quinta-feira, 2 de abril de 2009

Resenha: HERANÇAS

Luíz Horácio


Certos livros nos obrigam a lê-los camada a camada, pense numa cebola, imaginativo leitor. Outros nos forçam ao papel de taxidermista e aproveitamos apenas o invólucro.
Heranças, a obra mais recente de Silviano Santiago encerra as duas possibilidades acima.
Novamente a cebola, pele 1- velhice, pele 2-ambição,pele 3 -Machado de Assis, pele 4- cenas de uma Belo Horizonte provinciana, pele 5- cartão postal do Rio de Janeiro, pele 6- Shakespeare, pele 7-modernismo, pele 8- diário de um especulador, pele 9...
Walter, o cínico narrador de Heranças, vive num apartamento na avenida Vieira Souto no Rio de Janeiro e já preparou detalhe por detalhe o seu sepultamento em Botafogo, no cemitério São João Batista.
“Elegi a cidade, escolhi o cemitério . Decidi passar os últimos anos de vida no Rio de Janeiro e ser enterrado no S. João Batista.”
Assim tem início Heranças, e esse início já daria pano para muitas mangas, querem ver?
Seria o Rio de Janeiro uma cidade adequada para velhos? Ou quem sabe, o cemitério do Brasil? Inclua no rol das camadas listadas acima, por favor.
De frente pro mar, antes a tela do computador, e de costas pro Brasil Walter,ora Quincas Borba, ora Dom Casmurro, apresenta ao leitor suas façanhas, resultado de um caráter pra lá de duvidoso.
Trata-se de um romance naturalista onde o autor parece fugir de seu passado de escritor. Nada a ver com Uma história de família, onde desejo e morte não dispensam o tom sentimental, ou o brilhantismo do inusitado em Stella Manhattan.
A cafajestice de Walter faz de Heranças uma ode ao reacionarismo. Sim, condescendente leitor, este aprendiz está ciente do risco de ser taxado de reacionário ao afirmar que o livro reacionário é reacionário.
Importante ressaltar que em tempos de predomínio da estética da favela, da marginalia, do operário sofrido, quer no cinema, quer na literatura, Silviano opta por um representante do topo da classificação social. Sim,paciente leitor, nossa terra tem palmeira, mas também tem a turma que acumula riquezas, nem todos são da linhagem de caráter do Walter, mas, em sua maioria, carregam farta parcela de culpa pela miséria crescente em qualquer cantão desse país.
Mas quem é Walter? Walter é parente de Jean Sibelius, personagem de um conto de Julian Barnes no livro Um toque de limão, dos velhos canalhas sedutores, personagens de Juan Claudio Lechin em seu abominável A gula do beija-flor.No trabalho de Lechin as maiores semelhanças com as atitudes de Walter onde o desprezo pela mulher se faz notar. Se no livro do boliviano a apologia do sexo livre de sentimentos é a tônica e se Santiago não chega a esse extremo, pois quando Walter abre a guarda é enganado; a ausência de escrúpulos induz abortos e a morte de uma mulher grávida.
O personagem de Silviano Santiago também tem um parentesco com o anão Gregório(também atende por Goyo, Goyto ou Gregori)de Maldita Morte- obra indispensável de Fernando Royuela, preste atenção. Assim como Walter, Goyo aguarda a morte.
Walter: “Confesso.Estive metido de maneira em nada circunstancial no acidente com o Chevrolet. Até a presente data, não tinha conseguido expressar por escrito o envolvimento. À noite, confiei raríssimas vezes palavras de culpa às paredes do quarto.” Sobre a morte da irmã.
Gregório: “Ao longo da minha vida, conheci múltiplos filhos-da-puta e a nenhum desejei uma morte ruim.Meu irmão Tranquilino, no entanto, teve-a. Um trem de carga levou-lhe pela frente a primogenitura.”
Sobre a morte do irmão.
Em Heranças, a figura feminina é sinônimo de obstáculo. No entanto essa resistência não chega a influir no andamento dos planos de Walter, visto que dura pouco, a eliminação desse elemento complicador é uma questão de tempo. Pouco tempo.
Mas vamos a trama.
Walter está em eu apartamento na Vieira Souto, frente pro mar, na companhia de empregados e o indefectível uísque. Em seu computador escreve a sua história, misto de autobiografia e conversa com o leitor. Descreve suas façanhas, as do empresário bem sucedido e as do don Juan inescrupuloso. Lembram das camadas lá em cima? Pois bem, curioso leitor, você também ficará sabendo de detalhes sobre uma Belo Horizonte antiga, será apresentado a alguns pontos turísticos cariocas e sobretudo fará contato com um ser extremamente inescrupuloso, capaz de varrer a própria irmã da sua caminhada rumo a herança.
Sedutor , inescrupuloso, Walter gastou sua vida em marcha veloz rumo a seus objetivos. A velocidade não diminui jamais, não importa se com morte de pai, assassinato de irmã, abortos, Walter quer “chegar lá.” E chega. Utilizando métodos pouco ortodoxos, mas isso não passa de uma insignificância a esse canalha desprovido de charme e simpatia.
Com a morte do pai, a irmã herda o Armarinho S. José, logo Walter trata de despachá-la, torna-se comerciante, na seqüência envereda pelos meandros da construção civil e para especular na bolsa de valores é um passo curto. Soube moldar-se às exigências dos anos JK, não encontrou dificuldades de adaptação ao período ditatorial e muito menos ao mercado de ações. Ser extremamente adaptável, termina a vida utilizando o computador para realizar seus investimentos e escrever a sua história. Excetuando-se o lucro, tudo o mais seria irrelevante. Inclusive os seres humanos que porventura significassem qualquer tipo de obstáculo nessa corrida rumo ao enriquecimento.
Inescrupuloso é o adjetivo que melhor se adapta a Walter, jovem freqüenta os prostíbulos de Belo Horizonte, no entanto não limita a profissionais suas incursões sexuais, empregadas domésticas em leitos pouco convencionais, os matagais, também engrossam sua lista de conquistas.
Também conserva o hábito de desvirginar moças, não tão recatadas, da sociedade mineira. Rico, sobram-lhe argumentos para demover todas reações a seu comportamento.
E assim caminha o humanismo de Walter, o milionário sedutor.
Infelizmente ele não está sozinho nessa cruzada que leva ao clube dos “bem sucedidos profissionalmente”, primorosamente Silviano Santiago faz uma critica corrosiva à sociedade e à economia em nosso país no período compreendido entre a batuta de JK e o pandeiro desafinado de Lula.
Se Maldita Morte é um romance desprovido de amor, o máximo que se pode identificar seria a sua intenção, no mais, eflúvios do desejo carnal e piedade, em Heranças o amor está presente, embora um amor maltratado.
Walter se apaixona três vezes e a tragédia acompanha o amor. A arquiteta Denise é abandonada. Marta, a guerrilheira, aproveita um vacilo de Walter e usa o “esperto” como instrumento para fugir à prisão e inevitável tortura. Logo mantém um romance com a advogada e milionária Graci. Esta não o inclui em seu inventário. Nem tudo foi exitoso nas tramas incansavelmente urdidas por Walter.
Das mulheres sofisticadas Walter suga-lhes o requinte e a cultura; a contrapartida se dá em forma de viagens. Rio de Janeiro na década de 60 , daí em diante Europa.
Numa de suas viagens, México, encontra a enfermeira Carmen, apaixona-se e como se diz “sossega o facho.” Para não quebrar a regra, chega o dia em que Carmen também é abandonada.
Uma questão sobressai. É aqui que entra Shakespeare, na necessidade de definir o herdeiro. Do mesmo modo que em Rei Lear, a escolha do herdeiro, quais critérios Walter utilizaria para definir o beneficiário, ele que conquistara dinheiro e mulheres? Como não tem descendentes a escolha recairá, de forma inusitada aparentando uma tentativa do autor de redimir personagem tão abjeta, sobre alguém sem laços sanguineos, mas que já “rondara” a família. Estamos diante do desfecho do livro e aí falou mais alto o moralismo, a mea culpa de Walter. Desandou.
Culto leitor, não ingresse no rol dos taxidermistas, é sempre uma possibilidade, ao tratar de Heranças, enverede pelas camadas, vista a pele de Walter e retire pele por pele conforme ele faz com as vestes de suas vitimas sexuais.Mas ao contrário dele, o faça com bastante amor.


TRECHO

A amizade é sempre pasto de velhas e novas carências. Quando os sentimentos familiares, amorosos e profissionais entram em dieta afetiva, o boi-memória se alimenta do capim-gordura no pasto das antigas camaradagens. Como aqueles sentimentos foram parcos na vida de homem solitário, notívago, mulherengo, globetrotter e milionário, os velhos amigos são mais do que o capim-gordura, que sacia a fome do boi-memória. Proporcionam a recuperação de energia vital pelos sete estômagos dos afetos, que ruminam as saudades dos tempos de menino e rapaz na cidade de Belo Horizonte, que cresce anarquicamente. São a força que me impeliu a imaginar - para nela querer acreditar - a inapelável existência da solidariedade no planeta Terra. Se quiser reconhecer a sim para além do espelho fixado nos azulejos coloridos acima do lavabo, o ser humano não pode renegar os olhos dos coleginhas de infância. Não são eles que lhe proporcionaram, e continuam a proporcionar a boa imagem de fora pra dentro?
Se os renegar, acabará por pedir socorro à religião. Levantará os olhos do espelho em direção a um deus todo-poderoso, esculpido em barro ou madeira, em letra impressa ou idéias.
- Vade retro!
Desde que optei pela solidão acompanhada, invoco com freqüência essa deusa demasiadamente humana, a que chamo de Amizade. Aos pés de seu altar, onde impera o rosto esculpido em legitima hematita mineira, ajoelho e rezo nos momentos sorumbáticos do dia ou da noite. A Amizade é uma espécie de pólo catalisador da sensação concreta e extraterrena de fraternidade.


O AUTOR
Silviano Santiago é escritor e critico literário. Por quatro vezes recebeu o Prêmio Jabuti nas categorias de romance e conto. Entre seus livros de ficção destacam-se Em liberdade, Stella Manhattan, Uma história de família, De cócoras, O falso mentiroso, os livros de contos Keith Jarrett no Blue Note e Histórias mal contadas, os ensaios Uma literatura nos trópicos, Nas malhas da letra e As raízes e o labirinto da América Latina.
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Luíz Horácio
Jornalista, escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão, ed.Conex.2006 e Nenhum pássaro no céu, ed. Fábrica de Leitura, 2008. Professor de Literatura, mestrando em Letras

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