domingo, 26 de junho de 2016

HISTÓRIAS DE UM CONTADOR DE HISTÓRIAS






Chamado para as comemorações de aniversário do CAPS Torquato Neto, convidei o produtor cultural e cineasta Marcus Fernando que está terminando de co-dirigir um filme sobre o Anjo Torto. Achamos que os usuários e técnicos do CAPS podiam ouvir mais sobre seu patrono. A fala do Marquinhos foi interessante, inclusive pra mim, e ele ofereceu o filme, quando pronto, para uma sessão no CAPS.

E eu me descubro como um guerreiro quixotesco destruidor dos hospícios onde Torquato esteve internado: na tentativa do Engenho de Dentro no Rio e no efetivo desmonte do Sanatório Meduna em Teresina. Torquato, que foi um amigo de juventude e me fez seu álter ego no “Terror da Vermelha” (filme em super-8 de 1972) foi hóspede dos hospícios que coube a mim lutar contra as masmorras manicomiais. Sobre o primeiro escrevi “Ouvindo Vozes” (casa ed. Vieira & Lent, 2009, Rio) e sobre o segundo escrevi “von Meduna” (Oficina da Palavra, 2011, Teresina).

Algumas historinhas de como Torquato enfrentou por dentro o monstro manicomial de então:

1. Internado numa enfermaria tradicional do Engenho de Dentro e submetido aos “sossega-leões” da época, foge após poucos dias de internação. No dia seguinte encontra com o grande médico antimanicomial da época – Dr. Oswaldo dos Santos, figura a quem devemos um reconhecimento histórico e criador da Comunidade Terapêutica do Engenho de Dentro – que faz um bilhete solicitando que Torquato fosse internado desta vez em sua comunidade.

2. Mesmo nessa comunidade Torquato aponta as contradições manicomiais – nas quais a reforma iria combater muito lá na frente: “Aqui são todos negros, marginais, das classes C e D com quem vou me haver” (a citação é de memória e não corresponde ao original que não me dei ao trabalho de conferir) – com essa afirmação ele colocava a doença “entre parênteses” (com fez Basaglia) para denunciar a internação das camadas excluídas da população. Outra dele citado também de memória: “São loucos esses psiquiatras, não deixam a gente comer de garfo e faca, mas dão gilete pra gente fazer a barba”. Ou ainda checando o próprio médico transformador da época (porque todos nós temos contradições): “amanhã vou ter uma conversa séria com Dr. Osvaldo”.

3. No Meduna, tive a oportunidade de conferir o ensaio fotográfico que Antônio Noronha fez com Torquato para a revista Navelouca (número único, editada após a morte de Torquato por Wally Salomão). Numa internação voluntária vi um Torquato muito à vontade com os loucos, que carregavam sua máquina de escrever, mesinha e cadeira para onde ele queria ir (mudava de lugar para evitar o sol escaldante do Piauí, procurando a amenidade de uma sombra, que se deslocava com o movimento do sol). Diria mesmo, que naquele longínquo 1972 parecia estar assistindo um grupo terapêutico literário que tive a ousadia de cometer depois nas oficinas do Espaço Aberto ao Tempo.

Interessante como não tinha me dado conta de coisas tão coincidentes e tão evidentes que saltam aos olhos. Mas nossa mente é assim mesmo, o óbvio – às vezes – está muito oculto e custamos a perceber. Aqui lembro que só muito mais tarde, já na minha prática médica, pude entender o que o Torquato queria dizer quando o mato no filme de 1972. O personagem assassinando o autor – o que parece transparente agora – me foi incompreensível, talvez porque inaceitável, por muito tempo.
Por último, digo que a festa serviu mais a mim que aos seus organizadores. E talvez um fato tenha desencadeado essas associações.

Já que o Marcus Fernando iria falar do patrono, a mim coube apenas falar do nascimento daquele CAPS. Num certo momento lembrei que o nome do CAPS tinha surgido na versão que apresentei. Fui contestado veementemente porque vários técnicos daquela época tinham outra versão para o surgimento do nome. Acho que as versões rodeiam o fato, cada um com as razões de sua história.

Mas o certo é que não foi por um passe de mágica o surgimento desse CAPS na comunidade. Ele é um prolongamento de um Hospital Dia, que já tinha se esgotado, enquanto modelo, mas tinha muitas resistências dos técnicos antigos em saírem do hospício. Foi preciso mesmo tirar alguns, o que foi muito doloroso. Depois, se havia consenso com a estrutura da Coordenação de ampliarem-se os CAPS na cidade, o gestor maior não quer fazer uma mudança apenas de lugar (na verdade ele não entende a importância que tinha essa mudança de lugar). Foi necessária uma operação casada. Tínhamos que receber alguns pacientes da Casa Dr. Eiras de Paracambi para uma Casa de Passagem, antes deles irem para as Residências Terapêuticas em comunidade. Blefamos mais uma vez: dissemos que tinha o espaço, desde que o CAPS saísse – pois colocaríamos os pacientes de Paracambi na casa onde funcionava o Hospital Dia. E esse se transformaria em CAPS na comunidade. Foi feito a duras penas.

Falamos aqui “blefamos mais uma vez” porque o nosso Pronto Socorro Psiquiátrico vinha se deteriorando absurdamente e insistíamos para uma saída do PSP para um Hospital Geral (pensamos no Hospital Salgado Filho o que se realizou em Del Castilho). Houve um incêndio no PSP e tivemos que retirar em emergência os pacientes internados. Foi uma operação complicada que entrou noite a dentro, mas só um paciente evadiu. Transferimos todos os outros para as enfermarias. Ficamos sem Pronto Socorro e o do Engenho de Dentro era o maior da cidade. Deu problemas. Vieram correndo tentar consertar o que não fizeram em vários anos. Insistimos que podíamos reformar com menor custo uma ala do PAM Rodolfo Rocco em Del Castilho que já conhecíamos. Falar em menor custo é convencer gestor. Depois espalharam que eu tinha mandado tocar fogo no antigo Pronto Socorro. Não foi verdade, mas não me incomodei com a versão. Tinha o desejo grande de sair e este foi realizado. Essas histórias estão no meu livro “Ouvindo Vozes”.

Creio que se não tivesse escrito esses livros a história da nossa gestão já estaria esquecida e as versões construídas tomado o lugar do fato. Não digo que o que conto é o fato, mas uma versão de como me aproximei do fato. E todas são assim...

PS1. Manoel Olavo Teixeira tem um trabalho acadêmico sobre Oswaldo dos Santos que, creio, ainda não foi publicado em livro.

PS2. Para um aprofundamento da obra de Torquato Neto: Torquatália em dois vols. de Paulo Roberto Pires, Rocco, edição esgotada.
Tem "A carne seca é servida" de Kenard Kruel pela Zoadíca, saindo em nova edição.
E a polêmica biografia de Tonhinho Vaz em nova edição também.
"Terror da Vermelha" pode ser encontrado em partes no You Tube. A qualidade é bem ruim.
O filme de que falou o Marcus deve estar pronto em abril, maio de 2017.

(Edmar Oliveira) 



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