(Geraldo Borges)
O livro é de certo modo antropomórfico. Pois tem algumas
características humanas. Como por exemplo, orelha, e, além do mais, se perfila
de pé (olha aí a redundância) em uma prateleira, no recinto de uma biblioteca.
O livro também tem lombadas, lombada fina, lombadas grosas. O livro pode ser um
biscoito para o mais fino paladar, e também um tijolo capaz de construir uma
catedral.
A história do livro é muito antiga. Talvez se não
tivéssemos incendiado a biblioteca de
Alexandria soubéssemos mais coisas a seu respeito. O livro já foi chamado
de rolo, de bíblia que é o livro dos
livros, uma verdadeira biblioteca. Diz-se muita coisa dos livros. A Inquisição disse cobras
e lagartos sobre eles.
Durante a história do livro muitos foram censurados, e seus
autores levados às barras do Tribunal. Mas como é bonito ver uma criança
entrando na escola com um livro debaixo
do braço.
Escrever livros não tem fim, diz o livro. Mas o melhor do livro é que ele tem vida e dá
energia ao leitor. Claro que existem livros que dá sono. Mas quantas pessoas
estão precisando dormir. Se fossemos ficar aqui falando de livros terminaríamos
escrevendo um livro. Livros, livros a mancheia, que manda o povo pensar.
Eu tive a sorte de gostar de livro desde pequeno. Sou do tempo em que se encapavam livros, com papel
ordinário para evitar que o livro se estragasse. Era fácil encapar um livro. Hoje
as pessoas não fazem mais isso. Um livro encapado escondia o titulo e o
conteúdo. A Carne, de Júlio Ribeiro, deve ter sido encapada por muitas
adolescentes que moravam em pensionato.
Antigamente o livro
saia virgem do prelo, quero dizer com as paginas lacradas. Era preciso uma
espátula para que o leitor no ato e ler,
que é um ato altamente sensual, fosse
guilhotinando as páginas, capítulo por
capítulo, num ritual que foi esquecido na história da leitura. Outro objeto que
está incorporado a história do livro é o marcador de texto. Mas também existe
pessoas que marcam a pagina, onde
ficaram para depois continuar a leitura, com a unha: outros menos zelosos,
dobram a pagina do livro. Cada um cuida de seus livros como quer. Inclusive há
pessoas que compram livros apenas para enfeite: uma jóia que, enfaticamente,
enfeita uma sala. O livro enriquece o intelecto. Mas, também tem o seu lado
obscuro. Cada leitor é uma leitura. Cada linha é uma entrelinha, onde um leitor
vê uma metáfora, alguém pode vê apenas
um expressão denotativa.
Bom, como eu disse no alto dessa coluna, o livro é
antropomórfico, tem roda pé, folha de rosto. Muitas florestas já foram
colocadas no chão por causa dele. Em compensação ele abriu muitas lareira no entendimento da
humanidade. Livros geram livros. Os romances de cavalaria fervilharam a cabeça
e o coração de Dom Quixote que gerou o
Fidalgo de la Mancha, que gerou,
por sua vez, o romance moderno, com o seu herói bovarista.
A história do livro é a história do pensamento humano. Já
pensou o que seria do Brasil se não houvesse analfabetos. Se todo mundo
conhecesse o livro por dentro e por fora. Soubesse o que é um capítulo, um
parágrafo. Não soubesse apenas o que é livro de ponto, o que é guarda-livros.
Voltando a dizer que o livro é antropomórfico
dou testemunha que a leitura transfigura. É fácil distinguir
um homem de um só livro, de um
homem enciclopédico: um tem as feições mais severas, o outro mais acolhedora.
Uma nação se faz com homens e livros. Este mote de
Monteiro Lobato é bastante conhecido.
Mas onde estão os homens, onde estão os
livros? Meu reino por uma biblioteca. As bibliotecas estão apodrecendo nos
porões úmidos de algum reino encantado.O
mundo da velocidade está botando o livro para
escanteio. Quem quiser escrever hoje em dia tem de entender de tatuagem, se transformar em seu próprio livro,
escrever em sua própria pele com o seu próprio sangue. Juro que pouco leitores
estão me entendendo. Por isso mesmo vou fazer ponto final. Eu sou um livro.
Talvez não seja um livro aberto. Mas quem sabe um dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário