domingo, 19 de outubro de 2014

O Livro

(Geraldo Borges)

O livro é de certo modo antropomórfico. Pois tem algumas características humanas. Como por exemplo, orelha, e, além do mais, se perfila de pé (olha aí a redundância) em uma prateleira, no recinto de uma biblioteca. O livro também tem lombadas, lombada fina, lombadas grosas. O livro pode ser um biscoito para o mais fino paladar, e também um tijolo capaz de construir uma catedral.
A história do livro é muito antiga. Talvez se não tivéssemos  incendiado a biblioteca de Alexandria  soubéssemos mais  coisas a seu respeito. O livro já foi chamado de rolo,  de bíblia que é o livro dos livros, uma verdadeira biblioteca. Diz-se  muita coisa dos livros. A Inquisição disse cobras e lagartos sobre eles.

Durante a história do livro muitos foram censurados, e seus autores levados às barras do Tribunal. Mas como é bonito ver uma criança entrando na escola com um  livro debaixo do braço.
Escrever livros não tem fim, diz o livro. Mas  o melhor do livro é que ele tem vida e dá energia ao leitor. Claro que existem livros que dá sono. Mas quantas pessoas estão precisando dormir. Se fossemos ficar aqui falando de livros terminaríamos escrevendo um livro. Livros, livros a mancheia, que manda o povo pensar.

Eu tive a sorte de gostar de livro desde pequeno. Sou do  tempo em que se encapavam livros, com papel ordinário para evitar que o livro se estragasse. Era fácil encapar um livro. Hoje as pessoas não fazem mais isso. Um livro encapado escondia o titulo e o conteúdo. A Carne, de Júlio Ribeiro, deve ter sido encapada por muitas adolescentes que moravam em pensionato.

 Antigamente o livro saia virgem do prelo, quero dizer com as paginas lacradas. Era preciso uma espátula para que o leitor no  ato e ler, que é um ato altamente sensual,  fosse guilhotinando  as páginas, capítulo por capítulo, num ritual que foi esquecido na história da leitura. Outro objeto que está incorporado a história do livro é o marcador de texto. Mas também existe pessoas que marcam  a pagina, onde ficaram para depois continuar a leitura, com a unha: outros menos zelosos, dobram a pagina do livro. Cada um cuida de seus livros como quer. Inclusive há pessoas que compram livros apenas para enfeite: uma jóia que, enfaticamente, enfeita uma sala. O livro enriquece o intelecto. Mas, também tem o seu lado obscuro. Cada leitor é uma leitura. Cada linha é uma entrelinha, onde um leitor  vê uma metáfora, alguém pode vê apenas um expressão denotativa.

Bom, como eu disse no alto dessa coluna, o livro é antropomórfico, tem roda pé, folha de rosto. Muitas florestas já foram colocadas no chão por causa dele. Em compensação  ele abriu muitas lareira no entendimento da humanidade. Livros geram livros. Os romances de cavalaria fervilharam a cabeça e o coração de Dom Quixote que  gerou o Fidalgo de  la Mancha,  que gerou,  por sua vez, o romance moderno, com o seu herói bovarista.

A história do livro é a história do pensamento humano. Já pensou o que seria do Brasil se não houvesse analfabetos. Se todo mundo conhecesse o livro por dentro e por fora. Soubesse o que é um capítulo, um parágrafo. Não soubesse apenas o que é livro de ponto, o que é guarda-livros. Voltando a dizer que o livro é antropomórfico  dou testemunha que a leitura transfigura. É fácil  distinguir  um homem de um só livro,  de um homem enciclopédico: um tem as feições mais severas, o outro mais acolhedora.


Uma nação se faz com homens e livros. Este mote de Monteiro  Lobato é bastante conhecido. Mas onde estão  os homens, onde estão os livros? Meu reino por uma biblioteca. As bibliotecas estão apodrecendo nos porões úmidos de algum reino  encantado.O mundo da velocidade está botando o livro para  escanteio. Quem quiser escrever hoje em dia tem de entender de  tatuagem, se transformar em seu próprio livro, escrever em sua própria pele com o seu próprio sangue. Juro que pouco leitores estão me entendendo. Por isso mesmo vou fazer ponto final. Eu sou um livro. Talvez não seja um livro aberto. Mas quem sabe um  dia.




Nenhum comentário: