Carne de Sol de Campo Maior. Abaixo: baião de dois, maria izabel com colorau, arroz de carreeteiro, paçoca com cheiro verde e manteiga de garrafa. |
(Edmar Oliveira)
Carne de sol
é por excelência um dos maiores ingredientes da culinária nordestina. Foi a
fórmula encontrada para conservar a carne após a morte da bezerra, que não foi
inteiramente consumida. E um acompanhamento nutritivo para vaqueiros que campeavam
gado por semanas, alimentando-se da carne seca com rapadura. Fontes da glicose
e proteína que o organismo precisa.
A carne de
sol ainda é vista em comércios na periferia de Teresina em mantas de gado,
carneiro ou bode a secar no tempo e no sol. Penduradas nas meias-águas. Que nem
precisam do sol intenso, ficando ao calor do dia. As carnes são salgadas e
espichadas com talos de coqueiros flexíveis para não deixar a superfície
embolar e garantir a secagem por igual no inclemente calor. No município de
Campo Maior, o maior produtor de carne de sol do Estado, são várias barracas
com as mantas dependuradas, que o freguês pode escolher e mandar fazer na hora.
Servida com macaxeira e manteiga de garrafa, baião de dois, paçoca, maria
izabel, farofa amarela e salada de verduras, é de se apreciar e comer até “dá
na fraqueza”.
Vamos aos
termos regionais traduzido do piauiês: macaxeira
por aqui se chama de aipim; o nosso baião
de dois é “risoto de feijão” sequinho e soltinho. Com feijão de corda, sem
queijo (já estão fazendo um baião molhadinho e com queijo, tipo italiano, mas
isso não é a receita original). Existe também um baião de dois com feijão verde.
O de corda fica moreninho. O verde, branquinho. Mas os dois são sequinhos e
soltinhos (tanto o arroz quanto o feijão). Paçoca
é uma mistura de carne de sol misturada com farinha pisada em pilão de madeira,
geralmente por duas cabrochas a suar. Hoje já se faz paçoca no processador, mas
não é o original. Maria Izabel é um
“risoto de carne de sol”, mas também com a carne e o arroz soltinhos e
sequinhos (já se faz uma imitação molhada do italiano, com arroz preguento.
Nada a ver com o original). Com colorau ele fica amarelo parecendo açafrão (alguns restaurantes já usam o açafrão). Farofa
amarela é farinha de mandioca amarelada na manteiga de garrafa e torrada. Salada de verdura é apenas tomate ainda
amadurecendo (diz-se divês), alface, pimentão e cebola com cheiro verde e
coentro, que antigamente eram as “verduras” que davam no quintal. Manteiga de garrafa é uma manteiga de
nata que fica derretida no calor do sertão (aqui, no inverno, fica massenta e
não sai da garrafa). Dá na fraqueza
é uma expressão bem piauiense que significa que matando a fome e indo um pouco
além se pode matar a fraqueza que a acompanhava. Mas tem o paradoxo de “dá na
fraqueza” e deixar o cabra imobilizado de tão saciado que fica. Fica mole que
parece tá fraco.
A carne de
sol é uma espécie de carne seca. O charque é uma carne seca feita diferente da
carne de sol, processo conhecido como charqueado: a desidratação da carne é
feita apenas pelo sal, com várias trocas, durante o tempo de uma semana.
Depois, já completamente desidratada pelo sal a carne é lavada e posta num
processo de secagem ao ar livre (aqui o sol pode não fazer parte). Por isso o
charque é o processo do sul e a carne de sol o tipo comum de carne seca do
nordeste. Tem um charque avermelhado que você encontra no supermercado, mas
esse é feito na indústria com conservantes artificiais, além do sal.
Chama-se
manta, tanto no sul como no norte, porque os peões e vaqueiros tinham uma forma
primitiva de secagem. A carne fresca, aberta, era colocada entre a sela e o
pelo do cavalo, onde secava na prensa do peso do cavaleiro e salgava no suor do
animal. Daí o termo manta: a carne substituía a manta da montaria que fica
entre a sela e o cavalo. Do charque, o arroz de carreteiro gaúcho é o prato
mais conhecido, com feijão e charque, quase uma mistura do nosso baião de dois
com maria isabel. Estamos mais perto do que se imagina. Mas o que é distante o
carioca juntou num prato que é a cara do Rio: carne seca com abóbora. O charque
vem do sul e a abóbora do nordeste. Coisa de carioca.
Depois da
refrigeração os restaurantes inventaram uma carne de sereno: que é salgar à
noite, ser exposta ao ar livre na noite quente e depois guardada em geladeira.
É uma falsa carne de sol, que fica mais saborosa, porque não tão seca é mais
suculenta e com cor mais agradável. Mas é falsa. Só resiste na geladeira. A
garne de sol, assim como o charque, dura por muito tempo ao relento.
A carne seca
é tão entranhada na nossa cultura que Torquato Neto fez dela poesia:
“Carne seca na janela
Alguém que
chora por mim
Um carnaval
de verdade
Hospitaleira
amizade
Brutalidade,
jardim”
Aqui em
Geléia Geral, com Gilberto Gil. Doutra feita, com Carlos Pinto, em Dia D, numa
frase memorável, que também é título da biografia que lhe fez Kenard Kruel:
“há urubus
no telhado
e a carne seca é servida
um escorpião
enterrado
na sua
própria ferida
não escapa,
só escapo
pela porta
da saída
todo dia é o
mesmo dia
de amar-te,
amor-te, morrer
todo dia
menos dia
mais dia é
dia D
3 comentários:
Conheço alguns desses pratos,mas só na versão repaginada(o que é uma pena...uma perda...enfim, é o que tem pra hoje, como se costuma dizer). Dos que conheço, o que mais gosto, é o Baião de dois( traduzo como dança gustativa do feijão com arroz),uma delícia!mas sempre fiquei intrigada com essa Maria Izabel, nunca soube o que era; mexia com a minha imaginação, ficava pensando...o quê ou quem é essa iguaria que todos querem comer? ...
Sensacional o texto e a mistura de paladares com poesia!
Lelê
Dia das Mães tivemos aqui em casa (em Curitiba!), trazido por minha sogra querida, "marizabel" de carne de sol de carneiro com a iguaria campeão de audiência dos coxas brancas (meu genro): o churrasco de costela ripa. Demais! Ah, e a 4 mil km de Campo Maior, também tivemos mousse de bacuri!!!... Eu já reclamei que minha amada idolatrada sogra e estimado sogro estão vindo pouco aqui visitar filha e netos. Uma vez por ano é saudade demais para nós....sniinf!
Salivo de inveja por aqui. Não há melhor cardápio pra este domingão frio por essas bandas. Regado com boa cachaça e boa conversa, para ser apreciado devagar. O sol abrasador do Piauí e outros estados nordestinos dá sabor especial à carne de sol produzida. Talvez também influencie na qualidade da carne e do leite. Daí ter surgido por aí a manteiga de garrafa, o queijo coalho e outras delícias que integram o cardápio.
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