(Luiz Horácio)
"A forma
esférica da bola é exatamente o símbolo da imprevisível casualidade", afirma Peter Handke.
Calma, apressado leitor, não confundo Backes com Handke, calma... voltarei ao
austríaco daqui a pouco.
O motivo: Handke assim
como Backes, também escreveu um livro
que traz o futebol, melhor dizendo, os bastidores do futebol nos
bastidores de suas narrativas. O autor chega à beira do túnel, e por enquanto O último minuto é “o nosso grande livro sobre futebol.”
Backes, porém, é mais antropológico em sua análise, mais cientista social, mais
arquibancada, menos gramado. E por esse viés, O último minuto é obra prima.
Mas eu disse
bastidores. Isso mesmo, porque em ambos, sob a luz dos holofotes, o leitor
encontrará a angústia.
O último
minuto
apresenta a desgraça de Yannick Nasyniack, apelido: João, o Vermelho,
descendente de alemães e russos. João vive seus dias iguais em um presídio no
Rio de Janeiro. Cometeu um crime que será revelado ao final do livro.Crime, que
em determinados momentos ele chega a questionar sua autoria.
A narrativa,
aparentemente simples, se sustenta na conversa entre Yannick e um jovem
missionário.
A vida, do início ao
fim, do condenado é esmiuçada detalhe por detalhe, Backes marca o passar do
tempo com a ampulheta do futebol. Cita vários jogadores, fatos do mundo
futebolístico sem esquecer seu patético folclore.
Tamanha preocupação em
situar o leitor, Backes por vezes chega a ser didático, esmiuçando espaço,
tempo e sobretudo a vida de Yannick, contrasta com a rara "documentação"
acerca do missionário que ouve e a seguir contará a história.
"A
apropriação talvez aleivosa continua, mas sinto que preciso dar, pelo menos
oficialmente, um crédito maior a meu Yannick, e juro que tudo aquilo que faço,
tudo aquilo que fiz desde o princípio, inclusive a maior ingerência de caráter
erudito em seu discurso, foi e é apenas para sua maior honra e glória."
Ao leitor caberá aguardar o apito final, onde será informado sobre a,
também, angustiante vida do narrador.
O dito acima não empana
em nada o excelente trabalho de Marcelo Backes. Vale ressaltar, e seus livros anteriores testemunham, O último minuto é a comprovação de um
autor na contramão da sonolenta e acomodadíssima literatura brasileira
contemporânea. Backes não engrossa as fileiras do politicamente correto,
felizmente, e é de nossos raros autores a equilibrar com excelência a abordagem
espaço/tempo.
O último minuto vai muito além
das “eruditas teses”que o colocarão no
rol dos romances narrados por presidiários. Poupem-me.
Não tenho dúvidas que
textos e textos com tal argumento ocuparão páginas e páginas, mas infelizmente
é assim, vício de professor que pode ser comprovado na imensidão de publicações
sobre a obra de Machado de Assis, noventa
e nove por cento diz a mesma coisa.
Deixo claro que também
sou professor, e nesse rol me incluo,
embora busque distância cada dia maior desse imenso bando de perroquets
fatigués.
O autor situa o
leitor, apresenta os cenários, inicialmente a origem de Yannick ,a
comunidade de Linha Anharetã, no interior missioneiro, localidade bastante familiar aos leitores dos livros de
Backes.
A
localidade é referida sempre envolta em
tules de saudade, sofrimento,
rusticidade, violência e angústia.
Violência
e angústia. Vem de Anharetã a eficácia da violência para resolver problemas
supostamente sem solução.
“Tu
já matô os gatinho?
Ouve-se
e o ouvido dói.Mal se conhece o estranho que conta, que fala, que narra uma
arenga sem fim, jurando que foi assim que tudo começou. Pois é, o pai voltava
da lavoura, a família já estava à mesa, as panelas fumegavam, que travessas não
havia. E ele, o estranho, o que conta e jura, é obrigado a se levantar, ir ao
galpão, pegar os recém-nascidos, olhos fechados, nada do mundo ainda, a não ser um punhado do precário
de deduções às cegas, seis num saco, levá-los pra roça, miados mínimos,
lamentos minguados de quem não sabe o que se passa e apenas sofre pela mãe só
teta tão longe de repente, e bater todos contra
moirão da cerca antes de jogá-los nas macegas, já mudos, calados pra
sempre.”
E a
violência se faz presente ao longo lda
narrativa, vem de Anharetã, Yannick a utiliza de todas as formas e aos poucos o
leitor perceberá que o jovem missionário também será contaminado.
Arrisco
dizer que é uma narrativa seca, violenta, por vezes tosca, adequada aos
cenários, Anharetã e Rio de Janeiro, ou você, inocente leitor, pensa que a
cidade maravilhosa é um mar, um mar de rosas?
O fato
de ser uma narrativa áspera também não diminui em nada os méritos de O
último minuto, acrescenta mais curiosidade além de deixar bem exposta a
coragem/qualidade de Marcelo Backes.
Mas
afinal de contas o que tem nesse livro que insisto em enaltecer, você deve
estar se perguntando, exigente leitor.
Tem,
sobretudo o talento do autor para equilibrar a rusticidade verbal de Yannick e
o seminarista com a sutileza utilizada
para trafegar entre os constrastantes
mundos vividos pelo presidiário, Anharetã, Suíça, Rio de Janeiro.
Mundos
que de uma maneira ou outra foram traídos por Yannick,
Anharetã
, abandonada;Suíça onde deixou o cheiro da mangueira do gado pelo vestiário do
estádio de futebol e o Rio onde cometeu seu deslize fatal. Ou
seriam...deslizes?
A trama? Sim, a
trama, quase esqueço. Grato pelo puxão de orelhas, tosco leitor.
Yannick deixa
Anharetã e vai viver na Suíça, peão, trabalhador braçal, sem
conflito abandona mulher e filho. Brasileiro e ex-jogador de várzea, não
encontra obstáculo capaz de impedir que se torne técnico de futebol. Ao
retornar ao Brasil, Rio de Janeiro, continuará no ramo.
Nunca
esquecendo que Yannick narra sua história de uma cela de presídio. A vida desse
presidiário vem a ser a parte banal do livro, cuja riqueza reside nas digressões do presidiário e do narrador. O
futebol aparece como a grande metáfora. Depois da metade do livro é que a
subjetividade de Yannick bem como a do missionário saltam ao primeiro plano
expondo as semelhanças angustiantes de ambos.
Tão
semelhantes que as vozes por vezes chegaram a confundir este tosco leitor.
E por
falar em angústia, não eu não esqueci do que anunciei ao início deste texto.
O
medo do goleiro diante do pênalti é o título brasileiro de um livro de
Peter Handke. A história de Joseph Bloch, goleiro que perde seu lugar num time
de Viena, após discussão com árbitro e suspensão aplicada pela diretoria. Nada
a fazer , anda pela cidade, vai ao cinema e acaba dormindo na casa da
bilheteira. Na manhã seguinte, sem motivo, a estrangula. Por um tempo leva vida
normal até mudar-se para a pensão de uma amiga onde aguardará, angustiado, o
fim da sua liberdade.
O
último minuto vai além do ganhar e perder, chega ao sobreviver. Superar perdas
e a incapacidade de preencher vazios. Tudo em precisas 220 páginas.
O último minuto e
O medo do goleiro diante do pênalti vão aos poucos deixando a mostra as
entranhas de Joseph e Yannick.
Ambos
aguardam julgamento, ambos admitem suas culpas. Angústia e culpa, pesadelos
inseparáveis.
Handke e
Backes, Backes e Handke. Superiores...extremamente superiores.
Seria
responsabilidade da forma esférica da bola essa louvável casualidade?
TRECHO
Já me chamando e
colorado, um sorriso ralo no rosto, ele insistia em dizer que o futebol desde
sempre havia sido uma metáfora formidável, uma comparação como nenhuma outra
dava conta das potencialidades da vida real. O futebol era o verdadeiro teatro
da existência, o maior circo de todos os tempos, a última representação sacra
da contemporaneidade. Um rito, no fundo, a religião popular dos que ainda não
haviam se entregado toscamente ao neoevangelismo, e bebiam seu pão e seu vinho
em doses fartas de cerveja e salgadinhos vendo a bola rolar.
O futebol era o
esperanto popular, a linguagem universal em que as pessoas podiam aplaudir o
preço do bilhete de entrada, e ainda por cima de um concerto do qual
inusitadamente compreendiam todas as notas. Sim, o futebol era o único lugar em
que até ao mais macho dos homens era permitido se mostrar histérico, segundo
ele, uma das poucas manifestações capazes de mostrar com fidelidade um bom
pedaço do universo.
Ainda que o mesmo
futebol, seu futebol, seu amado futebol, estivesse cada vez mais dessacralizado
pelos interesses sempre escusos da moeda e das negociatas, uma boa partida
continuava sendo uma imitação do mundo, com suas regras, seus uniformes, seus
aliados e seus inimigos, divididos em times.
AUTOR
É escritor
e tradutor brasileiro nascido em Campina das Missões (RS), em 1973. Em sua
obra, destacam-se os títulos: Estilhaços ( 2006) maisquememória
(2007) e Três
traidores e uns outros (2010). Doutor em germanística e
romanística pela Universidade de Friburgo, Backes verteu ao português
obras de Arthur Schnitzler, Franz Kafka, Hermann Broch e outros.
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