domingo, 7 de novembro de 2010

Um ilustre ladrão de livros

Geraldo Borges



Hoje, saí pelas ruas da minha cidade, com a firme determinação de visitar os sebos e as livrarias para comprar livros, perdão, melhor dizendo, furtar. Mas, primeiro, devo esclarecer. Não é qualquer livro que merece ser furtado. Os auto ajuda estão na moda, mas para mim, não valem nada, embora o livro sempre valha alguma coisa. Eu comecei a furtar livros muito cedo, desde a minha infância, desde o dia em que li em uma livraria a orelha de um livro que dizia: se você não pode comprar este livro, por favor, furte- o. Furtei- o. Deu certo. Aí descobrir a minha vocação.



De lá para cá me tornei um ilustre ladrão de livros, coisa que pratico no anonimato, e que agora estou trazendo à luz. A sorte é que nunca me apanharam. Ou, quem sabe, pode até ter acontecido que um livreiro humanista tenha me pego com a boca na botija e não tenha dito nada. Tudo pode acontecer no mundo dos livros. Uma vez furtei um livro, faz muito tempo, na livraria de um amigo – A arte de furtar. Pensei que pudesse apreender alguma coisa com ele. Nada. Não apreendi nada. Um bom ladrão tem que ser autodidata, aprender com a experiência.



A esta altura algum leitor bisonho está querendo me censurar, Deve ser um cara insensível. Quem nunca furtou um livro que atire a primeira pagina. Não sou a única pessoa a fazer isto. Tive muitos amigos que me pediram livros emprestados e nunca mais tiveram a dignidade de me devolverem. Considero isto um furto descarado. Mas tudo bem. Ladrão que rouba ladrão. Caso eu fosse listar o nome de livros que eu emprestei e nunca retornaram as minhas mãos não haveria espaço nesta página, e dariam para formar uma biblioteca. Mas tudo bem. Vamos furtar livros È uma pratica intelectual que não faz mal a ninguém,



Após todas estas reflexões pelas ruas e esquinas da cidade cheguei a um sebo, e olhando as estantes mal arrumadas me deparei com uma edição antiga do romance Guerra e Paz. Não vou ficar em paz enquanto não leva lo comigo. Sempre conduzo à tiracolo uma bolsa de pano de aspecto rústico, artesanal, justamente para facilitar o meu serviço Ainda bem que os três volumes do romance são exemplares de bolso, e estão unidos por uma corrente plástica



Uma vendedora se aproxima de mim e me pergunta. Posso ajudar. Eu penso comigo. Pode desde que fique cega. Obrigado. Estou apenas olhando sem compromisso. Ela se afasta com um sorriso nos olhos, desatenta. Outro vendedor esta atendendo um freguês. O momento oportuno é agora. Sem titubear, como quem desfere um golpe de espada empalmo a grande historia do povo russo, com a ajuda do general inverno, e da derrota de Napoleão, e num rasgo de coragem coloco o romance dentro de minha bolsa de pano. Um risco tremendo. Uma guerra. Suspiro aliviado. Disfarço. Estou em paz. Mais uma vitória em minha missão. Quem quiser sentir a mesma sensação é só entrar em minha pele. Em tudo é preciso agir com método e precisão. É o que faço. Precisamos ter como principio que na rua ninguém presta atenção ao seu semelhante, todo mundo está andando em torno de seu umbigo. Claro que eu não vou revelar o meu método.



Tenho me saído muito bem até hoje. Sou um cara honesto. Um cidadão respeitável. Costumo devolver os livros que me são emprestados. E sei que não é crime furtar livros, desde que seja para o seu uso próprio. E sei também que o preço dos livros são um absurdo Os livreiros são muito ambiciosos, e o pobre do leitor é quem paga. Minha biblioteca é constituída de livros autografados por amigos, alguns escritores, poucos comprados. È um patrimônio maravilhoso para quem tem bom gosto e sabe que a leitura é um processo criativo que nos conduz a muitas revelações. Este patrimônio vai ficar por aí com os meus herdeiros. Ou quem sabe eu o doarei a uma fundação respeitável que saiba fazer bom proveito dele.



Boa parte do comercio de livro hoje está entregue nas mãos da pirataria, o que não deixa de ser um novo caminho na historia do livro com muitas encruzilhadas pela frente. Caso um dia me peguem furtando livros, com certeza, saberei argumentar em minha defesa. E o livreiro rendido a minha conversa me deixará levar o livro como cortesia. Talvez possa até me favorecer com um autografo.



Na volta para casa, depois desta minha última aventura livresca, tive uma surpresa ao entrar no metrô. Encontrei, no banco onde me instalei,um exemplar da Divina Comedia, Peguei o livro e fiquei folheando. Um rapaz que estava a meu lado não disse nada. Na próxima estação ele saiu. Continuei lendo o livro. No meio do caminho da nossa vida. Quando cheguei à minha estação abandonei o livro no mesmo lugar como se ele fizesse parte daquele trem.



E senti que chegaria um dia em que não se precisaria mais furtar livros. Pois eles estariam ao nosso lado por toda parte. Bastaria o leitor estender a mão.

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