domingo, 13 de outubro de 2013

O vaqueiro do nordeste

(Geraldo Borges)
 
Na verdade, uma das profissões mais antigas da humanidade é a do vaqueiro. Para se expressar com mais dignidade clássica, é a do pastor de ovelha. Tudo começa nas páginas de Bíblia, no livro de Gêneses. Ali se registra o primeiro conflito agrário. Caim mata Abel, que era pastor. Este exila-se em algum lugar do mundo. E a vida continua, com outros pastores a cuidar do gado, levando o rebanho ao poço para matar a sede.

Essa é a paisagem do Oriente. Um dos vaqueiros mais famosos da história chamava-se Jacob, e era muito esperto, enriqueceu cuidando do gado de seu tio,e, ainda, de quebra ficou com as suas duas filhas, Lia e Raquel. David também foi pastor, e depois rei. E com o tempo, por conta do cristianismo a palavra pastor tornou – se uma magnífica metáfora. Passaram a existir pastores de alma, o que é pior, porque elas são famintas.

               Mas, vamos sair do Oriente. E nos embrenhamos na caatinga do nordeste, onde dizem que o vaqueiro e antes de tudo um forte, e por onde o boi passa ele passa com o seu cavalo, quer dizer, o cavalo de seu patrão. O cavalo de fábrica como é chamado. O vaqueiro mais conhecido das minhas leituras chama-se Fabiano. E ele, mesmo sendo antes de tudo um forte não aguentou a vida no campo por muito tempo. Fugiu para a cidade em busca de futuro para os seus meninos que nem nomes tinham. Tratava-se do menino mais novo e do menino mais velho.

               O vaqueiro é um tipo singular na galeria humana nordestina, de algum modo é diferente do resto dos agregados das fazendas. Tem certos privilégios que vieram do tempo da colônia. Com o tempo apartando as crias a qual tem direito pode constituir a sua própria fazenda. Pelo menos isto acontecia nos meus tempos de menino. Posso dizer que sou neto de vaqueiro. E que tive alguns tios que foram vaqueiros. Ainda hoje posso imaginá-los chegando em nossa casa no interior, montados  a cavalo, parecendo uma figura medieval, com a sua o casaca de ouro de veado. Naquele tempo era de veado mesmo. Bem curtido. Perneiras, alpercatas de couro, chapéu de barbicacho, esporas. Eu gostava de ouvir o som das esporas.

Todo esse aparato me impressionava. Cheguei a pensar em ser vaqueiro. Vaqueiro de meu pai. E com o tempo, fazendo economia, e juntando as minhas crias, montaria a minha própria fazenda. Mas os sonhos de menino não duram mais do que o calendário da infância.

               Estudando história, já na cidade, fiquei sabendo que a origem da formação de nosso estado vem da pecuária intensiva, é que por isso mesmo escravos eram de pouca monta, serviam apena no âmbito doméstico. Não serviam para ser vaqueiro. Porque vaqueiro sugere liberdade. Largos espaços e cavalgadas. Fiquei sabendo que um vaqueiro governou o Piauí e virou visconde.

Antigamente o vaqueiro aposentava-se pelo Funrural, instituto do governo que não existe mais. Muitos vaqueiros se aposentam ao cair do cavalo, como inválidos.

O congresso criou uma lei reconhecendo a profissão de vaqueiro, esta profissão tão velha como o mundo agora foi reconhecida, juntamente, no momento em que nos parece está quase em plena extinção, tornando-se simplesmente folclore, patrimônio cultural de uma região.

No nordeste, onde se encontra verdadeiramente o vaqueiro típico do Brasil, as transformações econômicas e sociais estão eliminando o vaqueiro. A agropecuária, o agro negócio, a soja  tem concorrido para isso. As pequenas fazendas ainda precisam de vaqueiro, geralmente o próprio dono. A criação intensiva dispensa o vaqueiro tradicional, o Fabiano, aquele que curava a rês a distancia pelo rastro. Não é mais preciso, existem veterinários, e até ar condicionado para novilhos reprodutores. As pessoas que hoje trabalham no campo detêm uma alta tecnologia, sabem muito mais do que arrear um cavalo.Tem gente aboiando gado até de moto.

               O nome de vaqueiro registrado como profissão para o homem do campo, que trabalha com o manejo do gado e que ajudou a construir os alicerces econômicos da civilização do couro pode até ser uma justa homenagem a esses heróis anônimos do sertão.  Pouco ou quase nada contribui, para a verdadeira emancipação do homem do campo que vive à margem das estradas em acampamentos provisórios esperando uma prometida e adiada reforma agrária. São vaqueiros desvalidos que não estão no campo e muito menos na cidade. E como o governo não consegue resolver o conflito entre agricultura e pecuária, cada dia um Caim mata mais um Abel.
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foto: Vaqueiro do Vale de Canindé de Alex Galvão

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