Uma criança atravessando a rua para entrar no ônibus
que a levaria de volta para casa. Era isso, ou quem sabe, apenas mais uma
criança atravessando a rua. Uma criança atravessando uma rua movimentada. Das
mais movimentadas. Não posso afirmar se tinha nove ou dez anos. Talvez onze. Não
sei. Não lembro. Quero esquecer. Não consigo.
Não lembro ao certo o horário, mas era meio da tarde, disso tenho certeza.
Fazia tempo, não sei ao certo quantos anos, nós não
morávamos juntos, ele vivia com a inocência e eu dividia o tempo com a culpa.
Culpa … era uma criança, uma criança atravessando a
rua, e eu…Eu passava por ali, indo não sei, não lembro, para onde. Fugindo. Na
certa fugindo. Naquela época eu já fazia isso, hábito que conservo. Fugir, fugir
de mim, me afastar ao máximo dessa capacidade que tenho, de sofrer, e de fazer
sofrer.
Não posso afirmar que aquela criança sofria, que seu
sofrimento fosse motivado pela minha ausência. Não, eu nunca acreditei que
pudesse provocar saudade em quem quer que fosse. Muito menos numa criança, muito
menos numa criança, como aquela, que tinha seus brinquedos.
Eu passava por aquela rua, a criança acabara de sair
da escola de natação, pequena, levava uma bolsa enorme que sacudia pelo ar,
parou frente a vitrine de uma loja de brinquedos, sonhou por instantes, breves
instantes, com algo que gostaria de ganhar, eu passava. Uma criança solitária
olhando a vitrine de uma loja de brinquedos, poucas imagens me assombram mais
do que essa. A criança impotente frente a algo que ela cobiça. Nada a fazer. E
aquela criança era meu filho. Na rua...sonhando.
Logo a criança atravessaria a rua, não tive tempo de
vê-la entrar no ônibus. Não fui capaz de
descer da condução, do ônibus, do táxi, do carro, não lembro, não consigo
lembrar, que me levava. Era preciso chegar a algum lugar. Meu filho, a criança
que atravessou a rua, estava só. Será que em seus pensamentos ele sabia que
estava só, que seu pai o ignorara por
motivos que até hoje desconhece. O que pode ser mais importante que um
filho? O que pode ser mais importante para um pai que o seu filho? O quê?
Há quanto tempo ele cumpria aquele trajeto,
atravessava aquela rua movimentada e, ao chegar à casa, a sua espera, quem? A
empregada.
Ah como eu gostaria de saber o que se passava em sua
cabeça naqueles dias sem pai, naquele momento frente a vitrine, na hora em que
acionava a campainha do apartamento e era recepcionados pela empregada.
Sei que as crianças não sabem sentir raiva e meu
filho, longe de mim desde seus três anos, não sabia o significado de ter pai.
Pablo, Pablo é o nome de meu filho, eu escolhi
chamá-lo assim, sua mãe aceitou.
Ele tem trinta anos e um filho, eu conservo a culpa e
um medo. De um dia ser visto por ele, tentando atravessar a rua na precariedade
de minha velhice, e ele passar, me ignorar; sem minha covardia, parar e
permitir que o veja.
Uma vez conversei com ele sobre o dia em que o vi
saindo da escola de natação. Mostrei-lhe minha preocupação e ele, homem feito,
disse apenas; “queria que eu ficasse trancado em casa?”
E eu não disse o que precisava ser dito: “não, eu
queria estar segurando sua mão”
A vida não oferece segunda chance, é tolice acreditar
no contrário, a vida em seu gesto sádico aponta o caminho onde ocorrerá o
sofrimento de alguém, perpetrado por mim, por você.
Adiante, bem adiante, em seu gesto cruel, permitirá a
repetição, e eu, você, buscaremos nos redimir, lamentavelmente os atores de tal
cena serão outros.
A quem impingi minha crueldade, travestida de omissão,
falta de amor, falo de Pablo, meu filho, ah esse jamais terei outra chance.
Recomenda-se que não me aproxime de meu neto.
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