quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ESTAMIRA, o filme



Edmar Oliveira

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“O cinema é arte em que o homem se reconhece de maneira mais imediata: um espelho no qual deveríamos ter coragem para descobrir nossa alma”. (Frederico Fellini)
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Imagens granuladas de câmera super-8 fazem a composição de um lugar insólito. Na longa estrada que um ônibus percorre, Estamira anda num lugar sem fim. O planeta Gramacho é revelado em imagens rarefeitas de uma outra atmosfera. De repente as cores e a nitidez estonteante. Na composição digital de imagens exuberantes agora revelam o aterro sanitário de Gramacho, em Caxias, Rio de Janeiro, e apresentam o vento, a chuva, o vôo preciso dos urubus e os detalhes de objetos jogados no lixo, num cenário de um planeta que não nos pertence. E nesse fim de mundo de um outro mundo reina Estamira, bela como uma princesa de uma galáxia distante, entre seus súditos bizarros de catadores do lixo que o planeta terra deposita todos os dias. Corta. As imagens do final, quando Estamira é apresentada ao mar da civilização urbana, revelam Iemanjá que descarrega todos os poderes que a heroína demonstra ao longo de um longa-metragem que parece um curta de tão preciso. Um filme de ficção?
Marcos Prado é fotógrafo de raro talento. Seu primeiro longa[1] é um documentário sobre Estamira. Catadora do lixo que o Rio de Janeiro joga todos os dias no aterro sanitário de Gramacho. Ali ela reina absoluta e é líder dos outros habitantes do lixão. Marcos deixa-se enfeitiçar por seu personagem para poder captar beleza interior, quer seja na história de uma vida sofrida, quer nos ensinamentos filosóficos de Estamira. E Estamira cresce quadro a quadro como uma pessoa forte, bela, cheia de vida, que nos ensina e mostra como é muito superior a toda a realidade que a cerca. E como é capaz de transformar esta triste e podre realidade num reino de encantamentos. Marcos, ao mesmo tempo enfeitiça Estamira e pode apresentá-la como deusa de um monte Olimpo em que transforma, com sua magia fotográfica, a podridão do mundo. Não há dúvidas quanto a Estamira ser um deus mitológico disfarçado em catadora de lixo, como também não se pode duvidar que a mão do fotógrafo foi guiada pelos deuses...
No entanto é um documentário cinematográfico que estamos tentando descrever. Um documento real sobre uma louca que vive e se reproduz no lixo. Uma mulher que ouve vozes, que fala sozinha, que blasfema contra Deus, que os filhos tratam como louca, que toma remédios psiquiátricos, que bebe cachaça, que, em momentos extremamente delicados do filme, expõe sua loucura, sua nudez ... Mas o que o trabalho de Marcos Prado extrai desta realidade é o outro lado da moeda. Ao lapidar sua bruta pedra, Marcos mostra a composição de imagens, reveladas pelo prisma do filme em rara sensibilidade. Estamira contracena com a função mítica e mística das vozes; no falar para si mesma nos encanta e inquieta com os ensinamentos e interpretações filosóficas; não há como, juntos com ela, não detestarmos um deus injusto na sua elaboração de mundo e de vidas; ela “prova”, com seus argumentos, a “loucura” do filho religioso; acusa, com a razão, a médica que repete os mesmo remédios, em vão; mostra, no encontro com o outro, nos seus momentos festivos, o uso tão legítimo do néctar de Baco; questiona em quais momentos de lucidez existe loucura ou seu contrário, ou ainda nos apresenta, de modo convincente, a “União das Coisas Contrárias”.[2]
E no centro das coisas contrárias está Estamira: “eu sou esta mira”, exclama, tornando-se o alvo. A mira de disparo da câmara de Marcos Prado. O mito do herói se revela na construção dos doze trabalhos de Hércules. Em Estamira que, com certeza, é também filha de Júpiter, os trabalhos são mais numerosos e diários na construção e resignificação da sua vida com ensinamentos a nós, homens e mulheres comuns. E não se duvida que o filme de Marcos Prado coloque, pelas mãos dos deuses, Estamira em alguma constelação no firmamento...
Como afirmou Rogério Sganzerla citando o mestre Godart: “os grandes filmes de ficção tendem ao documentário assim como todos os grandes documentários dirigem-se à ficção.(...) Quem opta por uma tendência necessariamente acha a outra no fim do caminho”.[3] O problema é que o filme de Marcos Prado é muito bom...
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[1] No longa “ônibus 174” , documentário sobre aquele seqüestro de um ônibus na zona sul do Rio que terminou em morte de uma passageira, ele já tinha participado na produção do filme.
[2] Livro de Poesias de Joe Romano, impresso nas oficias do “Espaço Aberto ao Tempo”,, no antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, Rio de Janeiro.
[3] Sganzerla, R. “Por um cinema sem limite”, Azougue Editorial, RJ, 2001.


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Tive o prazer de ser convidado por Marcos Prado para debater o filme na sua estréia. Na época fiz este texto. Divulgo agora porque o filme já está bastante conhecido. Originalmente este texto foi publicado no site www.estamira.com.br




Um comentário:

Unknown disse...

Estamira é realmente do caralho, Fradim. Tô doido (sem trocadilho) pra ver de novo.