quinta-feira, 24 de julho de 2008

TAMARINEIRO EM ATALAIA


E o Piauinauta esteve em Atalaia pra ver este Tamarineiro que o vento penteou.

Num consultório de um psiquiatra, na Bahia, João Gilberto, olhando pela janela, comentou que era bonito o vento fazer a cabeleira da árvore... O psiquiatra disse pro Joãozinho que árvore não tinha cabelo. E o João disse que o psiquiatra nada entendia de poesia. João tinha razão como mostra a foto...

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história contada no livro de Rui Castro "Chega de Saudade".

ARRAZOADO DEFORMADO DA PAIXÃO

Edmar Oliveira

Soube que um amigo, que não vejo há algum tempo, não está me reconhecendo nesta fase amorosa com Teresina. O cara sempre odiou a cidade, sempre reclamou dela, agora vem com essa ladainha de adoração retardada. E lembrei que não só ele, mas outras pessoas que me são caras podem ter a mesma reação perplexa com o paradoxal aparente, motivada por condutas minhas no passado. Se devo uma explicação, vou tentar
...


Quando saí, senti Teresina me expulsar. Era como se eu não coubesse na cidade apesar de minha incorrigível magreza... Era como se seu calor me tirasse o fôlego e eu precisasse de outros ares para me manter vivo. Tenho mais tempo longe que dentro dela. Mas sempre voltei com saudades amorosas e regressava odiando, com a sensação acertada de ter vindo embora. Tem muitas coisas que não gosto e o sentimento de repulsa se apresentava. Mas também tenho muita saudade do passado naquilo que me formou na criatura que sou. Só se odeia ou se ama aquilo que nos tem importância. E, não muito raro, os dois sentimentos se alternam como faces da mesma moeda. E o amor, o ódio ou qualquer discurso que temos nos valendo da memóra é deformado pelo afeto. E aqui a gente sempre se engana achando que nossa versão é o fato...


Mudou o natal, mudei eu, mudou Teresina. E, encostando na velhice, me resolvi amá-la sem condições. Nem sei se ela gosta de mim, mas eu sei que lhe devo os carinhos que não me permiti no passado. Mesmo no tempo em que tinha meus impulsos de raiva para com ela, sentia a necessidade de visitá-la para que me acalmasse por dentro na minha constituição. Ia com raiva, mas na necessidade de recarregar minhas baterias orgânicas, para entender a minha aldeia no mundo...


Para se ser agora é preciso o se fazer no passado. E o meu sertão foi meu fazedor do homem que sou. A minha aldeia, meu mundo. E só se pode amar o passado que vivemos, não é possível substituí-lo. Só é possível a saudade acessar o que foi, nem bom nem ruim. E o acontecido é deformado pelo afeto. O Lampião de "Baile Perfumado" me disse isso. Para quem não lembra, no filme o rio São Francisco era de águas verdes e na chapada os galhos secos ficaram verde intenso e as cacimbas eram azuis. Para retratar o rei do sertão foi feito um reino bonito de ver e não as águas barrentas da realidade. É dessa deformação afetiva que se faz a saudade na memória...

Mas não tenho a intenção de fazer um arrazoado da paixão, apenas deixar que a deformação que o afeto produz possa me fazer viver esta paixão...




Irmãos Marx


Na foto vemos Harpo, Groucho e Chico jogando cartas com cervejas.
Na verdade trata-se de uma foto de Assaí Campelo, no final dos anos 70, em que vemos Albert Piauí, Geraldo Borges e Cortez. Cortez foi pra ilha de Lost e nunca mais o vimos. Geraldo e Albert sempre dão as caras aqui no Piauinauta...

Sebos

Geraldo Borges


Como os livros vão terminar nos sebos eu não sei. E como tantas obras primas, às vezes raras, chegam lá. Arrisco um palpite. Talvez seja em parte porque as viúvas dos intelectuais detestem livros, nem todas é claro. Mas muitas delas amam mais o seu cartão de crédito, e seus livros de receitas. E quando o marido intelectual bate as botas, ela não perdoa o seu apego aos livros. Vinga-se. A primeira coisa que faz é desfazer-se dos livros do falecido. Muitas delas nem vendem, oferecem – nos aos vizinhos. Uma vez ganhei mais de meia dúzia de livros dados por uma viúva de um militar. Livros bons da biblioteca do exército. Claro que os caminhos que levam os livros aos sebos são muitos. Até mesmo espaço onde colocá-los dentro de casa.
A venda de objetos usados sempre existiu na sociedade consumo. Os sebos devem ter começado em Paris à margem do rio Sena. Hoje o mercado de livros usados investe muito dinheiro. No Brasil existem alguns livros sobre o assunto em pauta. Por exemplo: GUIA DOS SEBOS DO BRASIL de Jorge de Brito que já está na quarta edição da editora Armazém de livros usados e CARTOGRAFIA SENTIMENTAL DE SEBOS E LIVROS de Maria Cristina Delgado, dissertação de pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG.


A vantagem dos sebos em relação às livrarias de livros novos é que o freguês fica mais á vontade, pode regatear, tem sempre um desconto. Pode trocar livros, ou usar livros como moeda de troca. E às vezes o freguês encontra uma obra rara, o que não deixa de ser uma raridade, dependendo da edição, ou de já esta esgotada na praça. Há vários fatores reais e subjetivos para uma obra ser classificada de rara. O certo é que o encontro com uma obra rara vai depender da impressão do leitor, o que é rara para um pode não ser para outro. Se a obra é rara para ele vai ter que disfarçar na hora de comprar para o dono do sebo não desconfiar. Nem sempre os donos de sebo estão por dentro do valor estimativo de uma obra.

Uma vez comprei um romance que julgo muito importante. Trata-se de Pedro Paramo, de Juan Rulfo, no original, em espanhol. Editora Fundo de Cultura Econômica México, colecion popular, edição de bolso, e, por cima, com uma dedicatória datada de 1984 da cidade do México para duas pessoas. Achei esquisito. Nenhuma das duas impediu que o livro chegasse ao sebo. Quando o livro chegou ao sebo já vinha de uma locadora. Com um carimbo datado de 1991 achei mais esquisito ainda. O livro já tinha feito uma longa trajetória antes de chegar ao Sebo e cair em minhas mãos. Não posso entender como este livro foi parar no sebo. Uma obra prima. São muitos os caminhos dos livros pelo mundo. Para mim foi ótimo o nosso encontro. Mas alguém se desfazer de um livro autografado é por que realmente não ama os livros. Adquiri o romance por um preço módico. Agora ele vai se aquietar.
Mas não foi só desta vez que me deparei com obras importantes nas minhas andanças pelos sebos. Aconteceu uma vez que encontrei - As Memórias de Casanova, encadernada, ilustrada, selo da antiga Editora José Olimpio, em oito volumes, a preço de não botar defeito. Não foi nem preciso regatear. Levei-a para a minha casa. Feliz da vida.

No Brasil publica-se muitos livros, o livro é caro, ler-se pouco. E muitos ficam estocados nos armazéns das editoras e terminam sendo vendidos para os Sebos Existe também este expediente.

Uma vez recebi uma carta de um amigo, piauiense, que mora em Belo Horizonte. Ele me dizia que havia encontrado um conto da minha autoria em uma coletânea de contos editados pelo escritor Chico Miguel em um dos famosos sebos de Belo Horizonte. Pensou em perguntar como é que aquele livro tinha chegado até ali. Mas ficou calado. Com certeza foi pela mão de alguém que não deu muita importância a literatura piauiense. Lembro-me que na década de oitenta eu dei um exemplar desse mesmo livro autografado para um cidadão francês que estava passando por Teresina. Talvez o livro ainda esteja com ele. Mas pode também quem sabe estar nas mãos de algum bouquinista à margem do rio Sena, o que não deixa de ser uma vitória para a literatura piauiense...

O Terror da Vermelha


1972

Histórias de Trancoso

Edmar Oliveira

Gonçalo Fernandes Trancoso foi um contador de histórias português, do século XVI, que ficou famoso pelos efeitos morais das histórias que inventava ou compilava. E, caso raro na literatura, emprestou seu nome a uma locução adjetiva. Só depois de grande tomei conhecimento da figura histórica. Na memória da minha meninice, nos confins dos palmeirais piauienses, o que pronunciávamos “troncoso” era equivalente a mentira. Em algumas ocasiões podia ser traduzido como “assombrações”, que era uma mentira do outro mundo mais crível na capacidade de nos meter medo. E sentados em volta de uma pessoa mais velha, cujas rugas e olhar perdido fazia mais verídica a narrativa, ficávamos a ouvir “histórias de troncoso”, sob a luz amarelada e fraca de uma lamparina de querosene. A iluminação do ambiente e o silêncio da noite que amplificava o cântico dos grilos e dos sapos eram propícios para que a história fosse mais verdadeira. A mula-sem-cabeça, o boi encantado, a morte do vaqueiro, Alzira morta virgem, a briga do cachorro com a onça, a história do bode e a onça, eram histórias de troncoso, que o português nunca imaginou acontecer no sertão.

E em meio às histórias de Trancoso tinha as lendas dos mouros que combatiam os cristãos. Histórias da península Ibérica que foram morar no sertão. Na minha imaginação nossos vaqueiros eram os cruzados e os mouros apareciam vez por outra para nos levar as riquezas e as princesas para o outro lado do rio Parnaíba. Quando ia com meu avô trabalhar no roçado do outro lado do rio ficava assustado com qualquer cavalgar, achando que podia ser um mouro infiel das histórias de troncoso. Mas logo que a noite chegava ia me sentar na varanda da casa, sob a luz mortiça, para escutar histórias de meter medo nos olhos dentro da penumbra...

Depois que veio a luz elétrica, a televisão, Trancoso foi embora...

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"A História do Bode e da Onça", que Geraldo Borges retrata no seu conto abaixo fazia parte, na nossa meninice, das "Histórias de Trancoso".

Na verdade ela tem várias versões a partir da adaptação de Silvio Romero para a edição de "Flocore Brasileiro".

História do bode e a onça

Geraldo Borges

A onça resolveu fazer uma casa para morar. Estava cansada de viver dentro do mato, sem um abrigo certo, queria um lugar limpo, uma sala, quarto e cozinha, e teto em cima, devido às chuvas. O desejo da onça era o mesmo do bode, que havia se desgarrado de seu rebanho, e perdera o aprisco. Ele também queria fazer uma casa para morar. Resolveu procurar um lugar adequado. Chegando à beira de um caminho na encruzilhada de uma vereda, achou o local agradável, e disse:

-É aqui.
Limpou o mato para dar inicio a construção de sua residência. Quando cansou, parou e foi embora, ruminar o seu novo destino de proprietário.
Qualquer dia deste continuaria o seu serviço.
Passou a onça por ali no meio da encruzilhada, e vendo o terreno limpo, se alegrou e disse:
- Deus está me ajud
ando. Vou fazer a minha casa aqui
Meteu mãos a obra. Arranjou umas estacas, fez buracos com suas garras afiadas, e enfiou-os no chão. Cansou e saiu. Foi procurar alguma presa para se alimentar.
No outro dia o bode resolveu continuar o serviço de sua casa. Chegando lá ficou surpreso quando viu as estacas enfiadas no chão. E disse a mesma coisa que a onça havia dito.
- Deus está me ajudando. Fazer minha casa vai ser moleza.
E tratou de colocar mais algumas estacas do lado do fundo para fazer a cozinha. Agora que Deus estava lhe ajudando não precisava muita pressa. Pensou. Depois de amanhã eu volto para ver como é que vai o adjutório de Deus.
Saiu.
No outro dia eis que a onça apareceu
- Deus está me ajudando mesmo, com certeza.
Terminou de ajeitar as estacas da cozinha. Afastou-se Olhou de longe a casa já quase terminada e disse:
- Está andando rápido. Na próxima semana se Deus quiser, eu vou inaugurar a minha casa com um banquete.
Uma semana depois eis que a onça volta ao seu projeto e toda satisfeita descobre que a casa tem um lindo teto de folhas de palmeira. Todo verdinho. Pulou de alegria.
- Deus é bom. Está me ajudando. É aquela história faz por ti que eu te ajudarei.
Entrou em casa. Olhou para todos os cantos, sentiu um cheiro estranho. Fez a separação da sala e da cozinha, e foi embora.
No outro dia o bode terminou a casa, separando o resto do quarto. A residência ficou com três cômodos Sala, quarto e cozinha. Terminada a casa o bode ser arranchou.
De manha, muito cedo, saudada pelos passarinhos, pisando manso, eis que a onça chega, entra em sua casa nova e a primeira coisa que vê é o bode na sala, tirando a barba. O bode pensa em correr. Mas lembrou-se que estava em sua casa. Trabalhou para construí-la com a ajuda de Deus. A onça arreganhou as ventas, sentiu o cheiro do caprino. Era tarde. Quando o bode se deu conta do perigo, não pode mais correr.
Terminado o banquete, a onça disse:


- Deus está me ajudando, me deu casa e comida.
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Quem for do Piauí e do interior, pelo menos das bandas de Palmeirais, conhece a história que Geraldo Borges, no Pantanal, reconta do nosso flocore...

Ilustração: Mariana G. Zatz


Boi do Piauí




O Boi do Piauí morreu. Manda buscar outro, maninha, lá no Piauí. Juntou-se ao boi do Maranhão, boi de mamão, da Maioba e foi pro Pará. Subindo o Amazonas chegou em Parentins. Olha a "estrela na testa"! Boi do Papete ou do Caprichoso? Não se resolve já que o boi é preto-e-branco.


Foto de Assaí Campelo, em magistral preto-e-branco da década de 70.

Relicário





Do Peixe-Boi


Do peixe vivo na água
ao boi que come capim,
há um boi pintado de peixe
e um peixe pintado assim
de boi e peixe, boi-peixe,
meu peixe-boi, surubim.
Tal peixe rumina a água
e o boi bebe o seu capim,
peixe-boi fora da água
peixe-boi que vive assim
sem pasto e sol. meu boi-mudo,
peixe com voz, surubim.
Olhando dentro da água,
silêncio sobre o capim,
peixe-lerdo e boi-ligeiro,
boi-peixe amarrado assim
no curral, pei-boi-brabo,
boi na rede, surubim.
Fôlego de boi na água,
peixe no ar do capim,
boi que navega na água,
peixe que caminha assim
no seco da pedra, peixe-
boi-peixe-boi, surubim.

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Em Guriatã - um cordel para menino, de Marcus Accioly, Editora Brasil-América Ltda, RJ, 1980. Este livro foi um belo presente que minha amiga Luciane achou quando revirava seus guardados. A edição original tem uma apresentação de João Cabral de Melo Neto: "Na poesia nordestina eu acho que tem, sobretudo, Marcus Accioly, que é um poeta de primeira categoria, compreeende? (...) Mas o que me impressiona dentro da poesia posterior a minha, e sobretudo no nordeste, é o Marcus Accioly, aqui, em Pernambuco." Tamanho elogio do mestre dispensa outras apresentações. Ah, a xilogravura é de Dila, nome de primeira grandeza em Pernambuco.

AZUL



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"A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra"(Da Costa e Silva)
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a cor do céu-Teresina






Edmar Oliveira

Com o sol mais perto do equador as nuvens não se seguram em cima da linha. São empurradas, feito bolinhas de algodão, para abaixo ou arriba do meio do mundo. Se elas se demoram na frente do sol ressecam feito algodão-doce e se derretem traspassadas pelos raios do sol. Raras delas se enchem d’água. Na chaleira escaldante do meio dia se destampa em vapor rumo acima no céu azul. Nuvem d’água raramente se faz chuva. Mesmo os pingos que escapam, às vezes, evaporam antes de tocar na terra. E o azul se faz intenso como nenhum outro azul de nenhum outro céu.

Vez em quando, muito raramente, as nuvens enganam o sol na linha do equador. Mas aí elas devem se ajuntar lá longe e vir baixinhas, quase rente o chão, pra deixar a terra molhadinha. E se faz corisco na chapada, relâmpago e trovão de ensurdecer. Mas a água cai quentinha aos borbotões, como se esquentada no chuveiro elétrico da natureza. O dia escurece, coberto de nuvens cinzas. O relâmpago acende o céu de eletricidade e o trovão pipoca perto num barulho de meter medo nos olhos, no estremecer de um céu perto de nuvens prenhes de água farta. Mas não se demora muito não. Logo, logo, as nuvens se atravessam por cima do rio no rumo do Maranhão. E o sol se apresenta secando o ar, as terras e as águas. E as nuvens se vão como se achegaram. E o céu se faz azul. Azul tão azul como nenhum outro azul de outro céu de qualquer lugar.

Tem o vento de maio, a fresca de Parnaíba que avança rio arriba. Ou o mormaço de outubro, novembro, no antes ou no depois de setembro, dezembro. Calor de fazer o calçamento derreter as ruas e evaporar a última água do solo quente. Ou a brisa das manhãs ventiladas das alvoradas de maio ou das auroras das fogueiras de junho nas festas de Antônio, João e Pedro. Um entardecer do vento que sopra do encontro dos rios. Muda-se o clima nas estações grosseiras do equador. Mas não se muda este azul fulminante deste céu sobre a minha cabeça de menino que não esquece o azul memória. Só quando o sol se vai e escurece. Mas o céu se ilumina no brilho das estrelas cintilantes. Só pra lembrar que o azul vem de volta na manhã, carregado pelo sol. Este azul fulminante que não existe noutro lugar... E que tem a tonalidade da memória...

brasiliana

Geraldo Borges





Falamos tanto de 68
Como se a coisa fosse tão bacana
Mas tudo começou com os 18
Homens do Forte de Copacabana.

Depois veio a marcha da Coluna Prestes
E não tardou a Revolução de Trinta
Logo mais eis a Constitucionalista
Pois são Paulo lutava no seu Fronte.

O Coup d’ Etat com Getúlio aconteceu
Depois veio Dutra e Vargas de novo
O presidente Juscelino subiu para o Planalto

Jânio Quadros de vassoura e bigode apareceu
E aplicou uma comédia no seu povo
E daí para 68 foi um salto.



quintana

Os poetas, antenas da alma

Paulo José Cunha



No instante em que o cineasta Vladimir Carvalho fez uma marca com a mão no cimento fresco da parada de ônibus da 509 sul no dia 8 de julho de 2008, durante o evento em que os poetas plantavam versos de pedra no chão, repetiu um gesto ancestral. O mesmo gesto que o homem das cavernas fez ao carimbar a palma da mão nas paredes das rochas de Sete Cidades, em Piracuruca, no sertão do Piauí. Igual ao que o homem pré-histórico usou para assinalar sua presença no mundo fixando a mão molhada de tinta na escuridão das cavernas de Gargas, na Espanha. Uma demarcação de território. A apropriação pelo sujeito – o cidadão - da propriedade pública. Um gesto que fala por dentro do milenar silêncio da história e diz, sem precisar de palavras: “Eu existo e este espaço é meu”. O jornalista e artista plástico Henrique Gougon, atento observador da vida política e cultural de Brasília, percebeu que os poetas da cidade mereciam uma homenagem que perpetuasse na eternidade da pedra o trabalho deles, que outra coisa não fazem que não seja o de “construir” a alma de Brasília. Encontrou placas de sinalização abandonadas nas paradas de ônibus. Na trilha de Hélio Oiticica e suas “apropriações”, resolveu dar-lhes nova serventia. Plantou na carcaça das placas, em mosaicos ricamente ilustrados, a poesia dos mais queridos poetas da cidade. E assim as palavras dos falecidos Cassiano Nunes e Fernando Mendes Viana continuaram a provocar a reflexão dos transeuntes. Angélica Torres Lima, Nicolas Behr, entre outros, igualmente tiveram seus versos moldados em pedra. Até o dia em que, num ato de desvario, um agente público (por engano, segundo alegam o governador e o administrador da cidade) derrubou as placas, convertendo o encanto dos versos num monte de pedras. As cidades só se afirmam como espaços de expressão social quando seus moradores delas se apropriam. Mesmo uma cidade planejada como Brasília se cristalizaria para sempre na frieza das maquetes se as pessoas não a adotassem, não a assumissem, não a reconhecessem como espaço de pertencimento coletivo. Uma casa só adquire uma “alma” quando os habitantes dela tomam posse pendurando quadros nas paredes, espalhando tapetes pelo chão, distribuindo enfeites e jarros de flores sobre toalhas bordadas e deixando as crianças esquecerem brinquedos pelos cantos. Da mesma forma, as cidades só ganham o carimbo de civitas quando se embebem da vida cultural e emotiva de seus habitantes. Lúcio Costa e Niemeyer fizeram os traços e ergueram os prédios. Mas quem habita e dá vida à cidade exata, quem alimenta com a emoção o espaço geométrico definido pelo arquiteto e pelo urbanista - somos nós, os que aqui vivemos. Somos nós, que andamos pelas ruas, que pegamos o ônibus, que respeitamos a faixa; nós, que povoamos os jardins com a algazarra de nossos filhos; nós, que deixamos nossos passos impressos na memória afetiva das superquadras; nós, que enchemos com o burburinho de nossas vozes as feiras, os bares, os supermercados. Os poetas, estes seres estranhos “que conseguem ver na escuridão”, exercitam uma arte que provoca arrepios pelo atrito entre as palavras. E assim conseguem extrair da observação especial que fazem do mundo uma certa “essência do sentir”. Daí a fúria santa que nos acometeu ao ver no chão os versos dos poetas e os desenhos dos mosaicos de Gougon. Daí a reação de plantar versos nas sarjetas, para fazer de Brasília uma cidade onde não apenas se leiam versos em placas dispostas pelas paradas de ônibus, mas se possa caminhar, pisando em poesia. Daí a necessidade de se instituirem espaços públicos de intervenção artística. Daí a necessidade de os governos entenderem de uma vez e para sempre que as cidades pertencem a quem vive nelas. Brasília não é um autorama, e já provou isso quando enfrentou a ditadura e foi às ruas levar ao cemitério o corpo de seu fundador. Ou quando seus jovens se vestiram de preto, pintaram o rosto e mudaram a história. Quando os poetas se uniram para semear versos pelo chão estavam dizendo que a cidade tem, sim, uma alma. E disseram, como Vladimir e todos os que marcaram a palma da mão no cimento fresco da calçada da 509 Sul, que nós, moradores de Brasília, existimos. E queremos de volta os versos de nossos poetas queridos; os desenhos de nossos artistas da moderna idade da pedra; a memória da cidade “feita dos sonhos de um herói sem nome”. A alma da cidade existe. Foi ela que plantou as próprias mãos e os versos de seus poetas pelas calçadas anônimas. A alma da cidade está viva e deixa suas digitais por onde passa, apropriando-se dos espaços, alargando o campo das memórias. A alma da cidade existe, e seus poetas cantam pelos botecos, para dar sentido ao concreto e à geometria.



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Paulo José Cunha é jornalista e poeta.

Acabei de receber. Sai no sábado, 26 de julho no "Correio Brasiliense". Furei...

CANÇÕES DO HIPOCAMPO



muricituba subiu

no pé de ingá

pra ver se banhar

a lua baldiar

a cacimba do olhar

vovó dormiu cantando

um sapo sarará

dormiu não viu o tempo

na cuia se acocar

lençol fogareu

nanoite um varal

mil vagalumes no pau

em cima do galho

um sol de papel

coité fez pelo-sinal

tijubina chocou

na noite um ovo

de jaraguá

catirina acudiu

correu

na febre delirar

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Antônio Amaral é poeta, quadrinhista, ilustrador, artista plástico, violonista, violeiro, blogueiro, percursionista e piauiense de Campo Maior[PI].


Na minha última ida à Teresina conheci a fera. Amaral é hoje uma referência em Teresina.

Publicado originalmente no Picinez. Poema e ilustração do AMARAL.

PII


O Piauinauta pegou uma dobra do tempo e foi à praça Pedro II na década de 70. Nossa P2 era assim em preto e branco. O Cine Rex, o Teatro 4 de Setembro e a banca de revistas do Joel, que inda hoje tá lá...

quinta-feira, 10 de julho de 2008



O Piauinauta visitou a antiga Estação Ferroviária de Teresina, onde hoje funciona um Centro Cultural. Lá assistiu um show do Roraima. Pra quem tá na terra ir ao Centro Cultural, na sexta à noite, é um bom programa. Do espaço sideral o Piauinauta observa também, só que no passado, o lugar "onde o Etim é sangrado" no filme "O Terror da Vermelha".

Não é por Falta de Leis...

Edmar Oliveira

A quantidade de leis no país é tamanha que até os profissionais do direito vivem enredados no emaranhado legislativo e o judiciário atrapalhado na dificuldade de aplicação da pena. E diante de uma penalidade de difícil aplicação, não se procura aprimorar a lei ruim. Criam-se outras. Todo dia aumenta a confusão. E são tantas leis que é comum se separar a mais legítima da mais comum, que se tornou crônica por não ser cumprida. E a gente se acostuma com o absurdo. Um exemplo: no recente e escabroso caso dos rapazes que foram entregues pelo exército ao tráfico, o delegado lamentava que os traficantes que executaram os rapazes não tinham sido pegos ainda pela polícia. Quer dizer que porque cometeram homicídio seriam presos e como simples traficantes não? Não já estavam fora da lei? É que agora eles infringiram uma lei maior e mais legítima pela comoção social que o caso gerou. Os assassinatos do dia-a-dia não são tão importantes para ter a lei mais legítima. A lei banal quase n
unca é cumprida...


Ao invés de prender os homicidas do trânsito, que são muitos e a solta, inventa-se uma nova lei para prender quem potencialmente pode cometer o crime no futuro. Ou não é baseado na ficção científica de Minority Report prender alguém antes do acontecido? Pra quem não lembra faço referência ao filme de Steven Spielberg, no qual Tom Cruise era o policial do futuro que prendia os criminosos antes que eles cometessem o crime usando um método antecipatório da ação do cidadão. O cidadão foi a um churrasco no final de semana e não pode voltar dirigindo se tomou duas ou três latinhas de cerveja. E não adianta passar o volante para a esposa, se ela for “chocólatra” e comeu dois ou três bombons de licor. Com a lei seca automotiva a blitz será para prender o suspeito de crime futuro.


Outro dia, num simples engarrafamento de trânsito, um motorista na minha frente tirou uma pistola para ameaçar um cidadão que buzinava. Pode ser que se o cara da pistola tivesse bebido a coisa seria trágica. Ou talvez ele não beba para não atrapalhar a pontaria. Mas ele já não deveria estar preso por andar armado? Esta lei já caducou em função da mais nova?


Não estou aqui defendendo o direito do bêbado dirigir. Concordo com as patrulhas de filme americano que botam o cidadão para fazer o “quatro” e andar em linha reta: cadeia nele. Mas a intolerância em torno de 0,2 miligramas de álcool sem os evidentes sintomas de embriagues me parece excessiva. E a recusa de ser submetido ao bafômetro (produzir provas contra si) resultar em cadeia me parece anticonstitucional. Proponho um teste mais simples: bêbado é achar a lei anticonstitucional e não conseguir pronunciar a palavra... A lei do bafômetro vai proibir padre dirigir depois da missa...
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Sobre a charge: "O excelente chargista Gervásio brinda os leitores beberrões de etanol do JenipapoNews com a melhor charge já publicada na mídia brasileira sobre a “Lei Seca”. O piauiense Gervásio Castro mora no Rio de Janeiro desde os tempos que só existia cerveja Bohemia em Petrópolis, local da fábrica da Antarctica que produzia a “loura”. Descia-se a serra trêbado sem ser molestado por nenhum policial e com a ajuda do também embriagado São Cristóvão, que na época assumia sem nenhum interesse, também, a guarda dos motoristas embriagados. " (João de Deus do Jenipapo)

Subtraído de
"Jenipapos News"




Santo Rei


Foto de Assaí Campelo na década de 70.

quando chegava o 6 de janeiro era a festa de Santo Rei. No singular, pronúncia econômica nordestinada. E "os caretas" entravam nas casas pedindo "esmolas" pro santo. E medo me dava dos anunciados folguedos em ladainhas cantadas. Eram os Reis Magos, Belquior, Gaspar, Baltazar: incenso pra cheirar a mantra, ouro pras riquezas do menino, mas mirra, que diabos era?

Metáforas de Papel

Geraldo Borges


O primeiro papel que eu conheci foi o papel de embrulho. Meu pai tinha uma bodega e enrolava as suas mercadorias nesse tipo de papel. Era um papel ordinário que tinha muitas serventias. Depois eu conheci o papel pautado, na cidade, na escola, era com ele que a gente fazia as provas parciais e finais. As pautas eram para que o estudante bisonho não se perdesse no vazio do papel. Depois conheci o papel de seda. Este eu vi a primeira vez em um embrulho que ganhei de presente em uma noite de Natal. Tinha dentro um pião que rodei muito tempo pela vida afora. O papel de seda também me foi apresentado nas asas dos papagaios que empinávamos durante os meses de vento no nordeste.



Depois conheci o papelão. Um papel bastante grosseiro que serve para se confeccionar caixas. Conheci também o papel de jornal. E daí para conhecer o jornal foi um passo.


Aí comecei a descobri as metáforas escritas no papel. De forma que fui conhecendo uma variedade de papeis pela vida. E também representei muitos papéis. Conheci papel de cartas. Papel é como tecido, tem muitos padrões. O papel sempre me impressionou desde o primeiro papel que eu conheci. Com papel fiz avião, navio, papagaio, chapéu. Fiz rabo de papel para botar no fundilho de pessoas importantes que não se compenetravam de seu papel. Conheci papel fino para enrolar cigarro, de fumo bruto, conheci o papel de bobo, o papel de palhaço, o papel carbono. Descobrir que os maiores destruidores de papel são os fumantes. Não podemos viver sem nossos papéis. O papel moeda principalmente. E que papelão faz um país onde boa parte de sua gente não sabe assinar no papel e é obrigado a sujar o dedo para marcar seu jamegão. Já que vivemos no país da papelocracia...


Cheguei ao fim deste texto fazendo o meu papel de escritor. E termino me lembrando do começo deste papel quando eu era menino lá na minha terra, e brincava com papel de embrulho no corredor da casa grande. A brincadeira era queimar papel. Os mais velhos, os adultos, sem imaginação, diziam que brincar com fogo fazia a gente mijar na rede. Cresci. Continuei brincando com papel e com fogo. Precisava deste brinquedo. Esta crônica pode até virar papel picado e ir para o lixo. Mas, com certeza, não é um papel de embrulho ordinário contendo uma mercadoria qualquer.

São Luis do Paraitinga



Nas ladeiras que empurram as lembranças
Antes da serra que contorna a aldeia
A igrejinha badala os sinos da memória
Que qual cinema na cabeça de crianças
Da festa do divino e o Saci contando história
Do calçamento irregular bola de meia

E uma antena vasculha os céus de sinais
Para a tv na sala que imagem respinga
No chuvisco dos beijos da novela
Os violeiros, as cachoeiras, os vendavais
Cidade que o tempo conservou na janela
Pequena São Luis do Paraitinga...

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Foto feita em São Luis do Paraitinga, São Paulo. Terra do Saci, de violeiros, da Festa do Divino e Carnavais. Vale se perder no tempo na aldeia...

O SOCIALCAPITALISMO

Edmar Oliveira

Os jornais trouxeram hoje uma notícia que, por me ser muito cara, primeiro me provocou uma euforia e depois, assimilando melhor a notícia, me fez triste. Explico: nos últimos dez anos, com curva exponencial maior nos últimos anos, a desnutrição infantil diminuiu em quase 50% no país e em mais de 70% no nordeste. Para nós nordestinos do século passado, que tínhamos na carne seca servida aos urubus o nosso flagelo, a importância da notícia é enorme. A euforia primeira foi estonteante. Estamos a nos livrar do mal que nos perseguiu por séculos. Quando se pergunta aos nossos conterrâneos a quantidade de irmãos, numa quase sempre prole numerosa, a resposta se fazia na contagem entre os que nasceram e os que vingaram. Vingar nas terras nordestinas era escapar das doenças da infância e da assombrosa desnutrição. Se a notícia é assim tão boa por que ficar triste depois?


São vários os fatores que contribuíram para a boa notícia: uma alimentação mais farta no mundo, uma melhora do sistema de saúde (apesar dos defeitos o SUS tem méritos), melhor saneamento básico, luz elétrica, melhor sistema de transporte, entre outros, mas, principalmente, melhor distribuição de renda. E foi em quase dez anos que começou o bolsa-escola, bolsa-isso, bolsa-aquilo, que o governo atual reuniu, sábia e espertamente, no bolsa-família. E apesar das tantas críticas, a distribuição de renda se fez refletir num índice importante.

Então os favoráveis a ensinar a pescar (que nunca forneceram o anzol) criticam o programa e seus desvios: comprar bens supérfluos, desnecessários, aumentar o consumo, entre outros absurdos. Chegou-se a criticar os 8% de aumento ao bolsa-família como sendo provocador de um impacto na inflação (são vinte reais ao mês num aumento estratosférico de sessenta centavos ao dia)!

Eu fico triste por outro raciocínio: o dinheiro do bolsa-família investido em saúde, educação, saneamento e outros programas sociais nunca daria o impacto hoje alcançado. A máquina da corrupção, da má gestão, sempre desviou parte destes recursos para os bolsos da elite que critica o bolsa-programa dos pobres. Foi preciso, para uma efetiva distribuição de renda, que o governo organizasse o capitalismo de cada um e não um programa socialista que tanto sonhamos e que fosse mais efetivo e conseqüente. É este sociocapitalismo que me deixa triste...
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Escrito no 04 de julho de 2008, publicado originalmente em
"Casa de Lima Barreto, o Abrigo da Palavra".

Não-se-pode

Geraldo Borges

Era uma vez na antiga Teresina
Uma mulher Não Se Pode um fantasma
De aparição em aparição sua sina
De tanto fumar morreu de asma.

De noite aparecia em um quarteirão
Pedindo cigarro a um desacompanhado
E se esticava para acendê-lo no lampião
Deixando o transeunte muito assustado.

Às vezes pelas noites em solidão
Acendo um cigarro em meu apartamento
E sinto na fumaça a sua aproximação.

E espio a rua pela janela na ilusão
De quem sabe na magia do momento
Eu coloque um cigarro em sua mão
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Pra quem não é da terra: Não-se-pode era o nome de uma assombração que assustava Teresina no tempo dos lampiões de querosene na iluminação urbana. Ela aparecia como uma moça bonita, escondida na bruma da noite, pedia um cigarro e se esticava para acendê-lo no lampião. A deformação se fazia na frente dos meninos que fumavam escondidos...
Geraldo Borges faz um belo poema em nome da lenda.

1000ton no Azerbaijão



Miltão tá concorrendo num salão de Cartoon no Azerbaijão. País fodido do desmanche da antiga União Soviética. Os caras fazem um salão de humor para sacanear o G8. 1000tão foi selecionado entre os bambas de todo o planeta nesse protesto dos que não são dos oito. Parabéns Miltão. Quer conferir click: http://www.azerphoto.com/index.php?Cid=15

As Vacas Magras

Edmar Oliveira


O planeta ficou pequeno, tudo interligado, tem muita gente, pouca terra, pouca água, pouca comida e o clima ficou maluco. Li uma entrevista do Paul Roberts, autor de “O Fim da Comida”, onde ele, tal qual um José do Egito moderno, alerta para um tempo de vacas magras na escassez de alimentos no mundo. O raciocínio do profeta modernoso é simplório: contas rápidas demonstram que a população cresce de forma geométrica, enquanto a produção de alimentos cresce de forma aritmética e, pior, não tem mais pra onde crescer se não for derrubando o que resta de florestas. A inflação atual no preço dos alimentos tem causas neste aumento do consumo e diminuição da produção planetária. (E eu que sou do tempo que apenas o chuchu ou o tomate eram os responsáveis pela moeda deixar de ter valor...).


Lembro de ter olhado pela janelinha do avião, na minha última viagem de Brasília pra Teresina, e visto todo o Goiás e Maranhão, lá em baixo, cobertos de desenhos geométricos significando regiões produtoras de alimentos. Com significativa redução das florestas vistas de outras vezes. Estava a assistir uma verdadeira invasão da mata virgem pela copulação da terra feita por máquinas agrícolas. Nunca tinha atentado para o fato de que produzir na terra a devastava de tal forma. Nas roças da minha infância, mesmo as queimadas atingiam poucas árvores em necessário sacrifício para a subsistência familiar e a venda de um pequeno excedente, que se transformava em coisas que não tínhamos no interior. Mas no agro negócio a devastação é espetacular...


Para o José Moderno do Egito três fatores agravam a desproporção entre famintos e o “de comer”: fertilizantes: nitrogênio extraído do petróleo que sobe com o preço do barril (de vinte dólares inda agorinha para quase duzentos hoje); falta d’água: assistimos a uma seca nos rios e reservatórios e um aumento do consumo desenfreado na vida moderna; e as mudanças climáticas, que parece ser como a menopausa (climatério) da mãe terra em sua idade adulta. Pronto: em se mantendo a dieta ocidental, do privilégio de comer carne em demasia, a comida acaba de forma mais rápida ainda. Lembremos que para criar porcos, aves e bois consumimos em ração muito mais grãos de terras cultiváveis do que se estes grãos fossem destinados ao consumo humano. E é bom lembrar também da “Equação do Colapso Alimentar”: se cada chinês (que consome muito abaixo da média mundial) comer um frango e um quarto de porco a mais, por ano, as prateleiras dos supermercados estarão vazias. E arrisco a achar que só podemos saber disso agora pela revolução da informação que interligou tudo. Vai ver que quando se culpava o chuchu pela inflação não víamos ainda o mundo globalizado com causas e efeitos interligados e os nossos problemas se acabavam nas fronteiras nacionais. O que foi repentino foi a descoberta das causas e razões globalizadas. A devastação, provocada pelo capitalismo desenfreado, vem se arrastando desde muito... A luta contra a forma de produção capitalista predadora não é mais uma disputa ideológica para a melhor forma de organização social. Mas uma questão que tem de ser enfrentada para a sobrevivência do planeta e da humanidade.

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Publicado originalmente em "Casa de Lima Barreto, o Abrigo da Palavra"

Rio Poty





Meninos passarinham
em arvoredos
mansas águas do Poty
banham meu corpo
O poeta passa o tempo
e a vida a limpo


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William Soares - in coletânea Baião de Todos. O Poeta Willian, como é conhecido na cidade hoje já se confunde com Teresina. Publicado originalmente em Picinez com ilustração de Netto.

do outro lado...

Edmar Oliveira


Sabe aquele prédio que se ergue do outro lado do rio?
Do lado de cá Gregório ficou amarrado vendo a água e com sede...
Do lado de lá o prédio fica preso à terra e vendo o rio
pede água pra matar a sede do calor de Teresina.
A lenda fica, quem morre é o rio...
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Foto: rio Poty, na altura do monumento ao Gregório. Para quem não é da terra: Gregório foi um motorista de caminhão que atropelou uma criança. Conta a lenda que o pai da criança, no tempo da justiça pelas próprias mãos, mandou amarrar Gregório na beira do rio Poty para que ele morresse de sede olhando pra água, que naquele tempo era tanta. Da lenda Gregório virou santo e é acusado hoje de alguns milagres. A prefeitura fez erguer um monumento em sua homenagem pela fé do povo.

Cineas



Recebi os três textos a seguir com este recado:

edmar,tamos fazendo uma surpresa ao coroné Cinéas. Neste domingo, o jornal O Dia vai publicar uma página com pequenos artigos (um meu, outro do Salgado Maranhão, outro do Paulo Machado) sobre o livro dele, o delicioso "Nada Além".Vou te enviar, porque é bom pro blog. Pra não perder a surpresa, só te peço que guarde pra publicar segunda-feira ou mesmo no domingo, quando o jornal estiver circulando. Aí vai, em anexo, o meu e o do Salgado. Vou ver se consigo o outro. O livro é ótimo, leste?

Abs. PJ


São tantos os elogios que mestre Cinéas engordou na dança do Botero...

Nada Além ou Os Brutos Também Amam

Paulo José Cunha

Nada além de 70 páginas, em que sovinamente nos oferece apenas o suprassumo da complicada arte de ajuntar palavras para, dessa combinação, arrancar a exclamação estética, o suspiro de espanto ou aquela deliciosa sensação de que “ele disse o que eu queria e não sabia como dizer”. Dentro do peito do diabo velho rabugento, por incrível que pareça, também bate um coração. E neste curto mas excelente “Nada Além” que chega às livrarias, ele o reparte em poemas econômicos e definitivos, como convém a quem sabe que poesia é tecido que não se mede a metro, é roça que não se avalia por tarefa.

Esquecido de si, na tarefa a que se impôs de divulgar as belezas e as virtudes do Piauí, Cineas Santos mal se lembra que dentro dele mora um poeta sensível e exigente. Por isso publica tão pouco. Feito um garimpeiro avarento, esconde as belas pepitas que vem recolhendo durante esses anos todos. Só lá de vez em quando concorda em exibir algumas das preciosidades que vem recolhendo pela vida.

Econômico como se exige de um conhecedor e cultor da língua, o anhangüera de Caracol é seco como a caatinga de sua terra, mas ao mesmo tempo terno e amorável como Dom Quixote diante de sua Dulcinéia, tal como se apresenta neste “Veritas” (“Sem você /eu viveria, sim/ Mas seria eu/ sem mim”). Não esconde a bem vinda influência do amigo H. Dobal, em versos como
“Sarará e velho, ei-lo ainda:/ sem poder nenhum/ nem mesmo o braço,/ a cultivar um campo de lembranças” (“Homem”).

Obra econômica nunca foi motivo para evitar o reconhecimento de ninguém, veja-se Dobal, veja-se Torquato, veja-se Rimbaud. Cineas está se lixando pra fama, os que o conhecemos bem o sabemos. Mas, se a crítica não tomar cuidado, vai terminar comendo mosca e tendo de se desculpar mais à frente por não ter dado importância a um dos mais sensíveis e criativos poetas de seu tempo.

A vontade é a de transcrever versos e mais versos do livrinho. Mas, se o fizer, corro o risco de privar o leitor de sorver lentamente, como convém às pingas raras, o engenho e o estro desse operário das palavras. O diabo é que, igualmente ao que acontece quando se é apresentado a uma boa pinga, é que, quando a gente dá fé, já bebeu tudo, e se embriagou.

Mas lhe asseguro que não irá se arrepender de provar dessa raridade. Pena que a garrafa seja tão pequena, mal dá três goles.

Poesia com Prazer

Salgado Maranhão


Já disse um famoso crítico literário que, “quando o poema é bom a gente lê e relê, e quando é chato a gente estuda”. Esta afirmação traduz uma candente verdade: voltamos sempre ao que nos dá prazer. Dos movimentos formalistas para cá, muita poesia virou projeto, plano piloto pré-moldado que não comove a ninguém. Entretanto, os verdadeiramente vocacionados para a arte da poética, sabem que o maior prêmio da elaboração formal, é alcançar o coração do leitor. E esta é a principal virtude de Nada Além, o mais novo livro de Cineas Santos, que reúne poemas éditos e inéditos numa bela edição da Editora Bagaço, de Recife.


Cineas pertence à família dos líricos com humor - como Bandeira e Quintana - em contraponto com a dos líricos melancólicos, elegíacos. Há em seus versos uma inata vocação para ternura, principalmente nos poemas amorosos que, afastando-se de queixumes ante a ausência da amada, celebram a possibilidade do encontro: “ hoje não falo de mim,/ das vezes que tentei,/ das lutas que perdi./ Estou partindo para o próximo sonho/ queres ir?” Aliás, quem conhece o autor e a sua famosa rusticidade, lendo seus poemas, desfaz-se do mito: trata-se de um mandacaru ( árvore que emblematicamente ilustra a contracapa do livro) com espinhos de água e pétalas. Um eu lírico a cultivar afetos, uma voz maleável a conciliar extremos: “O meu caminho eu não traço/ do que não sou me abasteço”.


Além dos poemas de amor que permeiam quase todo o livro, a obra se divide em cinco partes, que o poeta dedica a uma vasta legião de amigos. Em todas as seções (exceto a última que trata, exclusivamente, da negritude e com a devida veemência que o tema exige), é tudo comunhão e aconchego nos devolvendo a sutil dimensão onde o poético não nos acossa, mas nos acolhe. Mesmo quando evoca a sua origem e as agruras do sertão, mesmo aí, o monótono labor esvaziado de perspectivas, não lhe rouba o lirismo e a fé: “ Era um tempo sem colheita,/ mas havia a crença/ e viver não doía tanto”. E, ainda, ao constatar a gratuidade do oficio de poeta que, de certo modo, se assemelha à profissão de vendedor sem cliente ou de lavrador de solo avaro, reconhece: “ficou somente a poesia,/ miúda mercadoria,/ por não achar comprador”.


Por fim, em Coisa de negro, a ultima parte do livro - e seu resgate afro-descendente – o discurso evolui para uma poesia étnica, de combate, onde os clichês verbais da dominação são utilizados com admirável inteligência, conferindo ao oprimido saber e autoridade através da palavra. Autoridade conquistada, naturalmente,que Cineas conhece muito bem e faz por merecer, como poeta e como cidadão vivamente empenhado em devolver a Teresina e ao Piauí, sua face mais brilhante.

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Este é o texto do poeta Salgado Maranhão sobre o Ancião de Caracol.



Lirismo Depurado

Paulo Machado


Na acertada expressão do poeta William Melo Soares, “a poesia não resolve, revolve”. Um aforismo estético para a finalidade da poesia, em contraposição às teorias finalísticas que alicerçam as teses acadêmicas.
Para os apressados, um aviso: o verbo revolver tem múltipla transitividade e vários significados. Vale lembrar que revolver pode significar investigar, examinar minuciosamente, esquadrinhar.
Desconfio que o poeta Cineas Santos apreendeu essa lição essencial, no curso de um longo convívio com as palavras, pois o lirismo depurado, característico de sua produção poética, aparentemente superficial, resulta de investigação exaustiva e reflexão demorada sobre temas criteriosamente escolhidos. Sua poesia filia-se à vertente lírica, muitas vezes desconsiderada pela crítica literária, a que estão vinculados poetas da estirpe de Manuel Bandeira, Mário Quintana, Manoel de Barros e Carlos Pena Filho.
Ressalto, por merecer especial atenção, a habilidade do poeta na construção de jogos sonoros que resultam em rimas e assonâncias surpreendentes, enriquecedoras da sua linguagem poética e definidoras da sua identidade estilística. Esta qualidade estética, identificável na concepção dos jogos sonoros, possivelmente seja a materialização do legado da poesia popular, traço cultural marcante na tradição nordestina.
Sugiro a leitura dos poemas de Cineas Santos, reunidos no livro Nada Além, àqueles que têm olhos livres e corações inquietos, porque revolver também é inquietar e instaurar novos roteiros.

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Paulo Machado, escritor e historiador piauiense, aqui homenageia o mestre Cinéas em Nada Além. São tantos elogíos que tou na inveja de não conhecer o livro ainda...