domingo, 25 de janeiro de 2015

METÁFORAS


desenho: Villa

(Edmar Oliveira)

As religiões monoteístas sempre tentaram que seus livros sagrados fossem o código de conduta de uma sociedade. E, enquanto se confundiu com o Estado, era heresia não se acreditar no deus católico, que em nome de seu profeta, o Messias, queimou judeus na inquisição. Também foi em seu nome que se declarou que os índios não tinham alma, assim como os africanos, por não professar a fé do colonizador, que a Igreja respaldou a matança dos nativos e a escravidão de um povo.

Os judeus, povo que se acha eleito do deus de Abraão, foi escravizado por séculos no Egito até que Moisés os guiou a terra santa. Mas a terra já tinha outros donos e o povo judeu se espalhou pelo mundo unido pela fé de que o seu deus lhe daria a pátria um dia. Na segunda guerra, vítima do nazismo, quase foi exterminado. Depois da segunda guerra conseguiu parte da terra prometida e a ferro e fogo expandiu suas fronteiras submetendo seus inimigos, pela fé, a suplícios semelhantes aos que sofrera. Mas a republica sionista parlamentarista está mantida. Para azar dos árabes expulsos da sua (deles) terra a guerra continua submetendo uma cultura, que também tem livro sagrado, pelos ensinamentos sagrados dos hebreus. Por sorte de quem mora longe, o povo eleito tem uma nação única.

Em nome da civilização o Estado afastou a Igreja do seu seio para se declarar laico. Mas olhando para trás, a Europa cristã e suas colônias deixaram um rastro de sangue com que escreveram a história de uma dominação.

Porque no princípio era o verbo e a guerra era santa. A Andaluzia é testemunha da cultura árabe que dominou a Europa um dia e foi expulsa pelos reis católicos em nome de deus. Hoje os árabes voltam à Europa como refugiados das guerras em suas terras extenuadas de riquezas que foram tomadas pelo colonizador europeu. Vivem em guetos, oprimidos e discriminados por uma Europa que tem medo inconsciente do seu passado.

O islamismo, a religião monoteísta mais nova, assimila todas as outras em nome do profeta Maomé. Acham o Torá judaico e as Escrituras cristãs livros incompletos na revelação de Deus. Descendem também de Abraão, acham Moisés e Jesus profetas, mas que não tiveram a perfeita revelação de Maomé. O profeta Maomé recebeu do anjo Gabriel os ensinamentos de Alá inscritos em omoplatas e couro de carneiro. É o mesmo mito de Moiséis e de Jesus, mas o Alcorão recebido por Maomé dita um código de conduta que não permite separar o Estado da sociedade e da religião. E as repúblicas ou califados islâmicos foram, são e serão sangrentos. Uns mais, outros menos. Até que o estado deles seja laico. E o livro sagrado seja metáfora.
desenho de Villa

Entretanto, por ser uma religião "nova", e desde o começo confundida com o poder do Estado, inevitavelmente brigam pela disputa de qual linhagem contém os herdeiros de Maomé. Os descendentes da própria filha do profeta são a minoria xiita. E entre eles ainda há divisões. A maioria sunita também não é homogênea e são vários ramos em conflitos. Para o ocidente é muito difícil entender o conflito do oriente. E o ocidente alimenta este conflito religioso pela esperteza econômica de negociar armas. Mas essas armas já se voltam para alimentar uma guerra santa dentro da própria Europa.

Essa guerra santa em nome de deus é ridícula para os que não têm fé. E em nome da fé que temos na humanidade, ridicularizar alguns mitos, metaforicamente, é uma arma da civilização para que o ridículo possa desarmar a guerra santa. Não deu certo para os cartunistas do Charlie Hebdo.

Por que martelo nessa tecla, se todo ato terrorista é incompreensível civilizadamente? Porque aqui há algo mais. O ataque aos cartunistas foi em nome do profeta real. A piada não foi compreendida na metáfora, sublime atividade humana. A metáfora foi entendida como o próprio punhal que feriu o profeta. Aí já não exerceria sua função. Assim nos desumanizamos. Quando a Metáfora e a Espada não se diferem, acabou a civilização.



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ARNALDO ALBUQUERQUE


olha só o que você fez
ni qui você me transformou
sou um Little Nemo que não acorda
fogo é dar corda
nesse filme de horror

olha só o que você me fez
ni qui você me transformou
vai que acha muito (Mr.) Natural
minha branquinha
um copo na mão
um AC na cabeça do pau
sou Gato Felix que está Fritz
e ainda digo: Que tal?

olha só o que eu fiz
quando minha Rua tinha bosta de jumento
rolava um sentimento e um curso de rio
e como desafio levei um muro com as costas
Hospital da Lagoa numa boa
sem nenhum arrependimento
A Sangue Frio
minha Rua e um curso de rio
e um muro nas costas

olha só o que você fez
ni qui você me transformou
Faber Castel número 3
pasta verde 
ou de qualquer cor

olha só o que você fez
ni qui você me transformou

Durvalino
08.01.2015


Mais Arnaldo Albuquerque

(Edmar Oliveira)

O sujeito era tão intenso que uma crônica ou duas não dão conta da sua peregrinação num destino que carregava cravado no umbigo. Sua história nos quadrinhos e no desenho animado deixou herdeiros que reconhecem a filiação e uma tese de mestrado faz uma análise do seu lado marginal à marginalidade.

Fizemos um jornal na década de 1970, que circulou apenas duas vezes, mas nomeou uma geração: “Gramma”. E as duas capas eram dele. A do número um, aqui reproduzida, é uma obra prima. No nome Gramma detalhes podem ser acompanhados com uma lupa de cenas proibidas na nudez com erotismo digno de um Wolinski. Entre às cenas de sexo, o coração de Jesus pende do meio do primeiro M com a inscrição blasfêmica “o coração de Jesus era de pedra” e na última perna desse primeiro M a própria face do Cristo contrasta com o inferno que queima a lascívia do outro M. Mas no conjunto das letras o mal parece vencer o bem da religião. As outras letras parecem vencer o M do Cristo, mas é nele que se pode ler “a maior curtição”. O desenho central parece um autorretrato que arranca o coração do peito num rasgo tão grande que expõe as vísceras abdominais de forma chocante. Singelas flores emolduram o quadro.


Essa capa faz prescindir o conteúdo do jornal na temporalidade. É o que fica. É a transgressão que nos representa, toda uma geração, num desenho dele. Na mesma época era fundado o Charlie Hebdo na França, e aqui na terra “O Pasquim” já era reconhecido por dialogar com a contracultura. Era no desenho do Arnaldo que nós gritávamos, no estado mais atrasado da federação brasileira, que o sertão entrava no cenário da contracultura.

E ele continuou desenhando. Emplacou alguns cartuns n’O Pasquim. Fez ilustrações para livros de contos, como as que publicamos aqui. No traço a violência e o erotismo. Duas formas de protestos incontestes.







Mas foi agora, já depois de sua morte, que tomei conhecimento, pela internet, de um grande e futurista desenho. Um felizardo declara que ganhou o desenho do próprio Arnaldo em 1982. Em um cenário futurista, que lembra Metrópolis do Fritz Lang, prédios de Teresina e Timon (cidade fronteiriça do Maranhão) fazem um paredão às margens do Rio Parnaíba. O leito do rio secou e um fiapo de esgoto corre por baixo da Ponte Metálica (símbolo da cidade, quando ainda não tinha a ponte estaiada). Premonição do artista?



Depois silenciou. Parecia que a obra tinha ficado pronta. Só caminhava de casa para o botequim do meio do quarteirão. Tomava uma ou duas pingas. Bastavam. E o caleidoscópio do artista girava num mundo que ele não quis habitar por ter sempre se mantido à margem. Ele só saiu do nosso campo visual, mas continua à margem. Agora na terceira margem do rio, como no conto do Guimarães Rosa.

ARNALDO


Escrevi um poema para o Arnaldo
E sem querer rasguei o poema
Era um poema mal fadado
Falando de um velho tema.

Da morte que nos espera
Na rua ou num bar da esquina
Essa deusa essa quimera
Que nos eleva e nos ensina.

Na Rua José dos Santos e Silva
No velho bairro do Barrocão
Arnaldo  bebeu sua alma viva
Com a sede da sua solidão.

A morte veio de mansinho
E  tocou de leve o seu peito
E o ceifou com o seu ancinho,
E disse você é meu eleito.

Você está em estado de graça
Do vinho vem a comunhão
 Brindemos essa ultima taça

A morte é a tua consagração.

(Geraldo Borges)




Os anos da juventude, comentários

(Geraldo Borges)


Durante a leitura do romance, Os Anos da Juventude, do autor Francisco Venceslau  dos Santos, editora Caetés, Rio de Janeiro, 2014, tive  a oportunidade de passear pelos confins do passado da década de sessenta, e fui aos pouco observando como o cenário de seu romance mudou, dando por isso mesmo  um significado  histórico e epocal ao seu livro. As ruas continuam com os mesmos nomes, mas as construções, os edifícios são outros,  com exceção de velho Liceu e da casa colonial do Barão de Gurgueia na praça Saraiva e da Casa Anísio Brito, a maioria dos velhos casarões foram derrubados para  servirem de estacionamento.   
        
Não existe mais a linha de ônibus  Centro – Tabuleta, já não existe as marcas de bicicleta importada: Bristol e Raleigh, nem muito menos o radio Sharp;  já não existe a famosa fábrica de guaraná Tufy, que ficava na descida da  Avenida Barão de Gurgueia, nem   existe também a falada fabrica de sabão, nem a velha redação do jornal O Dominical cujo endereço o autor marcou no texto, na rua Olavo Bilac número 1228,  esquina com a velha faculdade de Filosofia. Nem a loja e mercearia do Cícero, importante ponto de referência do bairro Vermelha. Não mais existem quintais, como esse do primeiro parágrafo do romance.

“Manhã de sol. Está  sentado numa cadeira de couro na janela da cozinha. Regala os olhos com a silhueta  de Raquel, a garota da casa ali perto, ela toma banho no quintal, e se arruma para ir ao colégio”.

O colégio é o velho Liceu responsável, em parte, pela formação intelectual do personagens do romance, e de muitos outros vultos da literatura piauiense.

Já não existe também a marca de cigarro Minister tão consumida pela classe média daquele tempo, nem também os dominicais banhos no rio Parnaíba, nem muito menos o bar Carnaúba,  onde se reunia a intelectualidade piauiense, já não existe mais o jornal do Comercio, nem as maquinas de datilografia, nem muito menos os rendez vous da Rua Paissandu; O Clube dos Diários adquiriu outra feição, virou um espaço cultural  acessível à classe media. O cinema Rex desapareceu. Não existe mais exibição de filme, nem fila na bilheteria, nem pipoqueiro na calçada, nem muito menos pôster de grandes astros e estrelas que deram glamour  aquela época. O  Theatro 4 de Setembro perdeu a função de cinema.


Quanto à segunda parte do romance, decorre no Rio  de Janeiro, obedecendo  o enredo romanesco do filho da província que se muda para a metrópole em busca do sucesso. A história se desenvolve num cenário, que, com certeza, também mudou. Pois durante a época da ditadura  a febre de urbanização atingiu ao limite máximo. Tomemos, como exemplo a construção da ponte Rio  Niterói,  e a derrubada do Calabouço.

“De madrugada, o grupo descobriu escavadeiras, guindastes e tratores que avançavam na noite silenciosa, na avenida. Então Jane  dirigida por ele focou ao vivo o combate das máquina contra os muros do antigo restaurante do Calabouço, que sob os holofotes parecia uma antiga fortaleza palestina.”

A ditadura mudou todo o aspecto urbano e social do País em busca de uma nova arquitetura.

Além da sua permanência do Rio de Janeiro,  o personagem principal do romance vai até Paris, o sonho de todo escritor brasileiro. E contempla monumentos históricos seculares E passeia por logradores famosos. Em resumo o livro de Francisco  Venceslau  dos Santos é um registro de mudanças e transformações pelas quais passou  a sociedade brasileira em busca da modernidade.


No que diz respeito à carpintaria do romance é bem estruturado.  Capítulos curtos. Atmosfera cinematográfica, detalhada discrições Talvez um pouco de exagero nos diálogos, o que é normal na configuração de personagens jovens. Particularmente  esta é a minha leitura. Mas cada leitor é um leitor. O importante é conferir.




Um poema


Sofreste em excesso
por tua ignorância,
carregaste teus trapos
para um lado e para outro,
agora fica aqui.
Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.
Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti.
Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
Porque não existe, entre mim e ti, nem eu, nem tu.


(Jalal ad-Din Muhammad Rumi - poeta persa do século XIII)
garimpado por Cinéas Santos




Caixa Postal

Sr. Edmar,
Fico feliz com as palavras sobre o Tio Arnaldo (Tio Dado para os sobrinhos). Crescemos com a figura emblemática de um tio artista que fazia flautas desenhadas para presentear-nos, organizava sessões de cinema feito em super8 e fazia de sua biblioteca de quadrinhos um sarau. 
O Piauí perde um ícone de sua cultura, nós o Tio Dado.




O QUE ELES TÊM EM COMUM


(Geraldo Borges)

Em uma manhã  nublada prometendo chuva, retirei-me, com o espírito retraído, para o recinto de minha biblioteca, E comecei a visitar os meus hospedes, quer dizer, os meus autores predileto; tudo isso para fugir ao tédio que me enferrujava a alma. Pois já estava chovendo dentro de mim.

O primeiro livro que me chamou  à atenção, com a sua lombada cor de ouro, foi A Lua e as Fogueiras de Cesare Pavese, autor italiano, neo realista, um dos clássicos modernos da minha preferência. Tirei – o da estante, delicadamente, como tinha aprendido com minha professora, bibliotecária. Eu acho que o autor nem notou, a não ser   quando  comecei a ler o livro:

“O bom desses tempos era que tudo se fazia de acordo com  as estações, e cada estação tinha seus costumes e seus jogos, conforme os trabalhos  e as colheitas, a chuva ou o sol.”

Botei o romance  delicadamente em cima da mesa e reservei para uma próxima releitura.

O próximo autor que me chamou a atenção foi Stefan Zweig, que estava na mesma prateleira. Trata se  do escritor austríaco  perseguido pelo nazismo e que veio refugiar – se no Brasil, na cidade  de Petrópolis. Chamou – me atenção pela biografia de Maria Stuart, livro que eu já ii e agora punho  o também de reserva para uma futura visita. O estilo de Stefan Zweig é  magnífico e dramático, vale a pena  ler um pouco de suas palavras na orelha do livro.

“Somente quando um ente humano por em jogo todas as suas forças, está realmente vivo para si e para os outros; somente quando dentro dele a alma arde, é que se exterioriza  sua personalidade.”

Agora encontro Pedro Nava, mineiro, um clássico de nossa literatura. Autor  de Baú de Ossos, memórias de seus antepassados  Preciso  voltar ao convívio de suas páginas. Tenho um especial afeto pelo estilo barroco desse grande escritor brasileiro, é uma boa companhia. Tiro o da estante com todo cuidado, como quem está conduzindo um sarcófago, e deixo - o jazer em cima da mesa, sem antes, é claro, não  passar uma vista de olhos pelo inicio do primeiro capitulo do livro:

“- Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais.”

 Vislumbrei na mesma prateleira o titulo: - O sol também se levanta de Hemingway, romance que sempre me impressionou. Reservei – o também para uma nova leitura Hemingway é um dos meus autores prediletos desde   os tempos de Por quem os sinos dobram, Adeus as Armas, e o Velho e o mar.O Sol também se levanta é um livro sinistro, cheio de sangue,  touradas e bebedeiras. E que conta a história de uma geração perdida, desfrutável, logo depois da primeira Grande Guerra. Consegui  pescar, em forma de diálogo, as seguintes frases do romance ao manuseá-lo alheatoriamente, antes de reservá-lo sobre a minha mesa.

“Essa champanha é boa demais para brindes, querida, Não queria misturar emoções. Com um vinho como este. Perde o sabor.”


Pavese, Stefan  Zweig, Pedro Nava, Hemingway, o que esses autores têm em comum, cada qual escrevendo em uma língua diferente? Talvez a sensibilidade  exagerada. Todos suicidaram – se. Mas seus corpos e mentes estão vivos  e exultantes nas páginas de seus livros que me distraíram e me fizeram pensar  nessa tarde nublada que promete chuva..






Genu

desenho: Gervásio

Nunca houve uma mulher como Genu Moraes... pelo menos que eu tenha conhecido até hoje. Certa de sua habilidade e de seu poder em tocar a consciência dos outros, ela quebrou todos os tabus e arquétipos do mito de ser mulher. Sobreviveu a todos. Foi e continua sendo inspiração para várias gerações: “em meu íntimo, eu contenho multidões”, disse-me ela um dia. Mas, além de multidões, ela contém ainda uma coleção inédita de histórias de ontem que consegue trazer para o presente com a mesma habilidade e conhecimento com que fala das histórias de hoje. 

O casarão onde nasceu e viveu momentos gloriosos e cruciais de sua vida, os retratos emoldurados nas paredes, as relíquias da família de governadores e até os pequenos e mimosos frascos de perfumes da mãe e da avó, saltam do passado para ganhar vida e frescor no exato instante em que ela começa a falar nas páginas desse livro. Não há passado que resista ao presente na voz dessa mulher. Nem saudosismo. Isso é coisa para gente velha, e velhice é a única coisa que não combina com Genu Moraes. 

E o que combina com Dona Genu? Ela é uma combinação de contradições: resistente sem ser agressiva, ousada sem ser atrevida, falante sem ser cansativa...jornalista, mulher, mãe, política, apaixonada e combativa (não necessariamente nesta ordem), eis aqui em sua plenitude o retrato de uma mulher atemporal. É isto que o livro apresenta com muita beleza e elegância, bem ao estilo da protagonista. Leitura recomendável para quem quer aprender mais sobre a nossa história e a arte de quebrar as regras da vida com graça leveza e simpatia. Como ela soube fazer tão bem.

(Marta Tajra, para o livro de Kenard Kruel sobre Genu)

Prisão Domiciliar

Cada vez que vou a Teresina sinto que um medo isola as pessoas. O medo carrega um quê de uma cidade sitiada em si mesma. Tanto faz nos bairros de classe média alta ou na periferia. O medo está no que vem da rua, da cidade. E como se a cidade cometesse a antropofagia de si mesma. Esse sentimento sempre me incomodou, mas não sabia traduzi-lo.
O poeta Paulo Tabatinga fez com imagens e mostrou esse medo que toma conta da cidade. O filme faz medo:

domingo, 11 de janeiro de 2015

ABSURDO!

(Edmar Oliveira)

Ainda escrevo sob o peso da emoção misturada à indignação. Porque não tolero a intolerância. E muito preocupado com as apressadas interpretações sobre o atentado da intolerância islâmica radical contra os cartunistas que usavam lápis e pincéis como armas do humor crítico. De um lado surgem opiniões de que os cartunistas eram desrespeitosos à fé islâmica. Estes se escudam no medo, na censura ao humor, na covardia opiniosa para justificar a injustificável resposta terrorista aos pincéis. Outros acusam a invasão muçulmana à Europa como intolerante com liberdade de imprensa. Estes municiam a direita xenófoba.

Aos primeiros, o diretor do semanário Charlie Hebdo, cartunista Charb, assassinado no atentado, já tinha respondido premonitoriamente. Ao ser perguntado, numa antiga entrevista, se não tinha medo de ser morto por publicar as charges radicais foi incisivo: “prefiro morrer de pé a viver como um rato”. Aos segundos ele não hesitaria em dizer, se pudesse, que a direita francesa era também inimiga das charges do jornal e que estaria usando seu cadáver e de seus companheiros para atacar os refugiados muçulmanos, esses também perseguidos pela intolerância radical islâmica nas suas terras.

No calor das emoções não foi a direita francesa, que sempre está nas ruas contra a “invasão muçulmana”, que protestou após o atentado. Foi a esquerda francesa, em defesa do Charlie Hebdo. Porque a direita também queria o atentado por ser tão intolerante às críticas quanto os radicais islâmicos. Mas não hesitará em usá-lo para praticar a sua xenofobia. E deformar as razões do atentado à intolerância aos valores do ocidente. Esta é uma visão tosca e deformada.

Não há valores do ocidente contra radicalismo religioso oriental. Os cartunistas da Charlie Hebdo – Charb, Wolinki, Cabu, Tignous – entre outros, atacavam a direita e o uso das religiões (do deus de Abraão, do Cristo, de Alá ou Maomé) que disparavam a intolerância fundamentalista. A posição editorial da Hebdo é de esquerda. E nesse polo o humor solicita, às vezes, o anarquismo para exercer sua crítica que deve ser ácida e intolerante com a intolerância. Única intolerância permitida numa democracia. Não podemos tolerar a intolerância. Charb dizia que o islamismo tinha que ser dessacralizado, como já acontece com o catolicismo, sob pena de o “sagrado” respaldar o fascismo islâmico.

Também é inaceitável os argumentos religiosos de  que Charlie Hebdo “pegava pesado” com o sagrado das religiões. A posição do semanário era ateia. E o ateu tem o direito de duvidar do sagrado para afirmar suas convicções. O ateu deve também ser respeitado na democracia e tem o direito a livre manifestação. Livre manifestação que deve ser tão sagrada como a vaca hindu, a maconha do jamaicano, a santíssima trindade com pomba do divino cristão, o inominável deus de Abraão único, o profeta Maomé e o Alcorão. Cada um com seu sagrado. E o do ateu é não ter nenhum, a não ser o livre arbítrio. E eu posso achar ridícula a vaca indu, a pomba do catolicismo, a destemperança evangélica, o povo eleito que é racista com o resto da humanidade, alguns barbarismos do alcorão. Não me leia, como não vou na sua igreja. Se acha que o que escrevi ou desenhei lhe ofende, me processe. Mas você não tem o direito a me matar ou justificar a minha morte por minha culpa, minha máxima culpa.

Foi um massacre onde a vítima é a democracia. Os fascistas podem ser cristãos, judeus, muçulmanos, ateus. Eles pregam a não existência de um grupo, uma etnia, uma religião, um povo. São fascistas os fundamentalistas que massacraram os cartunistas, é fascista o partido da direita francesa que quer expulsar os muçulmanos da França. Os primeiros hoje foram eliminados, os muçulmanos podem ser as vítimas de amanhã. E não pode haver um raciocínio simplista que alimente o ódio.

Se eu acho uma charge de mau gosto, acho que me ofende até, tenho que ter a tolerância democrática. Não poso ser intolerante com o que não gosto. Isto é o centro da questão. A democracia só existe na tolerância extrema. Pode ser superada um dia, mas não pelo o atraso do sagrado muçulmano. Os cartunistas franceses perderam a vida para a intolerância. Isto sim, tem que ser intolerável. E não pode ser tolerado ou justificado mesmo por quem não gosta da sua linha editorial, dos seus satíricos desenhos, sob pena da vítima ser a culpada...

Também não foi a cultura muçulmana na Europa que atacou com intolerância os cartunistas franceses. Foi o fascismo islâmico e  não o povo que vem sendo perseguido por este fascismo na sua pátria.

E tem direita e tem esquerda. A intensão de acabar essa polarização é da direita. Para que ela possa exercer o seu fascismo com xenofobia, racismo, ataque aos costumes muçulmanos, usando, inclusive, os cadáveres dos cartunistas assassinados.


Esse o perigo que o mundo corre.




desenhar para morrer:

Tignous

Honoré

Wolinski

Charb

Cabu


ARNALDO ALBUQUERQUE

(Edmar Oliveira)

Ele sempre brincava de morrer. Teve um quase suicídio num acidente de moto e sua perna esquerda despedaçou-se tendo que ficar em cima de uma cama por quase um ano. Neste período produziu um desenho animado que impressionou todo mundo, ganhou prêmios e se perdeu, como tudo que ele fez. Nessa época ele estava no Rio e visitei-o em Botafogo, no apartamento da mãe. Na imobilização quase total dos membros inferiores, agitava o corpanzil, os braços e as mãos. Fazia careta na cara barbuda para que eu entendesse a técnica de animação usando caixas de sapatos, lâmpadas, cartolina, pincéis, tintas. Quando vi o resultado, muito depois, já em Teresina, não acreditei. Aquilo me impactou tanto! Era um carcará que atacava os bruguelos do sertão. Meninos recém nascidos. O carcará virava o Capitão América, representando o colonizador. Uma família, tipo Vidas Secas do Graciliano, andava na seca escaldante. O menino mata o Capitão América com uma baladeira (estilingue). O capitão América, abatido vira a águia símbolo dos americanos. Corte para uma cena onde a família faminta está assando a águia/carcará para matar a fome. Não é genial? E os anos 1970 estavam apenas começando.

Essa é apenas uma pequena aventura desse monstro que foi Arnaldo Albuquerque. A primeira revista de quadrinhos do Piauí foi ele quem fez. A capa era um exército de cartunistas nativos, comandados por ele Arnaldo, que com penas e lápis ameaçavam os heróis dos quadrinhos americanos num paredão com se fossem ser fuzilados. Com o sangrar dos pincéis e das tintas com faziam os cartunistas do Charlie Hebdo ainda agora e foram mortos por isso. Arnaldo atacou primeiro. E morreu no dia seguinte a Wolinski, um de seus heróis.

De outra feita organizou o que hoje se chama happening (é assim mesmo?) que na época nada entendi, mas que teve um resultado interessante. Ele confeccionou bustos de gesso dos amigos (eu era um deles) e espalhou esses bustos em pontos de grande concentração popular na cidade. No busto tinha um cartaz escrito “quebre-me” ao lado de um porrete. Ele filmava as reações. Interessante que no final alguém quebrava o busto e era mais interessante quando conhecia o retratado... Sacaram?

Todos os filmes super-oito da época tiveram a sua câmera. O "Adão e Eva” com Torquato Neto e o Terror da Vermelha – único filme que Torquato dirigiu, inclusive. No filme do Galvão, filmado aqui no Rio, tem uma cena impagável. A câmera de Arnaldo faz um zoom na buceta nua de uma estátua do Jardim de Alá. Arnaldo para o zoom, marca o local com os pés na areia, coloca ketchup na vagina da estátua, volta para o lugar e conclui o zoom. Efeito: surge sangue na vagina da estátua como por encanto e não se percebe o corte. De gênio.

No show musical “Udigrudi” na boate do Zé Paulino, Arnaldo fez uma cenografia detalhista de um cabaré da Paissandu (o baixo de Teresina) no palco. E que girava em dois ambientes. Coisa de profissional absoluto.

E fez muito mais. Desenhou, pintou e bordou para uma época desbundante. Mesmo com ele ainda vivo, sempre confessei que foi o MAIOR da minha geração. Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus habitantes nos enredos de suas lendas.

Uma vez, por causa de uma paixão, comprou um revolver e ameaçava se matar todo dia. No começo, Assai Campelo dormia com ele e se embriagavam juntos. Desistiu e ele não se matou. Era uma brincadeira.

Um pessoal da nova geração o descobriu e os meninos estavam organizando seus guardados já quase perdidos. Fizeram um documentário sobre sua vida já agora perto do fim, que ainda não vi.

Da última vez que o vi foi que entendi a brincadeira de morrer. Estava se matando aos poucos, afogado no álcool. Ontem recebi a notícia de sua morte. Foi como se apagasse um bom pedaço do meu passado. O que posso fazer além de chorar se morro também um tanto na morte dele?

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PS. Um dos meus leitores manda um beijo no coração, Grande Arnaldo. Nós nos amávamos tanto naqueles tempos!








1000TON


UM VAGO VAZIO


Não consigo imaginar a solidão 
De um rio seco
De um pássaro sem ninho

De uma casa vazia
De um riacho sem peixe
De uma lagoa no deserto
De um vaqueiro sem gado
De cotovia sem primavera
De melão de São Caetano sem cerca
De lobisomem sem a existência do medo
Há em mim um vago vazio
E nele cabem todos os projetos
Minha alma é uma folha de rascunhos
Posso imaginar poemas
Dispersos versos
Discos díspares
Canções cansadas
Em dias como os de hoje
Posso ter as certezas dos que morreram
Fazer os planos de voos dos anjos sem asas


(Climério Ferreira)

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desenho: Gabriel Archanjo

Agora, um retrospecto do século


Agora retrospectivas de dez em dez anos para homenagear o fato de que dois e dois são cinco. Em 1930 Rachel de Queiroz escreveu o 15 sobre a seca do nordeste naquele ano. Estamos em 2015 e a única certeza que tenho é que não morri cedo, como queria o poeta. Portanto, de lá pra cá, falemos do que vivi ou devia de ter. Em 1925 a coluna Prestes sitiou Teresina do Natal ao Ano Novo e Juarez Távora é capturado ou se entregou às forças legalistas do Piauí. Em 1935 a intentona comunista tornou-se a aventura mais derrotada numa briga dos tenentes que marcharam juntos na Coluna de 10 anos anteriores. Em 1945 acabava a guerra mundial, a ditadura Vargas e nem sei se seu Moisés conhecia a dona Águeda, mas a guerra tinha acabado na Europa e eu nem existia ainda nos Palmeirais. Em 55 começava a guerra do Vietnam e eu ainda não entendia nada. Em 1965 os Beatles receberam o título de cavaleiros ingleses e éramos todos felizes até matarem o Edson Luiz e lembrar que o golpe iria durar muito mais que nossa juventude. Em 1975 cheguei ao Rio de Janeiro, o Rio e a Guanabara se fuderam num só estado, a ditadura estava em plena atividade reforçada pela deposição e assassinato do Allende e incremento da ditadura de Pinochet . Em 1985 a ditadura acabou, mas a gente teve que engoli o Sarney, que não tem coragem de morrer até hoje. Em 1995  a Socialdemocracia de fachada toma conta do poder e atende os predicados do Consenso de Washington começando a venda do templo e entregando o patrimônio público. Um terremoto no Japão sacode a ilha daquele povo miúdo, o que acontece de vez em quando. Em 2005 ainda estávamos sacudidos pelo atentado de 11 de setembro de 2001, quando, entre nós, um deputado da base aliada de um governo, que era a esperança do povo brasileiro, denuncia que  membros do partido pagavam uma mesada e inicia o escândalo que ficou conhecido como mensalão e vem rolando até hoje, mostrando as entranhas de uma corrupção sistêmica. Morre um papa que vai ser santificado e assume um outro mais reacionário, que inventa a renúncia e permite o surgimento de um papa argentino que é uma liderança mundial. E em 2015, cá estamos com a maior seca no sudeste, que nos ameaça com falta d’água nas torneiras e promete ser o 15 do sul maravilha. O mar vai virar sertão. Raul Castro e Obama fazem as pazes sob as bênção do papa Chico, que faz seu primeiro milagre e caminha para se tornar a maior liderança desses novos tempos. Um papa? Também não acreditei, como não queria acreditar na seca do sudeste. Espero que apareça uma nova Raquel para escrever o 15 do novo século.

Ué, já se passaram cem anos?

(Edmar Oliveira)

Nise do MÁXIMO


O PAI DO CAPITALISMO


No povoado Caldeirãozinho (município de Anísio de Abreu), havia uma bodega maior que o mundo, muito maior que o mundinho do menino do Campo Formoso que gastava o tempo campeando nuvens e aprisionando vaga-lumes em frascos de penicilina.Ao contrário das outras bodegas onde se vendia o essencial, o "comércio" do Capitãozinho tinha de um tudo: tecido,perfume, brilhantina, espelho, canivete corneta, pólvora,chumbo,espoleta,aguardente alemã,pílulas de vida do dr. Rossi, agulha,gilete e uma versidade de bebidas nunca vistas.O mais bonito de tudo era o petromax cuja luz lembrava o luar em céu de setembro. Um dia, seu Liberato falou: "O capitãozinho é um capitalista possante". Se o velho falou,era. O Capitãozinho se foi e,com ele,um tempo de mágicas descobertas. Restou o casarão rústico acoitando os fantasmas dos bêbados líricos...

(Cinéas Santos)




CONQUISTANDO A IDADE DAS PEDRAS


CONQUISTANDO  A IDADE  DAS  PEDRAS
NUM   VENTO  CORUSCANTE
NO  CABO   DA  MINHA ADAGA
ONDE  ESTA    ESCRITO  O  TEU NOME
PARA  NÃO  ESQUECER  O CAMINHO 
DA VEIA BLUES VERMELHA
ENQUANTO  A CHUVA  FORTE  LEVA  EMBORA
OS  CACOS  DA MINHA  VISÃO  ATÉ A  TUA PORTA
AO   FUNDO   ALGUEM
CANTA  UMA CANÇÃO  NO  CANTO  UM  HINO  
ALGO  LISERGICO  E TURBULENTO COMO
BAND  ON  THE  RUN
BAND ON   THE  RUN

(Lázaro José de Paula)

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ILUSTRAÇÃO: AMARAL

Fruto