domingo, 7 de novembro de 2010

Equívocos da Tropa



Edmar Oliveira




Vi uma entrevista do José Padilha na TV em que ele dizia ser um cidadão politicamente inviável: - “Fui acusado de ser radical de esquerda em ‘174’, por fazer o filme do ponto de vista do bandido. Agora sou acusado de radical de direita por ‘Tropa de Elite”.



Não concordo com este julgamento. Padilha é viável como um radical do cinema-documento. Ele e seus pares, destacando Marcos Prado na produção desse filme e que foi o cineasta-verdade do cortante “Estamira”, são responsáveis por boa parte da safra preciosa do cinema nacional contemporâneo. O cinema deles é bom. Este é um ponto.



Agora, Padilha, obra de arte é coisa sobre a qual não se tem controle. Depois que ela cai na boca do povo é que ressoa no autor reformada ou deformada como um corpo estranho. Na música, por exemplo, a linda “Sabiá”, de Chico e Tom Jobim, foi vaiada no papel de uma canção alienada, no momento que se estava precisando contestar a ditadura. “Pra não dizer que não falei das flores”, do Vandré, virou uma bela canção de liberdade, apesar da pobreza melódica em tom de canção marcial. Brigas da arte com o seu tempo. No cinema, Clint Eastwood, ao levar seu cowboy, bem formatado por Sergio Leoni, para a São Francisco do século XX, no personagem Dirty Harry, colou sua mensagem no justiceiro durão. Bem ao gosto do público americano, que aplaudiu também o canastrão Charles Bronson ou o bom ator Bruce Willis travestidos em coisas do tipo “Duro de Matar”. Só depois que escapou desta “aprovação popular”, na qual o personagem era mais importante que o filme e o ator, Eastwood é reconhecido como um mestre da direção em clássicos como “Os Indomáveis”, “Entre Meninos e Lobos” e “Menina de Ouro”. O problema do “Dirty Harry”, que teve continuações, era a “mensagem” do personagem que interessava ao público muito mais que a obra e o ator.



Parece que autores e atores de “Tropa de Elite” foram surpreendidos por esta mensagem da força do Capitão Nascimento. Famosa é a declaração de Vagner Moura, que sentiu náuseas com sabor do pastel de cordeiro da festa de estréia, por se dar conta de que as barbaridades do seu personagem excitavam a platéia. Padilha declarou que, na sua escala de valores éticos, a tortura é pior que a corrupção. Mas o filme faz sucesso aí, no “Dirty” Nascimento. E não importa se Bruce Moura ou Vagner Bronson, o público tirou da tela, para dar vida própria, foi o “Nascimento Duro de Matar”. E a partir deste momento, o filme deixa de ter importância como obra de arte e passa a ser apenas um veículo para uma discussão política e social.



Ninguém se deu conta que tinha uma multidão desejosa de um herói do tipo Nascimento. E ele nasceu para delírio e gozo da tropa de equívocos, vítima e algoz da falta de segurança desta grande metrópole. O Capitão fala na primeira pessoa: faz uma ilação simplória entre ONGs e intelectuais com o tráfico; separa os corruptos dos justiceiros durões; acha inevitável para a segurança de uns, ser necessária a insegurança de outros (os da zona do conflito, os mais pobres); entende que se a culpa é evidente, o justiçamento se justifica; a tortura pode ser usada para manifestar a evidência. Enfim, Moura dá vida a um Capitão do Bope, com sua visão idiossincrática da realidade. O problema é que ele sai da tela, toma vida e representa uma tropa sedenda de justiça rápida, mesmo que alguns erros possam ser cometidos. Ainda mais que estes erros não são tão graves, pois há indícios de relações: quem mora na favela conhece o tráfico, quem usa drogas ou não se importa permite o tráfico. No fundo, eu e o Nascimento estamos livres destas relações perigosas e protegendo a sociedade de iguais a nós. Caveira!



Agora, incidindo no mesmo erro dos que acham o filme bom por gostarem do Nascimento, há, no outro extremo, quem ache o filme ruim por discordarem do personagem. E estes não vêem o ator, que é muito bom, nem o filme, obra digna de um grande cineasta. O julgamento da direita e da esquerda não está na tela. As duas saíram do filme para brigar na platéia. E é claro que aqui fora precisamos de posições firmes do diretor e dos atores sobre as conseqüências do filme, no papel do cidadão politicamente viável. Separando o filme das conseqüências.



Estamos numa encruzilhada. O ovo da serpente está no ninho. O filme pode contribuir para a discussão do problema e ajudar a mostrar o equívoco do Capitão Nascimento. Como um bom filme, que mostrou esse equívoco simplista da resolução de problemas complexos pela via da repressão policial. Ou se deixar levar pelo personagem e seu sucesso e fazer o nascimento da serpente da vingança, com continuações indecorosas para a TV. São as conseqüências fora da tela que vão determinar os papéis do filme no imaginário do presente momento político. Estes papéis, que podem ser assumidos no presente, em nada abalam a consistência da obra de arte no futuro, afinal “O Nascimento de uma Nação” de Griffith, cinematograficamente é muito bom... (e com trocadilhos, por favor).



06/10/2007

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