quinta-feira, 24 de julho de 2008

Os poetas, antenas da alma

Paulo José Cunha



No instante em que o cineasta Vladimir Carvalho fez uma marca com a mão no cimento fresco da parada de ônibus da 509 sul no dia 8 de julho de 2008, durante o evento em que os poetas plantavam versos de pedra no chão, repetiu um gesto ancestral. O mesmo gesto que o homem das cavernas fez ao carimbar a palma da mão nas paredes das rochas de Sete Cidades, em Piracuruca, no sertão do Piauí. Igual ao que o homem pré-histórico usou para assinalar sua presença no mundo fixando a mão molhada de tinta na escuridão das cavernas de Gargas, na Espanha. Uma demarcação de território. A apropriação pelo sujeito – o cidadão - da propriedade pública. Um gesto que fala por dentro do milenar silêncio da história e diz, sem precisar de palavras: “Eu existo e este espaço é meu”. O jornalista e artista plástico Henrique Gougon, atento observador da vida política e cultural de Brasília, percebeu que os poetas da cidade mereciam uma homenagem que perpetuasse na eternidade da pedra o trabalho deles, que outra coisa não fazem que não seja o de “construir” a alma de Brasília. Encontrou placas de sinalização abandonadas nas paradas de ônibus. Na trilha de Hélio Oiticica e suas “apropriações”, resolveu dar-lhes nova serventia. Plantou na carcaça das placas, em mosaicos ricamente ilustrados, a poesia dos mais queridos poetas da cidade. E assim as palavras dos falecidos Cassiano Nunes e Fernando Mendes Viana continuaram a provocar a reflexão dos transeuntes. Angélica Torres Lima, Nicolas Behr, entre outros, igualmente tiveram seus versos moldados em pedra. Até o dia em que, num ato de desvario, um agente público (por engano, segundo alegam o governador e o administrador da cidade) derrubou as placas, convertendo o encanto dos versos num monte de pedras. As cidades só se afirmam como espaços de expressão social quando seus moradores delas se apropriam. Mesmo uma cidade planejada como Brasília se cristalizaria para sempre na frieza das maquetes se as pessoas não a adotassem, não a assumissem, não a reconhecessem como espaço de pertencimento coletivo. Uma casa só adquire uma “alma” quando os habitantes dela tomam posse pendurando quadros nas paredes, espalhando tapetes pelo chão, distribuindo enfeites e jarros de flores sobre toalhas bordadas e deixando as crianças esquecerem brinquedos pelos cantos. Da mesma forma, as cidades só ganham o carimbo de civitas quando se embebem da vida cultural e emotiva de seus habitantes. Lúcio Costa e Niemeyer fizeram os traços e ergueram os prédios. Mas quem habita e dá vida à cidade exata, quem alimenta com a emoção o espaço geométrico definido pelo arquiteto e pelo urbanista - somos nós, os que aqui vivemos. Somos nós, que andamos pelas ruas, que pegamos o ônibus, que respeitamos a faixa; nós, que povoamos os jardins com a algazarra de nossos filhos; nós, que deixamos nossos passos impressos na memória afetiva das superquadras; nós, que enchemos com o burburinho de nossas vozes as feiras, os bares, os supermercados. Os poetas, estes seres estranhos “que conseguem ver na escuridão”, exercitam uma arte que provoca arrepios pelo atrito entre as palavras. E assim conseguem extrair da observação especial que fazem do mundo uma certa “essência do sentir”. Daí a fúria santa que nos acometeu ao ver no chão os versos dos poetas e os desenhos dos mosaicos de Gougon. Daí a reação de plantar versos nas sarjetas, para fazer de Brasília uma cidade onde não apenas se leiam versos em placas dispostas pelas paradas de ônibus, mas se possa caminhar, pisando em poesia. Daí a necessidade de se instituirem espaços públicos de intervenção artística. Daí a necessidade de os governos entenderem de uma vez e para sempre que as cidades pertencem a quem vive nelas. Brasília não é um autorama, e já provou isso quando enfrentou a ditadura e foi às ruas levar ao cemitério o corpo de seu fundador. Ou quando seus jovens se vestiram de preto, pintaram o rosto e mudaram a história. Quando os poetas se uniram para semear versos pelo chão estavam dizendo que a cidade tem, sim, uma alma. E disseram, como Vladimir e todos os que marcaram a palma da mão no cimento fresco da calçada da 509 Sul, que nós, moradores de Brasília, existimos. E queremos de volta os versos de nossos poetas queridos; os desenhos de nossos artistas da moderna idade da pedra; a memória da cidade “feita dos sonhos de um herói sem nome”. A alma da cidade existe. Foi ela que plantou as próprias mãos e os versos de seus poetas pelas calçadas anônimas. A alma da cidade está viva e deixa suas digitais por onde passa, apropriando-se dos espaços, alargando o campo das memórias. A alma da cidade existe, e seus poetas cantam pelos botecos, para dar sentido ao concreto e à geometria.



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Paulo José Cunha é jornalista e poeta.

Acabei de receber. Sai no sábado, 26 de julho no "Correio Brasiliense". Furei...

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