolso e gasta o seu lucro com cachaça. São comuns as desavenças, principalmente quando um pouco do dinheiro do patrão é transformado em cachaça. As brigas são constantes. A peixeira a arma das desavenças.

Semana passada duas notícias estamparam os jornais sobre estes trabalhadores nordestinos, detonando o preconceito explícito dos sulistas com estes meus conterrâneos: uma notícia duvidosa e outra trágica. Mas ambas carregadas do preconceito étnico:

A primeira falava de um surto de gastroenterite nos frequentadores das praias de Floripa. Mesmo com as autoridades atestando o nível de poluição da água frequentada pelos banhistas, donos de hotéis faziam uma campanha contra a presença dos nordestinos nas “suas” praias: a culpa era do queijo coalho!

A tragédia aconteceu num domingo às duas da tarde. Um nordestino foi esfaqueado, talvez numa briga entre eles. Morreu falando o nome do agressor. O corpo permaneceu entre os banhistas sem estragar a diversão dos frequentadores. Como se fosse um animal sem a menor importância.
Estes episódios talvez contribuam para a expulsão dos nordestinos das praias de Floripa. O fascismo não quer a apuração dos fatos, mas a anulação do outro.

Razão para Márcia Tiburi, quando afirma:

 “O fascismo é, em qualquer sentido, uma aberração política, mas cujo fundo existencial é a profunda miséria subjetiva de nossa época. Seu cogito: humilho, logo existo. Ele serve como prova de si para quem vive vazio relativamente ao pensamento, aos afetos e à própria ação. O fascista deve pensar que “é alguém” por meio da transformação do outro em “ninguém”. 

desenho: 1000TON










A cidade na quarta feira de cinzas por 1000TON


O TIME DO PADRE JUJU

(Aderval Borges)

Joílson muambeiro soube que eu iria à comarca comprar coisas para o sítio e me pediu para dar carona para um tal padre Juju. Pelo apelido, logo deduzi com meus botões mais preconceituosos: “Deve ser mais um padre veado.” Mas o homenzarrão que entrou em meu carro na sequência não tinha quaisquer trejeitos de um. Fechou a porta da picape com força desmedida e sequer me cumprimentou. Como se me conhecesse de longa data, ordenou: “Pode tocar.” 

No caminho até a comarca pouco falamos. A certa altura me pediu para que entrasse na pequena Brasitânia, logo próximo da pista, para dar umas palavrinhas com uma paroquiana. Atendi a seu pedido sem mais delongas. Quem sou eu, um ateu, para questionar o pedido de um servo de Deus? Enquanto papeava com a tal paroquiana, notei pelo espelho retrovisor que ela era muito bem apessoada. Os dois conversaram um bocado diante do portão da casa da mulher e eu só aguardando dentro do carro, sem uma sombra por perto, no sol a pino.

Quando voltou ao veículo, padre Juju disse que iria apanhar seu carro numa oficina. Explicou que se tratava de um Fusca, desses muito antigos. Pediu-me para que o acompanhasse no retorno, após ter feito minhas compras, a fim de ampará-lo no caso de o carro voltar a apresentar problemas. Aceitei sem mais delongas.

Concluídas as minhas compras, fui até a oficina onde combinamos de nos encontrar. Reclamou da minha demora e nada respondi. Ele saiu no Fusca e solicitou que eu viesse logo atrás. Mas dirigia em tal velocidade que me foi impossível acompanhá-lo. Cerca de meia hora depois dele, cheguei à nossa pequena cidade. Seu carro, claro, não apresentara nenhum problema. Perguntou com óbvio tom de malícia: “Você tirou Carteira de Motorista há pouco tempo?” Não respondi. Mas o desejo de mandá-lo para aquele lugar foi grande.

Depois disso passei a me deparar com padre Juju em várias ocasiões. Estava com minha querida Rosana bebendo uma cervejinha numa quermesse, veio o padre por trás, mandou-me um tapa nas costas que me deixou quase sem fala. O tempo suficiente para engatar uma animada conversa com minha esposa, repleta de elogios a ela. Quando ele enfim se retirou, Rosana perguntou: “Quem é esse moço simpático?” Respondi o necessário: “O filho duma puta dum padre.”

Mais alguns dias, minha madrasta me incumbiu de levar umas encomendas à casa paroquial. Fui recebido no portão por uns trocentos gatos e cachorros. Depois soube que recolhia todos os bichos abandonados que encontrava e gastava a maior parte dos dízimos para alimentá-los. Bati palmas, a cachorrada latiu endoidecida, até que ele apareceu todo descabelado. Fez sinal para que eu entrasse. Deparei-me com o interior da casa paroquiana repleto de mulheres de todas as idades alvoroçadas em torno do padre, numa intimidade que só se vendo.

Joílson muambeiro então me convidou para uma pelada de futebol. Quando cheguei ao campo, quem estava por lá? Padre Juju, o próprio. O desgraçado também era boleiro! Dois camaradas tiraram par ou ímpar para escolher os times e notei que todos queriam jogar no time do padre. Logo entendi o motivo: Juju era um perna de pau da pior espécie, mas compensava os maus tratos à bola dando porradas nos adversários. Pior: fui escolhido para o time contrário ao dele. Na primeira pegada, ele me tirou do jogo. Voltei para casa mancando e pensando em como contratar alguém para dar uns tiros no padre.

Não foi preciso. Naquela mesma noite ele veio com o Fusca até minha casa, trouxe um isopor repleto de cervejas e um buquê de rosas para minha querida Rosana. Felizmente ela não estava em casa para receber o buquê e seus manjados galanteios. Depois de horas de cervejada, ficamos amigos de babar de rir das respectivas piadas. Mas nossa amizade durou pouco. Cansado de levar tombos nas atividades rurais, aceitei me mudar com Rosana para uma cidade maior, a fim de retomar o jornalismo. Quando voltei à nossa pequena cidade tempos depois, soube que Juju espatifara seu Fusca na pilastra duma ponte, para evitar o atropelamento de um cachorro que atravessara inadvertidamente a pista.

Pelo que me informaram, o velório, ocorrido na igreja local, foi dos mais concorridos. Uma legião de paroquianas proveniente das várias bibocas da região veio velá-lo. Algumas choravam de forma tão desesperadora como se tivessem perdido um marido. Pelas tantas, me disse Valtinho da Dona Eugênia, duas paroquianas entraram no tapa para disputar a primazia de ficar ao lado do falecido e foi preciso a intervenção do bispo para que o conflito não se generalizasse, envolvendo todo o mulherio.
Lamento, com sinceridade, a morte de padre Juju. Embora tenha me tornado amigo dele, não mudou minha opinião a seu respeito: era um filho duma puta. Porém um bom filho duma puta, desses que por mais que nos façam sacanagens, não conseguimos odiá-los.

Fotos a seguir: o Fusca de padre Juju após o acidente; paroquianas afoitas; autoridades presentes ao seu velório, as carpideiras mais exaltadas; e o cachorro que provocou o acidente.



Latuff:







PREVISÃO


O amor é assim
Sem tempo, hora ou lugar
Sem previsão de ter fim

Quando cisma de chegar´
É assim o amor da gente
E é assim todo amor
Mesmo sendo diferente
Mesmo causando dor


(Climério Ferreira)
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desenho: Gabriel Arcanjo

Guarda-Chuva Laranja


Marchinha do grupo Validoaté, repaginada para este carnaval. Tem até o sabor dos velhos carnavais de outrora. E um lindo verso: "um guar-chuva laranja / faz meu olho acreditar / que o sol se pôs na tua mão / para o dia descansar". 


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