domingo, 28 de agosto de 2011

viagem sentimental



Edmar Oliveira
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Quando este texto for publicado espero estar fazendo uma viagem sentimental. Arrumei uns dias de folga para desembarcar em São Luis do Maranhão. Quero fincar a âncora desta nave espacial no centro histórico daquela cidade francesa com seu azulejado português. Quero andar na rua Grande, me afogar de saudades na rua dos Afogados, ficar todo errado na rua Direita, passear na rua do Passeio, andar nos pés da lembrança da praça João Lisboa à Gonçalves Dias. Contemplar a baia de São Marcos e ouvir do vento os versos do poeta da terra das palmeiras onde canta o sabiá. Morrer de saudades na rua da Inveja.

            É que na lembrança dessa geografia me faço menino, de calças curtas, andando no bonde do desejo de voltar no tempo. Passava às férias na casa de minha tia Dulce e quase que todas as tardes ela me dava dinheiro para ir ao cinema. Saia do João Paulo no bonde que corria nos trilhos acima dos paralelepípedos ringindo e faiscando quando cruzava o Monte Castelo, fazia uma curva no estádio Nozinho Santos e descia a rua Grande. Ia a cinemas no bairro da tia, no Monte Castelo e no Centro da cidade. Tinha muito cinema naquele tempo. Tia Dulce me levava ensinando o caminho, depois me deixava ir sozinho.

E numa dessas vezes, eu nunca me esqueci, sozinho comprei o ingresso no cinema errado, me deixaram passar pela portaria, e eu sem saber estava assistindo “O Belo Antônio”, com Marcelo Mastroianni. Me dei conta que estava no cinema errado porque sabia que aquele filme era proibido para menores de dezoito anos. Me perguntava como o porteiro não me barrara, mas tratei de me esconder no mezanino do segundo andar para não ser descoberto pelo lanterninha. Meus olhos descobriram curiosos cenas de nudez no cinema em preto e branco e não entendi porque o Mastroianni não conseguia comer a bela Cardinale. E só tive coragem de sair do cinema por último, evitando encarar o porteiro para que ele não se culpasse. A minha boa tia teve que ver o filme para me explicar por que os sicilianos colocavam o lençol na janela depois da noite de núpcias.

Outro filme dessa época foi Shane, que me marcou vida afora. Nem sei mais quantas vezes revi este "faroeste" psicanalítico. Toda vez que ele é reprisado nos canais fechados que passam filmes antigos, não resisto, vejo outra vez.

São Luís era a capital da cultura, a nossa Paris dos moradores do sertão. (meu Deus, o que o Sarney fez ao Maranhão?!). Era o cinema, o teatro na imponência do Artur Azevedo, as livrarias, os cafés, o casario colonial, as docas, os navios que levaram Gonçalves Dias as europas e afogaram o poeta já vendo as palmeiras de sua terra onde imaginava ouvir o canto do sabiá. E tinha o trem de ferro, comendo lenha e soltando brasa, que nos trazia lá do fundo do sertão. E eu vinha de Codó, terra das lendas e dos feitiços misteriosos. O trem não existe mais. Mas pretendo fazer esta viagem de carro. Devagar, como é a velocidade das lembranças. O resto, acho, conto depois.

poema numeral


Graça Vilhena

meu coração
em sua mágica unidade
recusa o humano cálculo
de ser metade de dois

prefere multiplicar-se
e voar em migração
sozinho mas sendo tantos
que bebem da mesma água
no breve instante da sede
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desenho de Paulo Moura

na fila para um concurso público


Geraldo Borges

         Há dias estou lendo a Constituição e o Código Penal para me preparar para um concurso que está anunciado no Diário Oficial da minha velha república. Nunca pensei que este tipo de concurso viesse a se realizar. Mas no meu país pode acontecer de tudo. E aconteceu o que eu não esperava. Aliás, o que ninguém esperava. Até porque somos um país cristão, e sempre abominamos a violência, principalmente a violência bíblica: antes do evangelho, olho por olho, dente por dente.

         Estou estudando todos os dias. Há tempo que não faço um concurso. E de todos que fiz nunca consegui passar, com louvor, a ponto de ser chamado. Não acredito que seja falta de conhecimento. E mais questão de método. Nunca aprendi a estudar. Requer esforço. Verdade que nunca trabalhei como advogado. Depois que terminei o curso, que estagiei, comecei a sentir que não tinha estomago para a profissão. Principalmente depois que li e reli o Processo de Kafka, e também o Castelo, e o Processo Maurizius de Jacob Wassermann, escritor alemão.

         Mas aonde mesmo eu quero chegar. Estou em uma encruzilhada e quero sair dela. E de repente me lembro de Julio Cortazar e do seu conto do qual não me lembra o nome. Mas o motivo é um cadafalso construído na frente da rua da casa do personagem principal da história. O que deixou todo mundo curioso e assustado. Ele descreve a curiosidade emocional do povo defronte de uma forca.

         Pois bem. A minha história, o meu esforço para ser alguém na vida, o meu estudo passa pela forca, a cadeira elétrica, a guilhotina, a injeção letal, fuzilamento.

         Vamos ao ponto. Dei o braço a torcer, e, agora, com certeza vou ter de passar nesse concurso. Até mesmo porque sendo poucas as vagas, acredito que, nem todo mundo, a juventude em geral, terá coragem de encarar. Resumindo. Estou estudando dia e noite para um concurso federal na categoria de carrasco. Pois a pena de morte vai ser decretada em minha republica. Nesse eu passo.



         P/S

         Quando fui me escrever, acreditem se quiserem. Desisti. Pois não tive coragem, nem paciência de enfrentar a fila, que, dobrava a esquina, superlotada de jovens inocentes que procuravam uma colocação na vida.


DISTRA(du)ÇÕES
















Durvalino Couto

Tipos de Leituras

Edmar Oliveira

Há algumas e bastantes diferentes nas motivações que os próprios livros determinam. Tem o autor que todo mundo leu e você tem de ler também. Mesmo que ele não desperte em você o que parece despertar em “todo mundo”. A propósito, ao descobrir que na África e Ásia alguns povos são nossos irmãos e aos portugueses na língua, houve uma troca intensa de autores e livros entre nós. Feiras, bienais, mafuás de publicações, principalmente de autores novos, vivos e participativos. Uma festa. Algumas editoras abriram coleções dedicadas a este nicho revelador dos talentos. Uns, ainda em digestão, recomendando os ainda mais novos sabores. Mas aí, gato e lebre se misturam nas novas páginas. Portanto é preciso que nos deixemos levar pelas impressões despertadas.

            Eu só consigo ler um livro se sou lido por ele. Explico melhor. Se, no que estou lendo, acho que posso escrever melhor, sinceramente não vale a pena continuar, até porque acho que escrevo mal. Mas pode o autor ser muito melhor do que eu seria capaz, mas não empolga muito. Toda vez que publico algo fico muito receoso dessa descoberta acontecer no meu leitor. Ele, como eu, não vai gostar. E leitura interrompida é pior que coito. Ninguém deve escrever para ser mal-amado. Até que para ser odiado vale a pena.

            Mas vai que você goste do que está lendo. Aí o ritmo dita a qualidade da obra, quero crer. Tem uma boa leitura que pode ser feita aos bocados. Quase que um determinado tempo, dia, semana, coincida aos capítulos da obra. Se esse tempo não varia muito e até diminui, boa coisa estás a ler. Se ao contrário, ai,ai, o que parecia bom está ficando ruim...

            Esse “ao contrário” já aconteceu comigo muitas vezes. Mas, como sou meio determinado a acabar o começado, raramente desisto de uma obra. Quando acontece é porque acabei de ler algo tipo “acabamos de passar o ponto em que não há mais retorno” ou “não mais como antigamente, mas ainda assim alguma coisa”. Algo assim me faz abandonar a leitura imediatamente, na certeza de que é um equivoco alguém publicar a pretensa obra.

            Mas o embalo na leitura é sempre muito agradável. E há os livros que me lêem assustadoramente. Nuns, entro de fato saindo da minha realidade e vivendo os personagens como colegas de infortúnios sofridos, companheiros de emoções compartilhadas, alegrias numa fantasia que se coloca como verdade. (Muito melhor que os livros filosóficos, onde verdades parecem fantasias). Devo ter lido essa comparação em algum lugar, porque a minha fantasia está muito nas verdades dos livros que me alimentam.

            Mas há ainda os bons, de fato. Aquele que a gente não consegue parar de ler e sente falta quando acaba... 
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ilustração: "A Piscina", desenho digital de João Werner 

nebulosa

o gol


João Batista Sousa Carvalho

o gol
é quando
se consegue
estufar
a rede
da garganta
do torcedor
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de novo o João e novamente o Amaral numa ilustração luxuosa

A Mulher Trêmula


Luiz Horácio

A presença marcante da primeira pessoa em alguns tipos de narrativas, autobiografia, confissões, diários, memórias,  permitem ao autor os papéis de criador e protagonista. Oferecem ao leitor a possibilidade, equivocada ao meu modo de ver literatura, de tornar material um ser de linguagem. O autor invisível deixa suas pegadas, seus reflexos ao utilizar os gêneros citados .Mas até que ponto valeria a pena seguir tais pistas? E ao segui-las, por mais evidentes que sejam, o leitor encontrará alguém que não lhe terá nada a dizer, embora um ser de linguagem.

No livro Écrire, pourquoi?, a escritora e crítica de arte Véronique Pittolo discorre sobre o que ela entende ser as  duas formas de escrever: “ou se escreve sobre si a partir de uma experiência pessoal, autobiográfica, ou se escolhe um tema exterior para lhe fazer submeter todas as espécies de mutações e de metamorfoses”.

 À  autoficção compete a primeira opção, ou seja, romancear a experiência vivida.

Siri Hustvedt escreve sobre si, sobre suas experiências, mesmo que ao leitor não afeito às questões neurológicas, às convulsões e à psicanálise, essa escolha acabe por gerar apenas estranheza, nunca uma estranheza estimulante, cabe alertar. Algo beirando o tédio.

Quem, e conheço muitos, tiver apreço por doenças, encontrará em A mulher trêmula, assunto para muitos debates; por outro lado quem, feito este aprendiz, detestar o assunto talvez apenas se surpreenda com a coragem da autora.

Mas também é característica da autoficção, a ambiguidade. Até onde Siri relata o acontecido e não o imaginado? Confesso ser justamente essa indefinição o aspecto que mais me agrada na autoficção.

A mulher trêmula é fruto de uma experiência, de uma terrível experiência. Pelo menos é a informação/apelo que o leitor tem antes da leitura. Desde a infância Siri Hustvedt, autora/narradora, era acometida de ataques de enxaqueca, fato que a despeito do desconforto não trazia maiores consequências. Mas durante uma solenidade na universidade onde deveria proferir um discurso em homenagem a seu pai, morto dois antes, seus braços perderam a força, suas pernas tremeram, mas ela continuou seu discurso como se tivesse incorporado uma segunda pessoa, um orador calmo e seguro. Assustada, Siri foi buscar apoio num grupo formado por psicanalistas e neurologistas que estudam fenômenos como esse. O relato dessa experiência, do mergulho de Siri no mundo da psicanálise e da neurologia constituem a narrativa de A mulher trêmula ou Uma história dos meus nervos

No trecho a seguir, de A mulher trêmula a autora refere Desilusões de um americano, seu livro anterior também merecedor de meu olhar nestas mesmas páginas.

“Comecei a ler a respeito desses mistérios muitos anos  antes  da tremedeira vespertina em Northfield.Mas as investigações se intensificaram quando decidi escrever um romance com um personagem psiquiatra e psicanalista, um homem que passei a considerar meu irmão imaginário, Erik Davidsen. Criado em Minnesota por pais muito parecidos com os meus, foi o menino que nunca nasceu na família Hustvedt.( HUSTVEDT,2011,p.12)

Percebe-se no trecho acima a interseção do discurso biográfico com o discurso ficcional. A voz da narradora/autora , primeira pessoa, tornando pública a atitude de investigar os meandros da mente humana e um dado ainda mais evidente ao criar o irmão imaginário, o menino que nunca nasceu na família Hustevedt.

Mas até que ponto esse eu narrador coincide com o eu autora? Essa incerteza, esse enigma é ao mesmo tempo um dos atrativos do gênero autoficção. Refaço a pergunta: por que tentar descobrir  o autor pessoa? Não é o mais importante.

A mim parece que retornar às vezes significa ir em frente. A busca pela  mulher trêmula me faz dar muitas voltas, pois no final das contas ela é também uma busca pelas perspectivas capazes de esclarecer quem e o que ela é. Minha única certeza é que não me satisfaço em observá-la a partir de um único ponto de vista. Preciso vê-la por todos os ângulos. (Hutsvedt, 2011 p.73)

A autora torna a mulher trêmula personagem. O eu se vendo ou seria o caso de esse eu se procurando?

A própria autora, páginas antes:

“Eu” existe apenas em relação ao “outro”. A linguagem ocorre entre pessoas, é adquirida através de outros, não obstante disponhamos do equipamento biológico necessário para aprendê-la.” (HUTSVEDT,2011 p.57)
Cabe ao leitor criar seu quadro de imagens, a autora já criou o dela

CÂNTICOS AO GUERREIRO MANDU LADINO



Marcos Freitas

o mato cheiroso daquela hora
é flecha certeira
é grito tupinambá


o mato cheiroso daquela hora
é onça pintada
é pintura jaicó


o mato cheiroso daquela hora
é rede de embira
é artefato timbira


o mato cheiroso daquela hora
é cobra na ribanceira
é saudação pimenteira


o mato cheiroso daquela hora
é lágrima de miridan
é lamento acaraó


o mato cheiroso daquela hora
é silvo guerreiro
é nado tremembé


o vento airoso daquela hora
é canto ladino
é elegia arani

Eita Piula

domingo, 14 de agosto de 2011

arroz.com saudade

Edmar Oliveira
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            Dizem que o arroz foi cultivado primeiro na Ásia e só chegou à península ibérica com os mouros. Mas apesar de ter atravessado o Atlântico com os portugueses, estes encontraram um arroz nativo, tupi-guarani, plantado na Bahia e Maranhão. Bem se dizia na minha infância que o Maranhão inventou o arroz. Papa-arroz, como os caras redondas e sem pescoço eram conhecidos no interior. O certo é que, enquanto a América espanhola come batatas, a base da alimentação brasileira é o arroz nosso de cada dia, que faz muita falta quando vamos à América em volta ou à Europa. E, junto aos paises asiáticos o Brasil é um dos grandes produtores de arroz, agora cultivado em mais intensidade no sul do país.

            Mas o arroz ganhou um sotaque regional com as misturas nativas. Parecidos a um bom risoto italiano. Enquanto o sul espalha o “arroz de carreteiro”, os goianos misturam arroz na galinhada com pequi, os paraibanos fazem o delicioso arroz de leite. Com folhas dos índios, os paraenses fazem o mágico arroz de jambú, enquanto os maranhenses inventaram o arroz de cuxá. A mistura do arroz com feijão faz os diferentes baiões-de-dois de cada Estado nordestino.

            Com certeza não é uma exclusividade, mas tem sabor da minha terra o arroz de pequi, a Maria Isabel e o arroz doce com canela. E minha terra fica na confluência dos interiores de Maranhão e Piauí, de um lado e outro do velho monge. O rio Parnaíba faz a espinha dorsal do meio-norte, serpenteando desde a confluência com Goiás até o delta no oceano Atlântico. E foi ali pela região lombar desse espinhaço que se fez a minha pátria.

            E o pequi da minha terra é muito diferente do pequi dos Goiás. Lá ele é miúdo, amarelo açafrão, com pouca carne. Na minha terra é bem maior, muito mais pálido e com uma polpa macia de se fazer um caminho com os dentes incisivos, típicos dos roedores. O cheiro que ele deixa ao se cozinhar no arroz é característico. Odiado ou amado. Eu sempre fui apaixonado. Pequi ou não se come ou se come muito. Não tem meio termo. No arroz ou no feijão se cozinha pequi como se fosse uma iguaria que valoriza o arroz simples ou o feijão pobre. E quando faço essa descrição, sinto o cheiro e a boca enche d’água, porque a saudade de um gosto é encrenqueira.

            A Maria Isabel é um risoto de carne de sol sem a umidade do prato italiano (já se faz uma Maria Isabel molhadinha nos restaurantes nordestinos, para agradar o paladar globalizado). Mas a nossa Maria Isabel tem um arroz moreno herdado da fritura da carne de sol, só que bem soltinho. A gente pode até molhar a nossa Maria Isabel. Mas é com a gema mole de um ovo frito. Aí o sabor fica uma coisa de enlouquecer. Água na boca, novamente.

            O Arroz Doce é um prato típico do São João. Uma variante do arroz de leite dos paraibanos, só que com açúcar e/ou leite condensado. Serve-se frio, como a canjica, e também com canela por cima. Tem um gosto de festa junina. E uma saudade das tardes mornas de um sol preguiçoso que se demora para que o gosto fique mais na lembrança...       

A visão de um novo cronista

Geraldo Borges


O inútil tem sua forma particular de utilidade
Carlos Drummond de Andrade.





Prometi a mim mesmo que de agora em diante não farei mais crônicas falando mal de todo mundo, quer dizer, principalmente do governo e também dos amigos; eu acho que a verdadeira crônica tem que ser frívola. O autor está desobrigado de falar mal, são tantos os que  falam mal do governo que um a menos não faz falta. Pois é. Falando assim me encaminho para um novo comportamento Alguns de meus leitores vão estranhar, outros acharão que eu fiz muito bem. Talvez os frívolos, os quais gozam à minha estima. Mesmo assim uma crônica frívola como esta pode ser fruto de uma escola. A escola da inutilidade pratica que serve apenas para o descanso de domingo. E quase como se a crônica fosse uma missa, um baile. O leitor recebe o jornal dominical. Começa a se sentir enojado com os títulos e os conteúdos das manchetes. Para felicidade sua chega ao suplemento cultural, e dá de cara com  a minha crônica. Pensa logo:- eu não vou ler este cara, é um imbecil, fica falando de Deus e o mundo sem tomar chegada. Na verdade não tem estilo. Mas como a negação já é um principio de afirmação, ele vacila e pescado pelo titulo nem nota que já está de boca aberta com os olhos grudados no texto. Não encontra o que procura.

E ele mesmo? Pergunta-se. Toma um gole de café, e acende um cigarro. Isto não é apenas uma viciada metáfora literária, ainda acontece. Cigarro, café e leitura. Entre uma baforada e outra exclama Não pode ser. Não é que estou gostando de seu texto. Ele não diz nada. Não sai do lugar. Mas vale a pena ler. Pelo menos não está perdendo tempo espinafrando essa velha republica. E não posso mentir, o seu estilo ficou mais leve, sem grosserias. Com certeza vai arranjar mais leitores.

Na verdade, as pessoas estão cansadas de ler artigos, crônicas maçantes, batendo nas mesmas teclas, sempre os mesmo problemas adiados para nunca serem resolvidos. E por isso vão à missa onde há promessa e aos bailes onde há diversão, e também se divertem lendo crônicas frívolas e líricas, pois é para isto que a poética serve para o divertimento das almas perdidas que não tem mais esperança de mudar o mundo.

Esta crônica é fútil, dirão alguns leitores, eu também já disse. Mas também  é um objeto social, um trabalho saído de minhas mãos com a ajuda do meu pensamento, das minhas impressões imediatas, transportadas em palavras através da tecnologia de um computador. Repito é um objeto inútil, metafísico, transcendental, no entanto, toma o tempo das pessoas, enfeita o espaço, embora não esteja dizendo nada de importante. Mas alegra os olhos do leitor, e, com certeza, mesmo não sendo uma missa, ou um baile, pode ficar na lembrança de algumas pessoas.

 Já me perguntei muitas vezes sobre o prazer da leitura, sobre o feitiço da palavra escrita, e, como leio quase tudo desde bula de remédio a cartas enigmáticas, descobrir que as palavras são em primeiro lugar ferramentas para a construção do mundo. Onde ela se torna arte, é outra história. Talvez este seja o momento infantil da palavra, o jogo, a brincadeira. A frivolidade. Pois nem toda a leitura mexe com a gente. O leitor não ler uma bula de remédio como quem ler um poema, a não ser que seja uma bula papal. Mas uma bula com o tempo pode virar uma poesia e ser objeto  para uma crônica e não apenas uma indicação terapêutica

O certo é que de letra em letra de palavra em palavra foi encaixando períodos e parágrafos até criar esta crônica, não foi fácil, até por que ele não tem endereço certo, flutua, uma simples folha de papel impresso, vazia de conteúdo serio. Mas, o importante é que é minha criação, uma experiência única, que, penso eu, irá agradar aos leitores frívolos, quanto aos sérios não sei, isto fica para o futuro. Mas o que mais me impressionou nesse texto, é que ele não tem nada a ver com o meu velho estilo. É um estilo novo, novíssimo, e espero com isso fazer escola. Se não, paciência. Volto ao velho estilo. E farei esforço para ser um personagem sério.

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ilustração: desenho de Paulo Moura

canário da terra

Graça Vilhena

Nice sussurrou um parabéns ensaiado e entregou-lhe o presente. Era um canário numa gaiola levíssima, coberta por um celofane vermelho. Ele agradeceu meio sem jeito e surpreso com a idéia da namorada.

Andaram pela casa procurando um canto para a gaiola. A parede da varanda foi sugestão da moça. Dava para ver o céu e não esquecer para que servem as asas. O rapaz embevecido viu poesia nisso e, conivente, fincou um prego na parede e pendurou a gaiola. Só então perceberam o gato, salivando um explícito desejo de passarinho caçado. A moça riu-se sem profundeza. Depois apressou um beijo cheio de promessas e saiu. Passou a amá-la a partir daí.

No outro dia foi acordado pelo canto do canário que, entontecido, eletrizava a casa. Era um pássaro singular, cantando assim com sua alma à vista, sem importar-se com o desconhecido. O rapaz sentiu-se orgulhoso, então, quase sem malícia, resolveu que daria uma festa para que os amigos vissem como era feliz. Todos, com certeza, além de admirarem o canário, creditariam a escolha do presente ao sentimento da moça, capaz de tornar inteligível, ao sensível coração feminino, essa mania masculina de prender pássaros em gaiolas.

Quando mais tarde, no apartamento de Nice, comentou sobre a festa, ela discordou. Era coisa só deles, disse-lhe com ciganice. Depois beijou-o, adoçando uma possível palavra que pudesse contrariá-la.

Um ano depois, o rapaz tinha como certo que sabia de cor aquele amor. Sentia-se confiante naquela entrega sem escudo. Porém, era preciso conquistar os últimos segredos, por isso queria amá-la mais, inventar carícias, surpreendê-la em cada encontro. E, nesse enlevo de torná-la sua, não percebeu, nos longos olhos de Nice, uma sombra inquieta e crescente na gasta paisagem dos dias.

Foi por telefone, numa manhã qualquer. Ela justificara-se dizendo não ter coragem de, pessoalmente, romper o namoro. Não o amava mais, ele que procurasse entender, pois essas coisas aconteciam. Depois de um difícil silêncio, ele quis saber se havia outro. Nice não respondeu, confirmando a suspeita do rapaz. Ouviu ainda quando ela, despedindo-se, propôs-lhe amizade e disse-lhe, por fim, com a mesma voz de espiral enlevo: “a gente se vê por aí”.

Ainda pensou em correr dali, procurá-la, exigir explicações para aquela surpresa emaranhada. Mas sua cabeça martelava o silêncio aterrador que lhe travava os passos: outro, agora, a colheria dos dias como doce fruto de sol. Uma dor imensa ameaçava arrebentar seus nervos que se alongavam tensos pelo corpo. E assim ficou por horas, até perceber o ultrajante canto do pássaro na varanda.

Num gesto enlouquecido, partiu para a gaiola, arrancou de lá o canário e, com violência, atirou-o ao gato. O pássaro, ainda engasgado com o último acorde, procurou instintivamente defender-se diante da morte, abrindo as asas para mostrar-se maior. Foi nesse momento que o gato, supondo um vôo libertador, riscou com uma patada afiada dois sulcos que banharam de sangue a cabeça do pequeno animal. Poderia tê-lo devorado, mas a fome não era sua primeira necessidade, então optou por fustigá-lo. Com uma pata nervosa e falsamente macia, tangia-o de lá para cá, provocando uma reação para animar seu brinquedo. Mas o canário aguardava quieto o seu momento, que surgiu quando o gato afastou-se, fingindo-se enfastiado. Reunindo o que sobrou de suas forças, o corajoso pássaro atirou-se como uma flecha contra o inimigo, enterrando seu bico no olho do felino. Cego e desorientado, o gato livrou-se do canário com uma última patada e fugiu espavorido para o quintal.

O pássaro voltou a si nas mãos do rapaz. Este aspergia, com extrema delicadeza e cuidado, uma água fria sobre os ferimentos que ainda sangravam. E assim, nessa íntima proximidade, o canário viu, pela primeira vez, a tristeza do mundo refugiada naquele olhar de castanha agonia e aflição.

Durante dias cuidou do pássaro. Algumas vezes, tentando animá-lo, colocava-o cedinho ao ar livre, para que tomasse os primeiros raios da manhã. Outras, assoviava baixinho – para não assustá-lo – uma canção guardada. Redobrara também os cuidados com a alimentação: soprava duas vezes, por dia, o alpiste, prendia verduras na gaiola e reforçava a vitamina na água. Ficava feliz com as melhoras. Emocionara-se quando viu fechar-se a asa que parecia quebrada e nascerem as primeiras penas sobre as cicatrizes. Tinha medo que não voltasse a ser o mesmo, que morresse emudecido.

Mas novamente o pássaro surpreendeu. Não muito tempo depois daquele dia inóspito, amanheceu cantando sem nenhuma nódoa na alma. O rapaz correu para a varanda e ficou ali aspirando aquele canto na esperança de impregnar-se daquela alegria renovada. Era preciso que a casa deixasse de ser uma simples morada. Que a moça que vinha, agora, acordasse mais vezes nos seus braços e, principalmente, não percebesse o amor por Nice empalhado no peito.
______________________
Este conto faz parte da “Coleção Contar”, vol. 8, publicado em 2002 pelo editor Cineas Santos. 

o drible


João Batista Sousa de Carvalho

as pernas na dança do lance
o lance na ginga das pernas
os olhos que olham a bola
a bola que espera o toque
do corpo que insulta o outro
o outro que erra o passo
da dança e que em descompasso
não mais acompanha o lance
do corpo que ganha campo
e avança veloz com a bola
enquanto a torcida grita
enquanto a torcida canta: olé!
__________________________
o João é leitor do Piauinauta e poeta de União. Mandando sua colaboração que é bem vinda. Escolhi para ilustrar o poema estreante o talento campeão do Amaral.

flor rara







sequência de fotos de uma flor de Guaramiranga, no Ceará, que desabrochou no jardim do Cinéas, em Teresina. E com um haikai de quebra:


Motivos para sorrir?
Com ardente paciência,
eu vi esta flor se abrir!

(Cinéas Santos)

haikai kruel


Num dia de cão,
ponho o anúncio:
doa-se um coração.

(Kenard Kruel)
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(O DONO DO BLOG LÁ EMBAIXO)

verso lívido

*DOCE DESPERTAR*

O menino acorda cedo
Não é porque tenha medo
Mas pra ver a manhã a caminho
O menino acorda feliz
Porque acorda num pais
Cheio de sol e passarinho

O menino acorda sorrindo
Porque o dia vem vindo
E é bom quando o dia vem
O menino salta da cama
Porque tudo o que ele ama
Logo acordará também

(*Climério Ferreira*)

RO​CK(?)... IN RIO


Dia 26 de setembro será dada  a  largada  para  a  décima  edição  do  Rock in Rio...  in Rio,  dessa  vez.
As últimas seis aconteceram em Lisboa (quatro) e Madri (duas). Já se  passaram  26  anos,  mas  jamais esquecerei do primeiro festival, em 1985. Não que eu tenha gostado. EU NÃO FUI! Não dá pra esquecer porque esqueceram de convidar Raul Seixas, o maior  roqueiro do  Brasil. A mídia  não  noticiou, mas o maluco beleza acusou o golpe. Precisou ser hospitalizado pra sair da depressão.
Há  pouco  eu  estava  dando  uma  olhada  na  programação deste  ano. Já no dia da estreia os amantes do bom e velho rock’n’roll vão poder se deliciar com a  apresentação  de  Claudia  Leite,  e  dia  30  curtir outra roqueira de primeira linha: Ivete Sangalo.
Sei não, mas acho que o Raulzito, se ainda fosse vivo, ficaria de fora, outra vez.


(Gervásio Castro)

Les mêmes larmes


Aeroporto Salgado Filho, dezesseis horas do dia três de agosto de dois mil e onze. Céu nublado à espera dos aviões. Às dezessete e trinta, um deles levará minha filha

Thamara vive no Rio de Janeiro. Faz vinte dias que está aqui em casa. Não é visita, pois filho nunca visita, filho retorna.

Dia desses fomos ao cinema. O filme Les mêmes larmes. A história de Vincent, um escritor e seu processo de adaptação após o término de mais um  casamento. Pai de Sophie, dois anos e meio.

O filme é comovente, terno, triste, denso…

Uma das cenas mais impressionantes: Vincent se encontra em seu escritório, prateleiras vazias, retirara seus livros durante à noite. Fizera tudo no sentido de Sophie não perceber o que se passava.

Como de costume, naquela manhã levara a mamadeira para Sophie e fora sentar em seu escritório vazio. Olhava para as estantes  quando a menina empurrou a porta e, automaticamente, estendeu o braço para alcançar a mamadeira ao pai. Aquela manhã, no entanto, trazia algo diferente. Ela olhou ao redor e percebeu as estantes sem os livros. Sophie não diz nada, as crianças percebem as tristezas dos pais por mais que eles tentem ocultá-la.Vincent não tinha o hábito de trapacear com a filha. A garota faz o caminho de volta, Vincent olha para a mamadeira em suas mãos. Logo Sophie retorna e entrega ao pai um bichinho, algo que me pareceu uma foca, um filhote de foca. Azul.

Vincent acaricia o brinquedo e devolve à Sophie. Ela pega e logo torna a entregar  ao pai. Nessa cena, sua primeira fala: pro papai.

O avião que levará minha filha está no pátio do aeroporto. Sinto saudade, embora a tenha entre meus braços.

Nos últimos instantes antes do embarque recordamos algumas coisas que fizemos   juntos. Les mêmes larmes volta à nossa pauta. Thamara  lembra a cena que se repete até Sophie completar dez anos. Sempre que Vincent  deixa a filha com a mãe a cada final de semana, chora. Catherine, a mãe da menina, repete o discurso: "Suas lágrimas não me comovem, não venha com essa chantagem emocional. Você não cansa?"

Um dia, Sophie devia ter uns cinco anos, pergunta ao pai: "Pai, as pessoas choram sempre do mesmo jeito? Todo mundo chora igual?"

Vincent responde: "Não,minha filha, cada pessoa tem seu jeito de chorar, só as lágrimas são iguais"

Última chamada,  Thamara me abraça,nos beijamos, segue para a sala de embarque. Guardo minhas lágrimas para chorar no carro.

É de lá que vejo o avião que a levará para casa, ganhar os céus. Confiro o horário, dezessete horas e cinqüenta minutos. Choro.

Tento me confortar dizendo, em voz alta dentro do carro, que são apenas duas horas de avião, que em dezembro ela retornará, mas amor não se mede com instrumentos racionais. Amor é presença.

Tenho mais dois filhos, mas os filhos, ao contrário das lágrimas, não são iguais.

No percurso para casa retorno ao filme, Sophie, aos dez anos, decide morar com o pai. A mãe da menina, no filme um tanto estereotipada, não faz oposição. Nesse momento, Vincent está começando outro casamento. Sua mulher concorda com a presença de Sophie. Logo entra em cena o grande vilão do filme; o ciúme.

Sophie pergunta ao pai: “Lembra daquela vez que perguntei sobre o choro? Pois é, e o ciúme. todo mundo sente ciúme?”

Vincent responde: “Nem todos, tem gente que sente medo.Medo de não saber amar. Como  seu pai.”

De volta ao meu escritório percebo que minhas estantes estão sempre recebendo um livro novo. Daqui a pouco telefonarei. Não aguento mais a saudade daquele som paaaaaiii.

Av. Lajeado, bairro Petrópolis, sala Perciliana, dezenove horas, dia três de agosto de 2011...




Orquestra Juvenil da Bahia


garimpado por Cândido Espinheira. No fim vira um carnaval. Sensacional a irreverência baiana.