Luis Horácio
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A menina engatinha em direção à boneca que se encontra entre os pedais do piano. Na sala ao lado, seu pai, sua avó materna e um casal de amigos velam o corpo de sua mãe. A porta da sala, conduz à rua, está aberta, a menina alcançou a boneca, leva-a à boca. Na sala ao lado, seu pai acaricia a face morta. O gato permanece deitado sobre o sofá, os gatos são seres indiferentes, livres de emoção e graça.
O pé esquerdo da criança esqueceu uma das meias, o chão não é de inverno embora agosto. Na sala ao lado ninguém chora. Sabem a inutilidade das lágrimas. A morte é um polvo com tentáculos de sombra. Sombra insaciável. Ao abraçar a boneca a criança se desequilibra e bate a cabeça na solidez da madeira do piano.Chora. Chora um choro que não chega à sala da morte. O gato salta do sofá ao chão, ingressa na sala do velório e mia. O miado atrai todos olhares, inclusive o do viúvo, a avó entende a razão do chamado e dirige-se à cozinha a fim de colocar ração no prato. Passa pela sala sem perceber a neta que acaba de tirar, com as próprias mãos, a meia do pé direito. A fralda já não faz sentido, a marca no carpete denuncia o descaso. A órfã dorme.Um dos frios tentáculos de sombra embala o berço do desamparo.
O tempo corre. Os pais do viúvo chegam à casa sem mãe. O gato ronrona e roça as pernas do velho. Olhos vermelhos encontram a neta dormindo junto aos pedais do piano. Pés sem meias, calça molhada, barriga à mostra, chupa o polegar da mão direita. O avô se abaixa e retorna com a neta nos braços. A avó está na sala, segura a mão do filho.
A menina está em sua cama, agora, também molhada, o avô chega ao velório, não olha a morta. Segura a mão de sua mulher e a conduz ao quarto da neta. A menina acordou, chora, fome.
Roupas trocadas, retorna ao chão, engatinha em direção ao gato deitado no chão, alheio a tudo, a menina puxa o rabo, o bicho reage arranhando o braço órfão. Choro, sangue, a avó e o avô estão na sala do velório. O abandono é uma cicatriz. Feia. O choro seca,o sangue coagula, a menina engatinha.
Começa a chover, guarda-chuvas no velório, vizinhos chegam a casa, a irmã do viúvo também, dirigi-se à sala, beija o irmão.
-Quem está com Beatriz?
O pai responde que não sabe e a tia sai da sala. Encontra a menina na cozinha, tem ração de gato na boca. Limpa a sobrinha, a coloca no carrinho e prepara a mamadeira. A chuva aumenta, trovões e relâmpagos, dezesseis horas e doze minutos, é noite lá fora, o sepultamento está marcado para às dezessete horas. O pai viúvo chega a cozinha, abraça a irmã, a menina segura a mamadeira.Mama.
-Como foi, por que não me chamou?
-Foi por volta das três da madrugada, ela não disse nada, pegou minha mão e morreu.
-E a Beatriz?
-Dormia.
-E agora?
-Agora? agora não sei.
-Vou dar um banho na Beatriz, está imunda, cheirando a urina. E seus filhos, foram avisados?
-De morte não se avisa, pra quê? Quando souberem virão. Eles gostavam da Joana.
-Você se alimentou, quer que eu prepare alguma coisa?
-Um sanduíche será o suficiente. Vou com vocês, deixa que levo a toalha dela. Sabe…eu vi a morte hoje cedo, ela chegou e me arrancou a Joana, não pude fazer nada. Quando levantei da cama ela apontou aquele cajado para a cama de Beatriz. Por que não apontou pra mim? O gato viu, tenho certeza, gato gosta de coisa ruim.
-E os passarinhos, meu irmão, aquela quantidade de gaiolas?
-Assim que clareou o dia abri as portas, se foram todos. As gaiolas estavam pesadas, cheias de tristeza. Vou voltar pra lá.
-Espere, fique um pouco com Beatriz. Espere eu terminar de dar banho, olhe como ela está sorridente.Vou preparar seu lanche.
Assim que Isabel terminou de vestir a sobrinha, a menina engatinhou em direção a sala. Chegando lá encostou-se ao piano, ali, ao lado dos pedais, e se deixou ficar. Estática, como não costumam ficar crianças de pouca idade, olhava para porta da rua. Aberta.
O gato também veio, afiou as unhas no encosto do sofá e deitou. A serventia maior do gato é dormir, acordar sonhos, sonhos de gato.
Isabel retirou o feltro verde que cobria o teclado, aproximou o banco e começou a tocar. Chopin, seu compositor preferido. Quem estava na sala ao lado,por lá permaneceu. Beatriz sorria, babava e arrancava os cabelos da boneca, o gato? não era nada com ele, a porta sempre aberta recebia outras pessoas, pés molhados marcavam o chão da sala. Chuva forte, as notas do piano alcançavam os guarda-chuvas mudos encostados à parede, às gaiolas molhadas e leves alçavam vôo no fundo do quintal. O viúvo retorna ao seu lugar, à cabeceira da morta. Olha atentamente aquele rosto horizontal seco de olhares.
Chegam os funcionários da funerária, o carro fúnebre entra na garagem. Na sala ao lado o caixão fechado, Isabel ao piano, Beatriz com a boneca. A sala ao lado é esvaziada, o caixão está no carro. A chuva cumpre seu papel sem fim.
À parede resta a umidade dos guarda-chuvas. Todos partem.Isabel continua ao piano, Beatriz engatinha em direção à porta, põem-se a olhar. A chuva?
Ela viu, atenta o caixão ser carregado. Imaginará o que leva?
Logo, a menina engatinha em direção à boneca que se encontra entre os pedais do piano. Na sala ao lado apenas o barulho da sombra….
__________________________ilustração Paulo Moura. Um escritou gaúcho, um ilustrador piauiense. Parceria norte-sul.
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