domingo, 15 de agosto de 2010

Da sala pro porão

Aderval Borges

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No período da ditadura militar, os artistas, intelectuais e profissionais de imprensa tiveram de ter muito jogo de cintura pra driblarem a cuja. Muitos bateram o pino por não aguentar a barra pesada. Ou seja, piraram, se mataram ou enfiaram o pé na jaca com muita birita e drogas. Infelizmente, entre estes estavam alguns dos melhores. A lista dos que se deram mal com a repressão e a falta de liberdade – inclusive para meramente trabalhar – é grande. Nela, óbvio, se inclui Torquato Neto. Mas, por momento, vou lembrar o capixaba Sérgio Sampaio, cujas imagens foram mostradas na última edição do blog Pianauta.
Sampaio vem da terra da terra de Roberto Carlos, Cachoeiro de Itapemirim. Herdou do pai, o compositor e fabricante de tamancos Raul Sampaio, o gosto por vários gêneros musicais: samba, chorinho, modinha, marcha, marcha-racho, etc. Compôs de tudo um pouco, inclusive rocks e blues. De “seo Raul” gravou a ótima Cala a boca, Zebedeu.
Mudou-se pro Rio justamente em 1967, quando o AI-5 era aprovado pelos milicos, para tentar a vida como locutor de rádio e cantor-compositor. Lógico que procurou Roberto, mas este não lhe foi acessível. Razão pela qual compôs a seguir Meu pobre blues, esculhambando-o. Mais tarde se conheceram e Roberto, embora já o admirasse, não aceitou a oferta de Feminino coração de Deus. Gostou da canção, mas não do trecho “o coração de Deus é uma criança/que dança sobre todos os sexos”.
Com Raul Seixa, Edy Star e Miriam Batucada, realiza, em 1969, o show Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das Dez, em contraponto à Tropicália – de Gil, Caetano, Tom Zé, Gal, Nara Leão, Torquato, Rogério Duprat e Mutantes – porém em tom de anarquia e deboche.
O disco do show só saiu em 1971. Trata-se de uma verdadeira sessão de escracho musical, uma coleção de pastiches de rock, samba e outros ritmos, com letras sarcásticas, entremeadas por piadas e sátiras ao cotidiano em forma de vinhetas malucas. E – o que soou pior – com muita ironia ao autoritarismo no poder.
A partir de 1972, Sampaio forma parceria com o ótimo violonista Renato Piau – do Piauí–, que viria a tocar (ainda toca) com Luiz Melodia, entre tantos outros. Nessa época torna-se colega de copo e de outras coisitichas de uma turma barra pesada (não vou citar nomes, porque isso não vem ao caso). Quando Torquato se apaga, em novembro de 72, compõe para ele este belo blues:
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Que loucura

Fui internado ontem
Na cabine cento e três
Do hospício do Engenho de Dentro
Só comigo tinham dez
Estou doente do peito
Eu tô doente do coração
A minha cama já virou leito
Disseram que eu perdi a razão
Tô maluco da ideia
Guiando carro na contramão
Saí do palco e fui pra plateia
Saí da sala e fui pro porão
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No mesmo ano, faz sucesso com a marcha Eu quero é botar meu bloco na rua, apresentada no VI Festival Internacional da Canção.
Mas sucedem-se, a partir daí, uma série de problemas. É preso seguidas vezes, por desacato de autoridade, porte de drogas, bebedeiras e brigas. Contrai tuberculose devido à rotina desregrada e boêmia. Tem letras censuradas, o que atrasa o lançamento do LP de 1973. Seu perfil despojado, “banderoso” e mordaz o coloca na lista dos “malditos” – embora nunca tenha pretendido isso.
Mesmo assim, lança em 1975 o segundo LP, no qual está o ótimo choro Velho bandido, em tom de autoironia:
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Velho Bandido

Eu que sou filho de um pai teimoso
Descobri maravilhado que sou mentiroso
Sou feio, desidratado e infiel, bolinha de papel
Que nunca vou ser réu dormindo
E descobri como um velho bandido
Que tudo está perdido neste céu de zinco
Eu que só tenho essa cabeça grande
Penso pouco, falo muito e sigo pr'adiante
Descobri que a velha arca já furou
Que não desembarcou
Dançou na transação dormindo
E como eu fui o tal velho bandido
Vou ficar matando rato pra comer
Dançando rock pra viver
Fazendo samba pra vender... sorrindo

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Em 1978, mais problemas: descobre a pancreatite. A essa altura, é um compositor admirado pelos músicos, mas desconhecido pelo público. Por isso continua duro. Quando a ditadura acaba, na primeira metade da década de 80, encontra-se afastado de tudo, na ilha de Itapuã, Bahia, mas sempre compondo. Nesse período, Erasmo Carlos grava a canção recusada por Roberto:

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Feminino coração de Deus

O coração de Deus é feminino
É a força de toda a criação
Capricho do destino, a Mãe da Invenção
O coração de Deus é uma criança
Que dança entre os sexos
É a força do Universo, uma eterna canção
E como é forte o feminino coração de Deus
O coração de Deus não tem segredos
Nem medos, só histórias bonitas
Carícias pequeninas para quem o quiser
O coração de Deus bate comigo
Me ensina e me ajuda a viver
Me dá matéria-prima para amar a mulher
E como é forte o feminino coração de Deus
Em 1994, a convite do selo paulista Baratos Afins, grava um CD de inéditas, só ele e o violão, dentre as quais se inclui o ótimo chorinho abaixo:

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Polícia, bandido, cachorro, dentista

Eu tenho medo de polícia, de bandido, de cachorro e de dentista
Porque polícia quando chega vai batendo em quem não tem nada com isso
Porque bandido quase sempre quando atira não acerta no que mira
Porque cachorro quando ataca pode às vezes atacar o seu amigo
Porque dentista policia minha boca como se fosse bandido
Porque bandido age sempre às escuras como se fosse cachorro
Porque cachorro não distingue o inimigo como se fosse polícia
Porque polícia bandideia minha boca como se fosse dentista

Em abril do mesmo ano comemora aniversário no Rio cercado pelos amigos: Sérgio Natureza, Renato Piau, Chico Caruso, Luiz Melodia, Jards Macalé e outros. Em maio, morre de pancreatite – a mesma que matou seu coleguinha Raul Seixas.
Deixou cerca de 60 canções e pelo menos umas 20 muito boas. Mas, não fosse a vida tão atribulada, perseguida e sofrida, certamente chegaria a muito mais.
Valeu, Sergião!

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Que fique como epitáfio sua mais popular marcha-rancho:
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Eu quero é botar meu bloco na rua

Há quem diga que eu dormi de touca
Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga
Que eu caí do galho e que não vi saída
Que eu morri de medo quando o pau quebrou
Há quem diga que eu não sei de nada
Que eu não sou de nada e não peço desculpas
Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira
E que Durango Kid quase me pegou
Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender


Eu, por mim, queria isso e aquilo
Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso
É disso que eu preciso ou não é nada disso
Eu quero é todo mundo nesse carnaval...
Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender

Um comentário:

Luiz Filho de Oliveira disse...

Meus cumprimentos, Aderval Borges, por não deixar no esquecimento uma figura tão importante quanto tantas outras na música brasileira. Sérgio Sampaio deve, sim, ser saudado como "homem de front", batalhador. Merece nossa reverência esse homem que, como Sousândrade versou, também "desafinou o coro dos contentes".