Edmar Oliveira
Acontece com todos nós que moramos fora do Piauí. Quando passamos uns dias por lá, a parentada nos presenteia na volta com um jacá de pedaços dos sabores da terra: carne-de-sol, bacuri, buriti, rapadura, cajuína, pequi, paçoca, doce-de-jaca, bolo frito, peta, cachaça mangueira (outro dia ganhei a Lira de Amarante, que é uma delícia), arroz de capote, bode guisado, capão cheio, linguiça da terra, panelada, mão de vaca e outros quitutes que terminam sobrando por não caberem no jacá. Acho que a intenção é conservar os gostos da terra dentro de nós. São pedaços do Piauí que nos acompanham por um bom tempo, que quando acabam fazem a saudade nos carregar de volta à terrinha.
E na culinária carregamos um sotaque, que nos distingue completamente dos conterrâneos de outras regiões da nação nordestina. Quem já provou bolo frito com café preto sabe do que estou falando. A nossa canjica, de consistência endurecida que se amolece no corte da faca e pode ser comida a colheradas, com um sabor sensual da canela em cima, não se parece com nenhuma outra do mesmo nome e de outros sabores. Talvez só se possa comparar a consistência da nossa canjica com os seios firmes, que balançam ao caminhar, das nossas caboclas. E a peta não se parece em nada com os biscoitos de polvilho, que lhe imita na forma, mas jamais no sabor. A exótica combinação do mocotó do boi às suas vísceras faz da nossa panelada uma delícia que não se compara à tripa lombeira ou ao mocotó, encontrados nos botequins aqui do Rio e São Paulo. A panelada é a essência do sabor do sertão. Certa feita fiz uma recepção piauiseira aos meus amigos aqui em baixo do equador. E mandei importar da Filha do Sol uma panelada para os conterrâneos e um arroz-de-capote para o paladar mais refinado dos cariocas. O que não sobrou foi a panelada. E não faltaram os elogios para o sabor “exótico” do arroz com pequi. O doce de bacuri e a cajuína marcam a identidade dos piauiseiros.
Mas se com a globalização dos nossos produtos podemos matar a saudade de alguns deles na Feira de São Cristóvão, dois ingredientes nos falta para uma reprodução do nosso sabor: a pimenta de cheiro e o coentro. Sei, vão lá me dizer que o coentro se encontra em toda parte e se pode achar pimenta de cheiro em algumas feiras livres nas ruas do Rio. Mas não com o mesmo gosto! Quem é da terra sabe o significado da expressão “vai dar nos gostos”. É disso que se trata. Nosso coentro (o cheiro-verde do mercado Mafuá ou da Piçarra) e a nossa pimenta de cheiro têm um sabor orgástico, que não se encontra nos genéricos no Brasil afora. Deve ser fruto da germinação na terra quente com a inclemência do sol.
E são dois produtos perecíveis de difícil conservação. No congelador perdem o sabor (já tentei e desaconselho). E sem os dois não há sabor do Piauí na nossa culinária. Mas se pra tudo tem jeito, menos a morte, apresento uma receita simples, que aprendi com um piauiense candango (Brasília tem a maior concentração de piauienses fora de casa), que é muito fácil e dura uns bons seis meses.
Da próxima vez que você voltar ao Piauí não se esqueça de trazer na bagagem o nosso cheiro verde e a pimenta de cheiro. Junte os dois no liquidificador com sal e alho (pode ser sal com alho já pronto, mas acrescente mais alho), bote algum cominho e pimenta do reino, um pouco de vinagre (acrescente vagarosamente para manter a consistência da canjica) e ponha uns dois dedos de azeite para ajudar o vinagre na conserva. Bata bem e acondicione num vidro com tampa conservado em geladeira (não precisa ir ao congelador). Pronto. Quando for fazer frango, carne ou peixe esfregue a mistura verde com o sabor da terra em conserva e sua comida vai parecer ter sido feita com o tempero da mamãe. E a saudade da terra pode aumentar. Mas “vai dar nos gostos”, com se diz de uma boa trepada.
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publicado originalmente no Portal do Sertão para uma idéia de Joca Oeiras sobre Literatura e Gastronomia.
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publicado originalmente no Portal do Sertão para uma idéia de Joca Oeiras sobre Literatura e Gastronomia.
4 comentários:
Copiei a receita do tempero imprimi. Em breve te conto.
Abraço
José Henrique
Aqui no Paraná, coentro e cheiro verde são gigantescos, na mesma proporção do gosto e do cheiro de coisa nenhuma. Acho até que apenas faz parte do ritual da culinária dos "polacos": não inflói e nem contribói no sabor da comida. Interessante é a disputa na escolha dos insípidos, inodoros, verdejosos e inúteis desses vegetais aqui da serra do Mar.
A nossa pimentinha de cheiro (mesmo!) também faz muita falta, nada a ver com a campeã de audiência destas bandas, uma tal de dedo de moça(?)...
No mais, os legumes são excelentes, assim como a variedade da turma de parentes do brócolis e dos primos do alfaçe.
A propósito do frio, estamos na farra do pinhão, uma semente doida pra ter o mesmo gosto do caroço de jaca cozido. Querias! Compete com o sabor da castanha do Pará: gosto de isopor.
Tá frio ( já teve pior) Semana que vem teremos a volta dos "abaixo de zero"! Bateu fome.
Que delicia este texto!!!
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