domingo, 7 de novembro de 2010

Felicidade Demais

Luiz Horácio



Felicidade demais, livro de contos de Alice Munro, é uma obra impressionante. "Dimensões",história que abre essa coletânea, ali o leitor encontrará Doree, camareira de uma pousada. Ela diz: "Eu sei que essas palavras já estão mortas de tão gastas. Mas continuam verdadeiras."



Aceite uma advertência, paciente leitor: o título pode sugerir um livro de auto ajuda, convém não se deixar levar por essa impressão. Você terá em mãos a mais fina ironia, do título às histórias. Tudo com sutileza, o que torna Felicidade demais, uma obra inesquecível.



Mas voltando a frase de Doree. Sem demora a camareira se envergonhará por ter dito "mortas", como a perceber que a tarefa de Alice Munro é justamente a de revitalizar as palavras. E o faz de forma magistral, capaz de tornar o mais cruel cotidiano, a mais maçante rotina, fantásticos esconderijos de surpresas. É desse cotidiano que a autora extrai personagens simples, alguns simplórios, carregados de imprevisibilidade, aptos a correr em busca da fugidia felicidade. Os contos de Alice Munro, no entanto, não apresentam o menor traço de superficialidade ou de simplicidade; são histórias densas onde avançar e recuar no tempo é um recurso fartamente utilizado. Nada é simples, Alice por vezes consegue fazer sua narrativa soar como um quadro barroco, contrastes, dramaticidade beirando o excesso, e a tensão entre o material e o espiritual; nesses instantes a autora pesa a mão. O que impressiona é que tal estratégia não compromete a narrativa, é diluída, sobretudo, pelo fato de Alice Munro colocar suas personagens, sempre, frente ao não convencional. Mas não se engane, cuidadoso leitor, não se trata de fórmula, em Felicidade demais o que está exposto é uma variedade de sutilezas, todas encaminhando a leitura à surpresa.



Três contos são exemplos de consistência narrativa e assombrosa tensão.



Em Dimensões, a jovem Doree, mãe de três crianças e, conforme disse no começo desta resenha, trabalha como camareira de uma pousada. Casada com Lloyd, conhecera-o auxiliar de enfermagem. Pai de dois filhos, imaginava-os adultos, embora não fizesse a menor idéia sobre o paradeiro de ambos.Doree e Loyd mudaram de cidade, foram viver juntos, logo vieram os filhos. Três crianças que um dia, sem mais nem menos, seriam estranguladas pelo pai.



Loyd é condenado, gastará seus dias em um manicômio, de onde escreve cartas e mais cartas a Doree no intuito de convencê-la que os matara por convicção, em hipótese alguma fruto da loucura. Convicção quem tem é Doree. O inusitado trará um alento a ex-camareira.



Rosto conta a história da menina Nancy que cortou o próprio rosto com navalha, queria ter defeito igual a deformidade de nascença apresentada por seu amigo. "Foi na mesma bochecha", ela disse. "Como a sua."



Brincadeira de criança é a história de duas crianças que matam uma criança deficiente. "A cabeça de Verna não retornou mais à tona, embora não estivesse mais inerte, mas ser revirando como que se divertindo, leve como uma água-viva em seu habitat.Charlene e eu estávamos com as mãos em cima dela, em sua touca de borracha. Pode ter sido um acidente. Como se nós, tentando recuperar o equilíbrio, tivéssemos nos agarrado no objeto mais próximo, grande e de borracha, mal percebendo o que estávamos fazendo. Pensei em tudo isso. Acho que teríamos sido perdoadas. Crianças pequenas. Aterrorizadas."



Não, sensível leitor, você não está equivocado, o terror está presente nos contos de Felicidade demais. O terror que não exige esquartejamentos, zumbis, vampiros; mas o terror que habita a infância, a crueldade das crianças, e cresce, cresce, e nos espera na porta de entrada de nossa velhice. O terror há nos exigir lembranças, geralmente tristes. Dos filhos abandonados dos casamentos desfeitos à filha morta do casamento quase infantil, são lembranças da realidade deste resenhista. Lembranças rápidas, já chegaram a minha velhice, jamais se satisfarão com minha dose de sofrimento.



É a vida, a vida a nos fornecer material para o sofrimento ou para a ficção, no caso de Alice Munro. A vida, a vida pela ótica da autora de Felicidade demais: "Eu cresci, e fiquei velha."



Vidas comuns, vidas pequenas, o cotidiano, a rotina, viver e se deixar levar pela vida. Hoje, amanhã, depois de amanhã. Sempre tudo igual. Sempre. A mudança é a morte, a frustração traz traços de normalidade implacável.



As vidas apresentadas por Alice Munro são precárias, assustadoras, lamentavelmente próximas de nós. Crescem, tão somente, em função de uma desgraça. Viver, aqui, não é perigoso. É triste, não tem saída, não tem volta.



Há um quê de Beckett nas personagens de Alice. No conto Algumas mulheres: "E minha avó havia me avisado para, se possível, eu evitar de tocar em qualquer coisa que o paciente tivesse tocado, por causa dos germes, e que eu sempre deveria usar um pano entre meus dedos e o copo d'água dele. Minha mãe disse que leucemia não passava por germes.



"Então pega como?", disse minha avó.



"Os médicos não sabem."



"Ah."



Felicidade demais é o retrato pálido da miserável condição humana onde o leitor encontrará doses homeopáticas de alegria, geralmente oriundas do conta-gotas do acaso, do crime, das fantasias sexuais, das lembranças….Infelizmente!



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