quinta-feira, 15 de maio de 2008

Criadagem

Geraldo Borges


Nas Mil e Uma Noites deve haver muitos criados, pois onde há sultão tem que haver criados. Mas a noticia de criado mais antiga que eu conheço está na Bíblia. Trata-se de José do Egito. José não era propriamente um criado. Era um pastor. Mas tornou-se serviçal do rei. Foi vendido por seus irmãos para mercadores que passavam no deserto. Quando chegou ao Egito José foi comprado por Putifar, uma autoridade do Faraó. Serviu em sua casa, e por intriga da mulher de Putifar terminou na prisão. Mas José não era besta, sabia interpretar sonhos. E na prisão interpretou os sonhos de dois criados do rei que estavam presos também. Acertou os dois sonhos. Ficou famoso. Saiu da prisão. E continuou acertando sonhos. Decifrou os sonhos do Faraó e ficou sabendo do tempo das vacas gordas e das vacas magras. E com estas informações organizou a economia do Egito.


Virou ministro. É a única história que eu sei até hoje de um criado que virou ministro a custa de sonhos.


Hoje mesmo fiquei sabendo que Marina Silva que foi vereadora, deputada, e por fim senadora pelo Acre, e que neste momento demitiu-se do cargo de ministra, personagem protagonista da grande epopéia da região amazônica foi ex - empregada doméstica; uma grande ministra, mulher de princípios. Renunciou ao seu ministério por que o seu presidente não acreditou nos sonhos dela.


Histórias de criados existem muitas por aí, como o caso dos mordomos que são sempre acusados de cometer crimes. Há criados chantagistas, como é o caso da criada do romance de Eça de Queiroz – O Primo Basílio - que muita gente conhece, e que foi muito bem interpretada por Marília Pêra no cinema. Mas um dos criados mais conhecidos da literatura ocidental e que foi ser criado, escudeiro, acreditando que ganharia uma ilha para governar chama-se Sancho Pança. Tão bem se deu com o seu amo que terminou ganhando uma ilha. Só que não agüentou a rotina de rei. O poder também cansa: ritual, cerimônia. O diabo a quatro. Sancho desistiu. E o Sexta-Feira? Este era um criado primitivo, sem regras de etiquetas. Talvez fosse criado apenas por medo, gratidão, ou curiosidade. Um criado em uma sociedade onde existem apenas duas pessoas é difícil de se explicar. É mais do que questão de sobrevivência. Com certeza tinha medo do pau de fogo do náufrago Robson Crusoe. E saindo de uma ilha para o continente, quem não conhece o celebre criado José Dias, o homem dos superlativos, dos deveres amaríssimos, personagem singular, muito respeitado pela família de Bentinho e que teve muita a ver com a sua formação, detestava Capitu.


A bibliografia sobre criados é numerosa, dá até tese universitária. O conto - Um Coração Simples - de Flaubert, traduzido para o português de Portugal com o titulo de Coração Singelo, é uma obra prima da literatura francesa. Trata-se do caso de uma criada que se entrega de corpo e alma para sua patroa por causa da singeleza de seu coração, da sua religiosidade, e pelo amor que ela tinha aos filhos da patroa, a ponto de causar inveja à vizinhança. As crianças crescem, vão embora. Felicidade, que é o nome da criada, continua na casa com a patroa até morrer.


São tantas as histórias de criados. E existem muitos criados se dando bem. Mas a história de criado que todo mundo conhece e que nos é contada desde a infância é a história da Gata Borralheira, a famosa Cinderela. Ela era enteada da mulher de seu pai, que tinha três filhas, se não me falha a memória, as filhas faziam gato e sapato da Cinderela com o apoio da madrasta Mas, deu-se que o rei queria casar o príncipe e deu um baile no Palácio. As meninas da madrasta se enfeitaram e foram ao baile. O príncipe nem olhou para elas. Com a ajuda de uma fada madrinha Cinderela conseguiu também ir ao baile. Acho que não é preciso esmiuçar o enredo do conto. Todo mundo conhece. A carruagem de abóbora, a dança com o príncipe, a meia-noite, a fuga da Cinderela, a perca do sapato, a procura do pé do sapato. E finalmente o final feliz. Bela redundância.


A versão moderna, com algumas variantes do conto da Cinderela, está contida nas páginas dos romances das edições da Sabrina, executivos casando com secretárias e nos concursos de beleza tipo Miss Brasil. De forma que há sempre uma brecha na sociedade para que alguns criados de repente atinjam a celebridade, e passe até consigo uma corriola de serviçais.

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Geraldo, o Borges eremita, piauinauta do Pantanal, aborda um aspecto inusitado da literatura. Seu criado. O problema é quando o rei quer o criado mudo, porque não gostou da interpretação do sonho...

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