domingo, 14 de agosto de 2011

canário da terra

Graça Vilhena

Nice sussurrou um parabéns ensaiado e entregou-lhe o presente. Era um canário numa gaiola levíssima, coberta por um celofane vermelho. Ele agradeceu meio sem jeito e surpreso com a idéia da namorada.

Andaram pela casa procurando um canto para a gaiola. A parede da varanda foi sugestão da moça. Dava para ver o céu e não esquecer para que servem as asas. O rapaz embevecido viu poesia nisso e, conivente, fincou um prego na parede e pendurou a gaiola. Só então perceberam o gato, salivando um explícito desejo de passarinho caçado. A moça riu-se sem profundeza. Depois apressou um beijo cheio de promessas e saiu. Passou a amá-la a partir daí.

No outro dia foi acordado pelo canto do canário que, entontecido, eletrizava a casa. Era um pássaro singular, cantando assim com sua alma à vista, sem importar-se com o desconhecido. O rapaz sentiu-se orgulhoso, então, quase sem malícia, resolveu que daria uma festa para que os amigos vissem como era feliz. Todos, com certeza, além de admirarem o canário, creditariam a escolha do presente ao sentimento da moça, capaz de tornar inteligível, ao sensível coração feminino, essa mania masculina de prender pássaros em gaiolas.

Quando mais tarde, no apartamento de Nice, comentou sobre a festa, ela discordou. Era coisa só deles, disse-lhe com ciganice. Depois beijou-o, adoçando uma possível palavra que pudesse contrariá-la.

Um ano depois, o rapaz tinha como certo que sabia de cor aquele amor. Sentia-se confiante naquela entrega sem escudo. Porém, era preciso conquistar os últimos segredos, por isso queria amá-la mais, inventar carícias, surpreendê-la em cada encontro. E, nesse enlevo de torná-la sua, não percebeu, nos longos olhos de Nice, uma sombra inquieta e crescente na gasta paisagem dos dias.

Foi por telefone, numa manhã qualquer. Ela justificara-se dizendo não ter coragem de, pessoalmente, romper o namoro. Não o amava mais, ele que procurasse entender, pois essas coisas aconteciam. Depois de um difícil silêncio, ele quis saber se havia outro. Nice não respondeu, confirmando a suspeita do rapaz. Ouviu ainda quando ela, despedindo-se, propôs-lhe amizade e disse-lhe, por fim, com a mesma voz de espiral enlevo: “a gente se vê por aí”.

Ainda pensou em correr dali, procurá-la, exigir explicações para aquela surpresa emaranhada. Mas sua cabeça martelava o silêncio aterrador que lhe travava os passos: outro, agora, a colheria dos dias como doce fruto de sol. Uma dor imensa ameaçava arrebentar seus nervos que se alongavam tensos pelo corpo. E assim ficou por horas, até perceber o ultrajante canto do pássaro na varanda.

Num gesto enlouquecido, partiu para a gaiola, arrancou de lá o canário e, com violência, atirou-o ao gato. O pássaro, ainda engasgado com o último acorde, procurou instintivamente defender-se diante da morte, abrindo as asas para mostrar-se maior. Foi nesse momento que o gato, supondo um vôo libertador, riscou com uma patada afiada dois sulcos que banharam de sangue a cabeça do pequeno animal. Poderia tê-lo devorado, mas a fome não era sua primeira necessidade, então optou por fustigá-lo. Com uma pata nervosa e falsamente macia, tangia-o de lá para cá, provocando uma reação para animar seu brinquedo. Mas o canário aguardava quieto o seu momento, que surgiu quando o gato afastou-se, fingindo-se enfastiado. Reunindo o que sobrou de suas forças, o corajoso pássaro atirou-se como uma flecha contra o inimigo, enterrando seu bico no olho do felino. Cego e desorientado, o gato livrou-se do canário com uma última patada e fugiu espavorido para o quintal.

O pássaro voltou a si nas mãos do rapaz. Este aspergia, com extrema delicadeza e cuidado, uma água fria sobre os ferimentos que ainda sangravam. E assim, nessa íntima proximidade, o canário viu, pela primeira vez, a tristeza do mundo refugiada naquele olhar de castanha agonia e aflição.

Durante dias cuidou do pássaro. Algumas vezes, tentando animá-lo, colocava-o cedinho ao ar livre, para que tomasse os primeiros raios da manhã. Outras, assoviava baixinho – para não assustá-lo – uma canção guardada. Redobrara também os cuidados com a alimentação: soprava duas vezes, por dia, o alpiste, prendia verduras na gaiola e reforçava a vitamina na água. Ficava feliz com as melhoras. Emocionara-se quando viu fechar-se a asa que parecia quebrada e nascerem as primeiras penas sobre as cicatrizes. Tinha medo que não voltasse a ser o mesmo, que morresse emudecido.

Mas novamente o pássaro surpreendeu. Não muito tempo depois daquele dia inóspito, amanheceu cantando sem nenhuma nódoa na alma. O rapaz correu para a varanda e ficou ali aspirando aquele canto na esperança de impregnar-se daquela alegria renovada. Era preciso que a casa deixasse de ser uma simples morada. Que a moça que vinha, agora, acordasse mais vezes nos seus braços e, principalmente, não percebesse o amor por Nice empalhado no peito.
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Este conto faz parte da “Coleção Contar”, vol. 8, publicado em 2002 pelo editor Cineas Santos. 

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